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Por Renan Fernandes

 

Felipe da Rocha é o Tio dos Doces, um dos personagens icônicos do Centro de Ciências da Saúde. Ele está ali desde 2005, quando fugiu do desemprego e assumiu a gestão de um pequeno quiosque de guloseimas no Fundão. Naquele momento, Felipe não tinha a dimensão da relação de carinho que construiria com a comunidade acadêmica. Quase duas décadas depois, o Tio dos Doces acumula agradecimentos em TCCs, dissertações e teses e um punhado de convites para defesas e festas de formaturas.

“Saio de casa às cinco da manhã e compro produtos para abastecer a loja. Abro às oito e sou o último a fechar, às 21h. Não deixo ninguém na mão”, conta Felipe, pai de quatro filhos, todos sustentados pelo quiosque, única fonte de renda da família. “Sempre tivemos uma ótima relação com a universidade. Nos ofereceram cursos de gestão de empreendimentos gastronômicos, de manipulação de alimentos. Isso melhorou muito o serviço”, completa.

No começo de fevereiro, o que Felipe chama de “ótima relação” começou a ruir. Na segunda-feira, 2, todos os donos de quiosques do CCS foram convocados para uma reunião com a Decania na qual foram informados de que terão que fechar seus pequenos estabelecimentos.

Por ordem da Controladoria-Geral da União (CGU), do Tribunal de Contas da União (TCU) e do Ministério Público Federal (MPF), a universidade terá que substituir as ocupações precárias da unidade por contratos decorrentes de licitação. A medida começa pelo CCS, mas, em breve, alcançará todos as unidades de todos os campi.

A notícia chocou os comerciantes e já resultou em perdas de empregos. Sem garantias sobre o futuro de sua loja, Felipe dispensou a funcionária que o acompanhava há 15 anos para cortar gastos. O comerciante afirma dormir com a ajuda de remédios e ter perdido três quilos desde a reunião no começo de fevereiro.

Os permissionários foram separados em três blocos que serão licitados em etapas sucessivas. O objetivo da divisão é evitar que a comunidade acadêmica fique sem a oferta de serviços considerados fundamentais, como restaurantes e copiadoras. O edital da licitação está em desenvolvimento e a devolução do espaço dos estabelecimentos será solicitada apenas quando o documento estiver pronto para ser publicado.

AUDITORIAS

As ocupações de áreas da UFRJ foram alvo de auditorias e fiscalizações externas da CGU, do TCU e do Ministério Público Federal (MPF). A situação do CCS recebeu atenção especial nos pareceres da CGU e do TCU. Em 2019, um acórdão do Tribunal recomendou a regularização da situação dos ocupantes de bens imóveis da unidade.

A PR-6, responsável na reitoria pela gestão de contratos, criou a Superintendência-Geral de Patrimônio e a Divisão de Gestão de Cessão de Uso em 2018 para atender às demandas dos órgãos de controle. Foi instaurada uma sindicância, os ocupantes foram recadastrados e foram emitidas portarias de permissão de uso precário para formalizar a relação entre os comerciantes e a universidade. O passo seguinte, o processo de licitação, foi postergado pela pandemia e retomado a partir de 2022.

ESTUDANTES

O clima soturno entre os comerciantes após a reunião chamou a atenção da comunidade acadêmica e provocou reação imediata. Integrantes dos centros acadêmicos de cursos do CCS levaram o assunto ao decano Luiz Eurico Nasciutti.

Yuri Ramos, estudante do 11º período de Biomedicina e representante discente do curso, mostrou preocupação com o processo de licitação. “Esses comerciantes estão integrados à comunidade, estão aqui há décadas. Eles são amigos, nos entendem e praticam preços que podemos pagar. A licitação pode trazer grupos interessados apenas no lucro”, pondera Yuri.

SUPERINTENDENTE

Robson Chaves, superintendente-geral de Patrimônio, garantiu que existe o cuidado em manter a prática de preços razoáveis. Chaves também explicou a relação existente entre os comerciantes e a universidade. “Desde que foram emitidas as portarias de permissão de uso, cada permissionário tomou ciência de que a relação pode ser interrompida a qualquer tempo. Essa relação é assim devido à precariedade do instituto da permissão de uso e não porque a UFRJ gostaria que fosse”, explica o superintendente.

