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Foto: Tomaz Silva/Agência BrasilO Rio de Janeiro foi manchado de sangue no dia 28 de outubro. A maior chacina do Brasil é mais um trágico e sádico episódio que escancara a crise de segurança pública na qual está mergulhada a Cidade Maravilhosa. A Polícia Civil confirma 121 mortes, mas a contagem total, com os 72 corpos achados por moradores na mata da Serra da Misericórdia, elevaria o número para 136 assassinatos. Há muitas perguntas sem resposta. Para além do silêncio, há angústia, medo e dor. Dor de uma população cansada de ser refém. “O governo não oferece segurança, nem combate o crime, nem nos dá apoio. Em quem confiar?”, questiona uma personagem que não terá seu nome ou local de moradia revelados por medida de segurança. “São vivências e dores impossíveis de mensurar”, completa outra entrevistada. O Jornal da AdUFRJ abre sua página 3 com os difíceis relatos de três gerações marcadas pelo horror. “Eu queria mudar de país. Aquele da neve, pra eu fazer boneco de neve. Lá eu acho que não vou mais ouvir tiro, deve ser muito legal”, sonha o pequeno B., de 8 anos.
B., 8 anos
“No dia que aconteceu aquele negócio, eu fiquei muito nervoso. Eu tavo na escola e todo mundo começou a falar que já tinha 22 pessoas mortas. Eu tenho medo disso. Não gosto. Eu comecei a chorar muito. Fiquei preocupado com a minha família e meu coração chega acelerou. Chorei tanto que ninguém conseguia me acalmar. Eu comecei a vomitar, porque meu estômago ‘ficou fazendo bolhas’. É muito ruim sentir isso. Quando a minha avó chegou pra me buscar, eu fiquei um pouco mais calmo, porque ela tava viva. Ela me levou para casa andando, porque não passava BRT. Isso também me deixou assustado. Quando cheguei na casa da minha avó, o meu primo ainda não tinha chegado da escola. Isso me deixou muito nervoso de novo. Na televisão, tava passando muitas coisas feias. Tão feias que eu até fechava o olho e tapava o ouvido.
Eu espero que isso não aconteça mais, mas tem pessoas que defendem o que não é pra acontecer. Eu pensei: ‘que isso, mundo? Logo perto do meu aniversário?’ Não quero que aconteça de novo. Na verdade, eu queria mudar de país. Aquele da neve, pra eu fazer boneco de neve. Lá eu acho que não vou mais ouvir tiro, deve ser muito legal.”.
M., 44 anos
“Nossas dores são invisíveis. São feridas que ninguém vê. São vivências e dores impossíveis de mensurar. Desde sempre, isso tudo foi muito ruim, mas de 2010 para cá, ficou pior. A UPP veio como uma linda promessa. A gente via tudo bonitinho lá na Zona Sul. Quando chegou aqui, não era nada daquilo. De 2014 a 2016 foram confrontos todos os dias. Os traumas foram se acumulando. Tem muitas pessoas que tomam medicação fortíssima. Eu mesma tomo tarja preta. Faço vários tratamentos e não consigo mantê-los sem ajuda. Uso medicação controlada. Sem ela, eu não consigo aguentar isso tudo. A polícia agora entra pontualmente às 4h30. Então, eu acordo todo dia às 4h, para não ser acordada pelas rajadas, porque é horrível despertar assim.
Temos jovens adultos que não sabem ler direito porque na época da alfabetização não podiam ir à escola por conta dos tiroteios. Há várias pessoas com pressão alta, ansiedade, transtorno pós-traumático, crise de pânico, depressão. Agora temos crianças também com esses quadros. Muitas crianças sofrendo alta pressão psicológica por conta da violência. São muitos danos, efeitos colaterais invisíveis.
A parte invisível da guerra não interessa… As pessoas da favela fazem o asfalto funcionar, mas o Estado não quer saber e nem a sociedade. Transformam a favela num campo de guerra, sem campo de refugiado. A gente não tem para onde ir. A gente vira escudo dos dois lados e a sociedade julga sem conhecer a realidade. Não sou contra a polícia, desde que ela faça o seu trabalho dentro da lei. Se o policial não cumpre a lei, ele é bandido igual ao bandido que ele diz combater. Eles queriam matar. Em nenhum outro momento teve tanta destruição. Foram quatro horas de tiros só na rua principal, do comércio. Destruíram tudo. Não tem como justificar o uso dessas armas de guerra. Quem negocia essas armas em vários idiomas? Se não tiver munição, não tem como ter tiroteio. Se a arma não chegar, o tráfico não vai conseguir fabricar uma arma sozinho. Os dois lados têm armas e a gente fica no meio, preso em casa, sofre calado, não pode falar.”