ANGÚSTIA

Os comerciantes reclamam do pouco tempo para se preparem para participar do processo licitatório “Convocaram uma reunião na qual não tivemos voz, apenas fomos informados da decisão. As pessoas estão desesperadas”, lamenta Felipe. “Não queremos privilégios, desejamos apenas um tratamento com humanidade, com reconhecimento pelos serviços prestados. Não estamos preparados porque a pandemia nos adoeceu e endividou”, aponta o doceiro.

Tuylla Esperança traz no sobrenome a expectativa por um final feliz nessa história. Em 2019, a fisioterapeuta precisou deixar o trabalho para assumir o comando do quiosque Mate Mania para poupar o pai, doente. “Meu pai abriu esse quiosque em 2002. Trabalhou de segunda a sexta, em pé da manhã até a noite. Isso foi um agravante para o desenvolvimento dessa artrose. Trabalhando aqui ele também pegou Chikungunya e tem sequelas até hoje”, lamenta Esperança. “Daqui tiramos o nosso sustento. E nossos cinco funcionários também. Todos com carteira assinada. Se fecharmos hoje, só aqui serão cinco famílias sem sustento”, afirma a comerciante.

Sobre o futuro, Tuylla tem na fé a esperança de dias melhores. “É orar e confiar que Deus tem algo melhor guardado para a gente, aqui ou em outro lugar”, disse confiante.

Professores de todo o país se reuniram de 26 de fevereiro a 1º de março em Fortaleza (CE), para a realização do 42º Congresso do Andes. Instância máxima de deliberação do movimento docente nacional, o encontro mantém estanque uma dinâmica que abafa posições minoritárias e beneficia quem comanda o sindicato. “O processo é tão complexo que os professores têm dificuldade de participar e expor suas posições, e isso faz com que a diretoria nacional tenha mais ascendência sobre o que é aprovado nesses grupos”, explica a presidenta da AdUFRJ, professora Mayra Goulart.

Exemplo dessa dinâmica aconteceu na noite de quarta-feira (28), quando o plenário foi unânime na defesa de uma greve em 2024. A divergência aconteceu apenas sobre quando a paralisação por tempo indeterminado deveria acontecer e como seria construída. A metodologia do congresso não permitiu que posições contrárias à greve fossem defendidas no plenário, uma vez que todos os grupos de trabalho aprovaram por maioria a defesa do movimento paredista no dia anterior (veja o debate abaixo).

A segunda tônica do congresso é a tendência ao pouco pragmatismo sobre temas centrais para o movimento docente, enquanto discussões transversais sem grande repercussão para os professores ganham peso e não geram ações efetivas. “Não dá tempo de discutir tudo e o essencial fica sem o necessário debate”, aponta o professor Carlos Frederico Leão Rocha, delegado da AdUFRJ, que integra o grupo de apoio da diretoria.

O congresso acontece no Espaço de Convivência da Universidade Federal do Ceará, no campus Pici, região Oeste de Fortaleza. O espaço tem confortáveis salas de aula e de reuniões. O auditório utilizado para as plenárias, no entanto, não comportava o total de inscritos, o que levou à inusitada criação uma sala de transmissão virtual anexa ao local das plenárias.

O encontro reuniu 632 representantes de 83 seções sindicais. Desses, 457 são delegados, 132 são observadores, 36 são diretores do Andes e sete são convidados. A AdUFRJ levou uma delegação de 19 pessoas, entre 13 delegados e seis observadores, a maioria do campo da situação. A síntese das decisões você encontra na próxima edição do Jornal.

 

Greve: temos condições de parar já?

No momento em que a maioria das universidades ainda não começou o primeiro período letivo, muitos professores que acompanham o 42º Congresso do Andes foram surpreendidos com uma proposta de greve imediata. O tema foi discutido e votado na noite do dia 28 de fevereiro. Apenas 20 votos separaram os favoráveis a uma greve no primeiro semestre deste ano daqueles que defendiam a possibilidade de uma greve com organização responsável e em parceria com outros setores do funcionalismo. Pela “greve já” votaram 156 professores, enquanto 136 foram favoráveis à construção do movimento ao longo de 2024. Houve, ainda, 36 abstenções.

A delegação da AdUFRJ se dividiu entre favoráveis à construção de uma greve ao longo de 2024, a greve imediata e as abstenções sobre o tema. Céticos sobre os alcances de uma greve neste momento, por conta da baixa mobilização dos professores em todo o país, os delegados que representam o grupo político da diretoria da AdUFRJ não puderam discutir alternativas, pois o tema havia sido aprovado por maioria em todos os grupos de trabalho, no dia anterior. A maior parte se absteve.

Pouco antes do início da plenária que discutiria o plano de lutas dos docentes federais, o presidente do Andes, Gustavo Seferian, levou para a plenária um informe parcial sobre mesa de negociação que havia terminado pouco tempo antes, em Brasília. Seferian afirmou que o governo mantinha o reajuste zero, “sem qualquer tipo de avanço” nas negociações. “É, talvez, dos mais tenebrosos informes, mas também, dos mais motivadores de nossa raiva e indignação”, disse, inflamando parte dos delegados a pedirem greve já.

O dirigente não contou que o secretário de Relações do Trabalho José Lopes Feijoó informou aos sindicatos, na mesma reunião do dia 28, que o governo espera a confirmação do superávit da arrecadação do primeiro trimestre para apresentar um novo índice. “As negociações continuam”, pontuou o secretário.

Durante o longo debate no congresso, docentes se revezaram ao microfone para defender suas percepções sobre a greve. Dois integrantes da delegação da AdUFRJ tiveram oportunidade de fala. “Não dá para aceitar reajuste zero”, reconheceu o professor Carlos Frederico Leão Rocha, delegado alinhado politicamente à diretoria local. Para ele, a indignação dos professores é justa, mas não pode ser usada com irresponsabilidade, já que docentes universitários estão desmobilizados. “É preciso uma construção efetiva dessa greve e devemos atuar em conjunto com os servidores públicos federais, mas não estamos preparados no momento. Precisamos voltar às nossas universidades e consultar nossos colegas”, defendeu.

Integrante do grupo de oposição à diretoria da AdUFRJ, a professora Fernanda Vieira interveio em favor da greve já. “Não existem condições objetivas ideais para iniciar uma greve.”, disse, em resposta ao professor Leão Rocha. “É preciso decidir”.

O professor Henrique Santos, da Federal da Bahia, apontou que a greve é uma necessidade, mas que só vai acontecer se houver mudanças na conjuntura nacional. “Só é possível, se mudarmos nossa correlação de forças. Para fazer greve, nós vamos ter que enfrentar a direita na universidade, a extrema direita nas ruas e um governo que não quer nos dar reajuste”, observou. “Não vamos poder entrar sozinhos numa greve, pois ficaremos isolados”, apontou.

Docente da Federal Rural do Rio de Janeiro, a professora Elisa Guaraná chamou atenção para a seriedade da greve como instrumento de pressão e reforçou os riscos de um eventual fracasso. “Greve é nossa arma mais potente. Nós fizemos reunião de setor com a avaliação de que foi difícil paralisar por dois dias. A maioria das universidades não paralisou”, lembrou. “Nós temos que ser coerentes com nossas avaliações. Passamos o dia todo ontem falando das dificuldades de mobilização. Se nós puxarmos uma greve e ela fracassar, nós enterraremos o movimento”, alertou. “Eu não sou vanguardista. Nós vamos construir esse processo pela base”.

Mayra Goulart ressalta que a diretoria da AdUFRJ é absolutamente comprometida com a defesa da universidade pública e com a construção de um movimento responsável. “A greve é um instrumento importante, não pode ser banalizado. Precisamos avaliar se temos condições de realizá-la. Nós atuaremos num amplo processo de consulta, de escuta e de debate com os professores da UFRJ nas unidades e no Conselho de Representantes. Acreditamos que esta pode ser uma oportunidade para ativar os professores para que se mobilizem em defesa de melhores condições de trabalho e salário”.

 

 

Volta a crescer a pressão de setores mais conservadores contra a campanha salarial dos servidores públicos federais e para que a reforma administrativa retorne à ordem do dia do Congresso Nacional. Os argumentos são os velhos conhecidos de sempre: “Estado inchado”, “máquina ineficiente”, “supersalários”. Mas, olhando mais atentamente para os dados, é fácil descobrir que a história não é bem assim.