A., 76 anos
“Perdi um filho há mais de 30 anos e sei o que essas mães estão passando agora. Nenhuma mãe nasceu para enterrar um filho. É uma chaga aberta. Dói todo dia saber que seu filho morreu sozinho, sem você estar perto. Morreu sem você poder amparar sua cabeça, sem dizer que vai ficar tudo bem, como fazia quando ele era criança e tinha medo nas noites em que a luz faltava no barraco. Cada vez que tem morte, eu revivo essa dor, sendo perto ou sendo longe.
Os traumas são muitos e só se acumulam. Tem gente morrendo do coração de repente. É de repente, porque não tem aviso, mas é resultado de muitos maus-tratos. Nós [moradores de favelas] somos as maiores vítimas dessas operações. O governo não oferece segurança, nem combate o crime, nem nos dá apoio. Não temos a quem pedir ajuda. Em quem confiar, quando eles [policiais] estão num dia atirando dentro da favela, no outro pegando ‘arrego’ [propina combinada com o tráfico], no outro vendendo as armas que eles pegam em outra operação? Moro aqui há quase 70 anos e já vi muita coisa. Depois de uma operação horrível dessas, a favela fica em silêncio. Você sabia que o silêncio na favela é o pior barulho que existe? É o barulho do medo. Mesmo quando a matança acontece em outro lugar, mesmo assim, a gente cá fica com medo. Será que vem para cá? Será que vai morrer mais gente? Podia ter sido ‘fulano’, podia ter sido meu neto. Se você mora em favela, você é alvo. Pode ser adulto, velho, criança, estudante, traficante, trabalhador. Não importa nada. Tem um alvo grande no seu peito quando você mora aqui.”
Ele foi muito além do dever de ofício. Alexandre Brasil, professor titular da UFRJ, identificou, denunciou e deu voz de prisão a um dos líderes da quadrilha que falsificava documentos e roubava pensões de professores e técnicos aposentados da UFRJ. A rede criminosa foi desbaratada na manhã da última quinta-feira (30) pela Polícia Federal, mas o começo da história é bem anterior. Data de 2022, ano em que Alexandre Brasil ocupava o cargo de pró-reitor de Pessoal da universidade.
Na época, a equipe técnica da PR-4 desconfiou de uma série de processos que solicitavam a revisão de pensões pagas para herdeiros de docentes e técnicos da UFRJ falecidos.
“As solicitações tinham textos muito parecidos. Fomos checar e as documentações de vários processos eram idênticas. Endereços, extratos bancários, conta de luz, tudo com nomes diferentes, mas dados iguais. Cruzamos todos os dados e percebemos a conexão entre eles. Havia um esquema ali”, recorda o docente, licenciado do Nutes-UFRJ, e hoje na assessoria técnica da secretaria-executiva do MEC, em Brasília. “Fiquei muito feliz quando li agora as notícias de que a quadrilha havia sido desbaratada. Foi uma sensação de dever cumprido”.
Antes do alívio, no entanto, o caso teve lances policiais inusitados. Assim que identificou a prática da quadrilha, Alexandre comunicou o caso aos chefes –reitora Denise Pires de Carvalho e vice-reitor Carlos Frederico Leão Rocha– e à Procuradoria da universidade. A orientação foi que levasse o assunto à Polícia Federal. “Alexandre foi corajoso e rigoroso. Essa quadrilha não teria sido desmontada sem o trabalho dele naquela época”, elogia Fred, hoje diretor do Instituto de Economia. “Me lembro do caso. Foi muito sério”, completa Denise.
Na mesma semana, Brasil seguiu as instruções e foi até a sede da Polícia Federal, no Centro do Rio. “Lá me disseram que a solução mais eficiente seria uma ação em flagrante”, conta. “Saí de lá pensando em como preparar esse flagrante. Chamei minha equipe na PR-4 e montamos uma estratégia”.
O flagrante ocorreu dentro da PR-4, e pasme, Alexandre Brasil, um sociólogo, deu voz de prisão ao suspeito. “Preparamos uma emboscada. Comunicamos ao autor do processo, um advogado que dizia representar um docente falecido, e pedia o reconhecimento de uma suposta união estável para assim receber a pensão. Disse que precisávamos de uma reunião para conversar sobre a documentação”, recorda.
VOZ DE PRISÃO
O suposto advogado topou. Alexandre comunicou à PF que estava com tudo pronto para obter o flagrante e pediu que a Federal acompanhasse o encontro. A PF o parabenizou, mas disse que não poderia acompanhar e que ele próprio deveria dar voz de prisão ao suspeito. “Imagina, eu nunca tinha feito isso, mas fiz”, lembra. “Os policiais militares ainda tentaram me desencorajar, disseram que o cara poderia não me respeitar. Resolvi arriscar. Os agentes da PM e a Diseg não entraram. Ficaram na porta”.