Do total de trabalhadores no Brasil, 12,5% são servidores públicos. Para se ter uma ideia, o índice médio dos países da OCDE, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico que reúne, por exemplo, Alemanha, Canadá e Estados Unidos, é de 23,5%.

Em levantamento divulgado na edição 1.284 do Jornal da AdUFRJ, o jornalista Alexandre Medeiros já havia identificado que o Brasil ocupa apenas aWhatsApp Image 2024 02 23 at 20.56.39 13ª posição em quantidade de servidores. O mesmo levantamento apontou outra distorção: os servidores do Executivo ganham, em média, três vezes menos que o salário médio dos servidores do Judiciário.

E não para por aí.

Fizemos também o levantamento dos salários dos servidores públicos federais. A grande maioria, 90%, recebe até R$ 10 mil. Bem longe dos supersalários que atingem o teto do funcionalismo. Esses altos vencimentos, recebidos, por exemplo, por juízes e desembargadores, alcançam só 0,06% do funcionalismo.

Os falsos argumentos sustentam a defesa de uma reforma administrativa para tirar direitos dos servidores. A quebra da estabilidade é um dos principais pontos de divergência entre o presidente da Câmara, Arthur Lira, e o governo Lula, que defende a reforma, mas sem alterações constitucionais.

Lira, que quer aprovar a reforma como foi gestada pelo governo Bolsonaro, desconsidera os privilégios do Legislativo em relação ao funcionalismo federal. Na contramão dos gastos com o Executivo, o Brasil tem o segundo Congresso mais caro do mundo. Perde, apenas, para os Estados Unidos. Cada parlamentar custa para o Brasil R$ 23 milhões anuais, segundo levantamento da Fundação Getúlio Vargas. “É preciso pensar nas distorções provocadas pelas diferenças nas esferas de poder”, lembra a economista Carla Abini. “Cada parlamentar pode contratar até 25 pessoas”, pontua.

Em relação aos servidores federais, ela é favorável aos reajustes, mas critica a política de conceder recomposição linear, já que também entre o Serviço Federal há distorções entre carreiras. “Conceder aumento linear para o funcionalismo também é um problema. O ideal é a reestruturação. Nesse sentido, uma reforma administrativa só teria validade se atuasse nessa direção”, defende.

Presidenta da AdUFRJ, a professora Mayra Goulart critica a postura de setores econômicos contrários ao direito dos servidores. “Existe uma campanha sistemática para convencer a sociedade de que existe uma ineficiência estrutural no Serviço Público, de que há muita gente. “Basta pesquisar para descobrir que isso não é verdade”, alerta.

NEGOCIAÇÃO TRAVADA
Para David Lobão, coordenador do Fonasefe, essa narrativa contra os servidores colabora para a dificuldade nas negociações com o governo. “Há uma disputa colocada. Temos um governo de coalizão e precisamos unir argumentos para rebater aqueles que defendem o Estado mínimo. Sem servidores, não existe Serviço Público”, afirma.

O dirigente também aponta para a piora da qualidade de vida e de condições de trabalho dos servidores. “Existe um descontentamento generalizado na base, com frustração e muita angústia em razão da piora nas condições de vida. São muitos os profissionais que se dedicam a oferecer o melhor serviço à população brasileira”.

No último dia 22, o Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos (MGI) deu mais uma mostra dessa dificuldade enfrentada pelos servidores. Na data, aconteceu a terceira mesa específica de negociação das carreiras da Educação. O encontro frustrou expectativas.

Os servidores esperavam que o MGI desse respostas sobre os planos de reestruturação das carreiras do Magistério Superior, EBTT e dos técnico-administrativos. As propostas foram apresentadas pelo Andes, pela Fasubra e pelo Proifes.

No entanto, o secretário de Relações do Trabalho, José Lopes Feijoó, reafirmou as indicações já dadas pelo governo: reajuste de 4,5% para 2025 e 4,5% para 2026, sem brechas para alterações salariais este ano.

Em relação às propostas apresentadas pelos sindicatos docentes, o governo sinalizou que não trabalha na perspectiva de reduzir tempo de carreira no funcionalismo federal e tem, como tempo ideal mínimo, 20 anos de desenvolvimento.

Os dirigentes também cobraram ao governo a retirada da obrigatoriedade de ponto eletrônico para professores do EBTT. Os ministérios da Educação e da Gestão concordaram com o mérito dos argumentos e se comprometeram a dar uma resposta formal em 15 dias.

Raquel Nery, diretora do Proifes, apresentou proposta de equiparar os salários do MS e EBTT de 40h ao piso da educação básica, reajustado este ano pelo governo federal. “Somos uma categoria que responde pela Ciência do Brasil, pela produção do conhecimento e por aquilo que há de qualidade na educação superior brasileira”, defendeu. Esses professores sem doutorado recebem hoje R$3.412,63. Valor bem abaixo dos R$ 4,580,57 concedidos à educação básica.

A proposta é defendida pela AdUFRJ desde o início do ano. A assessoria jurídica chegou a desenvolver cálculos que mostram que todos os níveis terão ganhos, caso seja aplicado o piso da educação básica aos docentes federais. O governo, no entanto, não deu resposta à reivindicação.

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Querida Professora, venha pegar seu Kit, com camiseta e adesivo, para a manifestação do 8M.
Ele estará disponível na sede da AdUFRJ a partir de quarta-feira, 6 de março.
A Adufrj fica no Fundão, no Centro de Tecnologia, bloco D, sala 200.

 

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WhatsApp Image 2024 02 23 at 20.51.58De um lado, um líder enfraquecido politicamente que viu uma brecha para angariar simpatia em seu país, em plena guerra contra o grupo palestino Hamas. De outro, um presidente que tenta alçar seu país a um papel relevante nos organismos internacionais, no momento em que ocupa a presidência do G20. Esta semana, como num hipotético ringue, Benjamin Netanyahu e Luiz Inácio Lula da Silva levaram Israel e Brasil a um improvável embate diplomático em torno dos ataques israelenses ao grupo Hamas na Faixa de Gaza.

O estopim para o atrito foi uma entrevista coletiva do presidente Lula em Adis Abeba, onde participou da 37ª Cúpula da União Africana e de reuniões bilaterais com chefes de Estados do continente. Na entrevista, Lula comparou o que os palestinos vêm sofrendo em Gaza ao que os judeus sofreram sob Hitler (veja declaração completa no box). A reação de Israel foi imediata. O embaixador brasileiro naquele país, Frederico Meyer, foi exposto a uma reprimenda pública, em hebraico, e Lula foi considerado “persona non grata” em Israel.

Para o historiador Michel Gherman, professor do Programa de Pós-Graduação em História Social do IFCS/UFRJ e pesquisador do Centro de Estudos do Antissemitismo da Universidade de Jerusalém, a fala de Lula jogou um holofote sobre a anunciada invasão terrestre de Israel a Rafah, no sul da Faixa de Gaza, prevista para as próximas semanas. “A entrada em Rafah vai nos fazer lembrar os piores confrontos sangrentos que já tivemos na história. Você tem mais de um milhão de refugiados abrigados em cabanas no sul de Gaza. São pessoas que já fugiram do norte de Gaza, não têm outro lugar para ir, estão concentradas na fronteira com o Egito. Se o número de mortos civis já é assustador, com a possível entrada em Rafah vai ser terrível”, avalia Gherman.

Segundo o professor, a situação política em Israel é complexa. “Há uma crise econômica sem precedentes, com uma acentuada queda do PIB. Netanyahu tem uma rejeição enorme da população, na faixa dos 80%. E você tem os reféns feitos pelo Hamas, que estão lá à espera da libertação, mas setores do governo Netanyahu são contra qualquer negociação para a troca de reféns. Eu acho que o isolamento político de Israel, aliado à situação caótica interna, pode fazer de uma possível entrada em Rafah um suicídio político para Benjamin Netanyahu. Mas a não entrada também pode ser – ele vai perder a coalizão que o sustenta no poder. Nesse ringue hipotético, ele está nas cordas. Ou, entra em Rafah e promove um massacre, ou não entra, sai do governo e vai preso”.