O suposto advogado chegou à UFRJ de moto. Era um homem jovem, pardo, com carteira da OAB, e surpreendente tranquilo, segundo Alexandre Brasil. “Eu falei das inconsistências dos documentos. Ele nem se alterou. Achei muito estranho”, conta.
Foi então que o professor, ali no salão da PR-4, deu a voz de prisão. “O senhor está preso e vai me acompanhar até a Polícia Federal”.
Brasil e o suspeito foram até a sede da Polícia Federal. O inquérito foi instaurado e as investigações começaram até que, na última quinta-feira, a PF divulgou os primeiros resultados.
O esquema identificado pelo professor e pela equipe da PR-4 movimentou mais de R$ 22 milhões de pensionistas de docentes e técnicos da UFRJ falecidos. “Eu não fazia ideia de que era tão grande, mas já naquela época ficou claro que era algo bem planejado. Fizemos isso porque era nosso dever. Somos servidores públicos. É nossa obrigação.”
REITOR ELOGIA BRASIL E SERVIDORES DA UFRJ
“Alexandre Brasil agiu corretamente. Foi exemplar. As investigações isentaram qualquer participação de servidores da UFRJ no crime. Não tivemos acesso ao inquérito. Mas, pelas informações que chegaram até mim, não houve indiciamento de nenhum servidor até agora, o que me deixou muito feliz. A UFRJ, tão logo soube de um caso, abriu auditoria, descobriu novos casos e encaminhou para a Polícia Federal. Ou seja, a UFRJ é vítima desses criminosos.
Não fomos procurados, mas estamos totalmente abertos para ajudar a Polícia Federal a debelar esta e qualquer outra fraude. A orientação é essa: sempre checar o contracheque. Hoje, temos o SouGov. Não tem mais a distribuição do contracheque físico. E, se desconfiar de algo, imediatamente procurar a pró-reitoria de Pessoal que nós investigaremos. Se houver algum indício de fraude, comunicaremos à Polícia Federal”.
AÇÃO DA UFRJ CONTRIBUIU PARA DESMONTE DE QUADRILHA
Na última quinta-feira, 30 de outubro, a Polícia Federal deflagrou a Operação Capgras para combater a prática de falsificação de documentos, estelionato contra ente público federal, lavagem de dinheiro e organização criminosa. A quadrilha cometia fraudes para desviar pensões e benefícios de técnicos e professores falecidos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
As investigações apontaram que os envolvidos movimentaram cerca de R$ 22 milhões entre janeiro de 2022 e dezembro de 2024.
Outras fraudes foram identificadas no curso das investigações, como golpes bancários e fraudes em benefícios previdenciários. Também foram revelados indícios de que parte dos recursos obtidos pode ter sido direcionada a pessoas ligadas à cúpula de uma das maiores facções criminosas atuantes no estado do Rio de Janeiro.
As apurações revelaram um complexo esquema de vultosas movimentações financeiras, com utilização de laranjas e empresas de fachada para ocultar a origem e o destino dos valores arrecadados ilegalmente. Os membros do grupo se valiam de documentação fraudulenta para se passarem por familiares de ex-professores, ludibriando a instituição.
Fonte: Comunicação da Polícia Federal
SERRA DA MISERICÓRDIA Icônico Santuário da Penha fica no topo do maciço que foi palco da chacina e liga os complexos do Alemão e da PenhaO olhar da ciência sobre a chacina no Alemão não será distante nem isento. Grandes pesquisadores de diferentes universidades e instituições do Rio de Janeiro vão se reunir neste sábado, dia 1°, às 9h30, para debater a política de segurança pública do estado e denunciar o uso da violência como instrumento político.
A ideia é formar uma rede de cientistas em combate à barbárie, à política de extermínio e ao negacionismo científico. Evidências apontam que o caminho para o enfrentamento ao crime organizado passa por ações de inteligência que combinem estratégias de seguranças com políticas sociais consistentes e permanentes.
Ações como a que resultou em 121 mortes, além de inaceitáveis do ponto de vista ético, provocam ainda mais ações violentas, mais ódio e espraiam insegurança em toda a população do estado, especialmente a que vive em áreas conflagradas.
A ciência é e sempre será uma ferramenta de desenvolvimento social e de proteção da vida.
A organização é da AdUFRJ - Associação dos Docentes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, CBPF - Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas e CEE - Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz.
Também participam: Andes, Aduff, ANPG, Adur e diversos grupos de pesquisa do estado do Rio de Janeiro.
Toda a sociedade fluminense está convidada a participar e ajudar a refletir sobre os caminhos que levam à falência da política de segurança pública do Rio de Janeiro e como podemos virar esse jogo.