Netanyahu já anunciou que o exército israelense invadirá Rafah no Ramadã, período sagrado para os muçulmanos que começa em 10 de março, caso o Hamas não liberte os reféns que mantém em seu poder desde o início do conflito, em 7 de outubro de 2023. Embora tenha restrições às declarações de Lula, Michel Gherman destaca a importância do alerta feito pelo presidente brasileiro. “É uma fala muito importante, que não pode ser cortada por uma declaração infeliz. O problema foi a comparação, historicamente equivocada, ao Holocausto. E o governo de Israel, de uma forma irresponsável, resolveu produzir ganho político com isso. Foi uma boia de salvação para Netanyahu, mas de curta duração”.

Na avaliação de Michel Gherman, se Netanyahu está nas cordas, o ex-presidente Jair Bolsonaro também está. Para o professor, a extrema direita brasileira, tão identificada com a israelense, tentará também obter ganho político com o embate diplomático. “Assim como seu colega israelense, Bolsonaro está às vésperas de uma prisão. A extrema direita daqui tenta desde o início desse conflito entre Israel e o Hamas “brasilizar” a questão. Isso deve ocorrer na Avenida Paulista (local da manifestação de domingo próximo), a transformação de Bolsonaro em defensor de Israel e de Lula como inimigo de Israel. Para a extrema direita brasileira também é uma boia de salvação”, crê Gherman.

As redes sociais bolsonaristas já trataram de amplificar o embate e chegaram a anunciar a presença no ato de domingo do embaixador de Israel no Brasil, Daniel Zonshine. Na avaliação de Fernando Brancoli, professor do Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID-UFRJ), é bom lembrar que o atual governo de Israel tem fortes ligações com nosso governo anterior. “Netanyahu visitou Bolsonaro entre a vitória nas eleições de 2018 e a posse. Há um receio que no domingo, na passeata de Bolsonaro em São Paulo, o embaixador israelense no Brasil possa participar de alguma forma. Não me impressionaria se ele gravasse um vídeo ou algo parecido. Se isso acontecer, a fervura voltará a aumentar e ele poderá até ter que sair do Brasil. A Convenção de Viena proíbe que diplomatas participem de manifestações políticas”, lembra Brancoli.

O professor ressalta que a fala de Lula se insere num contexto mais amplo de reforma dos organismos internacionais. “A fala tem que ser entendida no lugar em que ele estava. Não foi feita em Brasília. Ele estava na Etiópia, na reunião da Cúpula Africana, com a participação de países islâmicos do norte da África e do Golfo. Um espaço de países do Sul global que argumentam, assim como o Brasil, que os mecanismos internacionais para a solução de crises não estão funcionando. E não funcionam porque são essencialmente centrados nos países mais influentes do Norte. A fala do Lula se enquadra nessa lógica”.

Segundo Brancoli, Lula passou os últimos dois dias antes de sua fala em Adis Abeba reunido com lideranças palestinas e africanas. E suas declarações foram feitas no momento em que Israel anuncia a invasão de Rafah. “Estou numa conferência nos Estados Unidos debatendo esse tema e a expectativa é que essa invasão vai ser um massacre. Estamos falando de uma cidade que tinha anteriormente 170 mil pessoas e que hoje tem um milhão e meio. Até os Estados Unidos, que são apoiadores de primeira hora de Israel, já se posicionaram contrários a uma entrada em Rafah. Mas é o que pode acontecer nos próximos dias, e acho que a fala do Lula serve também para chamar atenção em relação a esse movimento”.

ALERTA
Para Leonardo Valente, também professor do IRID-UFRJ, a reação de Israel às declarações de Lula foi estrategicamente pensada. “A reação foi totalmente midiática. Tudo na política externa é muito bem pensado, e Israel é experiente nisso. Havia uma ideia de desmoralização do Brasil, e isso já aconteceu em 2014, quando nosso governo fez críticas aos ataques de Israel contra os palestinos e fomos qualificados como “anão diplomático”. Israel tem uma estratégia midiática muito agressiva, sempre teve. É necessário vitimizar Israel, amplificar a questão e tentar deslegitimar a atuação internacional do Lula e da diplomacia brasileira”, analisa Valente, que tem estudos recentes que integram as Relações Internacionais à Comunicação, especialmente diplomacia midiática.

A fala de Lula, segundo Valente, chamou a atenção do mundo para os horrores que vêm ocorrendo em Gaza. “É assustadora essa normalização do massacre que está ocorrendo em Gaza. Claro que houve um ataque terrorista do Hamas, que precisa ser punido, mas isso justifica as ações de Israel em Gaza, matando mais de 20 mil civis? O que está ocorrendo lá, mais do que uma tentativa de resgatar os reféns, é uma matança étnica. Faz pensar se de fato o principal objetivo do governo Netanyahu é resgatar os reféns. Ou se é reduzir a população palestina para anexar territórios, uma política de extermínio. E o Lula deixou isso claro na fala dele”.

Se ficou restrito a Israel e Brasil, sem maiores repercussões em outros países, o embate diplomático suscitado pelas declarações de Lula acendeu um farol sobre os próximos movimentos do exército israelense na Faixa de Gaza. Um possível ataque a Rafah e suas consequências estarão agora sob os olhares do mundo inteiro.

A ESCALADA

Domingo, 18 de fevereiro
Em entrevista coletiva em Adis Abeba, onde participou da 37ª Cúpula da União Africana e de reuniões bilaterais com chefes de Estados do continente, o presidente Lula falou sobre os ataques de Israel à Faixa de Gaza. Eis a fala literal de Lula:
“É muito engraçado. Quando eu vejo o mundo rico anunciar que está parando de dar contribuição para a questão humanitária aos palestinos, eu fico imaginando qual é o tamanho da consciência política dessa gente e qual é o tamanho do coração solidário dessa gente que não está vendo que na Faixa de Gaza não está acontecendo uma guerra, mas um genocídio”.
“De que não é uma guerra entre soldados e soldados, é uma guerra entre soldados altamente preparados e mulheres e crianças. Olha, se houve algum erro nessa instituição que apura dinheiro, que se apure quem errou. Mas não suspenda a ajuda humanitária a um povo que está há quantas décadas tentando construir o seu Estado”.
“O Brasil não apenas afirmou que vai dar contribuição — eu não posso dizer quanto porque não é o presidente quem define. É preciso ver quem é que cuida disso no governo para ver quanto é que vai dar. O Brasil disse que vai defender na ONU a definição de o Estado palestino ser reconhecido definitivamente como Estado pleno e soberano”.
“É importante lembrar que em 2010 o Brasil foi o 1º país a reconhecer o Estado palestino. É preciso parar de ser pequeno quando a gente tem que ser grande. O que está acontecendo na Faixa de Gaza e com o povo palestino não existe em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu quando Hitler resolveu matar os judeus”.
“Então não é possível que a gente possa colocar um tema tão pequeno, sabe, você deixar de ter ajuda humanitária. Quem vai ajudar a reconstruir aquelas casas que foram destruídas? Quem vai retribuir a vida de 30.000 pessoas que já morreram, 70.000 que estão feridos? Quem vai devolver a vida das crianças que morreram sem saber por que estavam morrendo?”.

WhatsApp Image 2024 02 23 at 20.53.09Segunda-feira, 19 de fevereiro
O embaixador do Brasil em Israel, Frederico Meyer, foi convocado pelo chanceler israelense, Israel Katz, para uma reunião no Museu do Holocausto, em Jerusalém, onde recebeu uma reprimenda pública (foto ao lado). No encontro, Lula foi classificado como “persona non grata” por Israel.
O Itamaraty chamou Meyer de volta ao país. O ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, reuniu-se com o embaixador israelense no Brasil, Daniel Zonshine, e manifestou insatisfação com o tratamento dado ao embaixador brasileiro.
Nas redes sociais, o chanceler israelense, em texto escrito em português, diz que a declaração de Lula foi um “grave ataque antissemita que profana a memória dos que foram mortos no Holocausto”.

 

 

 

Terça-feira, 20 de fevereiro
Mais uma vez usando um texto em português nas redes sociais, Israel Katz afirma, dirigindo-se diretamente ao presidente Lula: “Que vergonha. Sua comparação é promíscua, delirante. Vergonha para o Brasil e um cuspe no rosto dos judeus brasileiros”.
O ministro Mauro Vieira reage às postagens de Katz: “As manifestações do titular da chancelaria do governo Netanyahu, de ontem e de hoje, são inaceitáveis na forma, e mentirosas no conteúdo. Uma chancelaria dirigir-se dessa forma a um chefe de Estado, de um país amigo, o presidente Lula, é algo insólito e revoltante. Em mais de 50 anos de carreira, nunca vi algo assim”.

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