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Pretos e pardos são a maioria da população brasileira. Eles correspondem a 55% dos brasileiros. No estado do Rio, o percentual alcança 58%, ficando atrás apenas da Bahia. Esses números, no entanto, não se traduzem em “democracia racial” ou igualdade de condições de vida e de oportunidades. A população carcerária brasileira corresponde a mais de 400 mil pessoas e é formada em 70% por pessoas negras.
Também entre negros estão os índices mais baixos de educação formal. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PND) do IBGE, publicada em julho, revelou que 63,4% das pessoas brancas do país tinham completado a educação básica até 2024. Entre pessoas negras, o percentual era de 50%. Também são pessoas negras as que mais sofrem com o analfabetismo. A taxa, entre pretos e pardos, é de 7,1% de analfabetos, e de 3,2% entre pessoas brancas.
A violência é outra faceta cruel do racismo estrutural brasileiro. Pessoas negras morrem mais por homicídio. A taxa de óbitos por morte violenta é de 76%. A juventude negra é a mais vulnerável. A maioria das vítimas são homens jovens, entre 15 e 29 anos. Segundo o Atlas da Violência, o risco de uma criança ou adolescente negra ser assassinada é 3,3 vezes maior do que de crianças e adolescentes brancas.
Graças a políticas de ações afirmativas, como a lei de cotas, as universidades federais já possuem 51% do seu quadro estudantil formado por pretos e pardos. Para Denise Góes, da Superintendência-Geral de Ações Afirmativas, Diversidade e Acessibilidade da UFRJ (SGAADA), a conquista é um marco importante, mas não é suficiente. “Dar o acesso é fundamental, mas é tão importante quanto manter esse estudante na universidade. São realidades atravessadas não só pelo racismo, mas por muitas outras questões estruturais que podem fazer com que ele desista da graduação”, aponta.
Necessidade de ajudar no sustento familiar, violência urbana, lacunas acadêmicas e falta de suporte emocional e acadêmico estão entre os principais fatores que podem contribuir para a evasão, analisa a superintendente. “Essa vulnerabilidade vem de um processo de não-escolarização, por conta da escravização o que, consequentemente, implicou na negação do acesso ao ensino superior”, pontua. “É uma dívida histórica muito longe de ser liquidada”.
O professor Papa Matar Ndiaye, da Escola de Química, concorda. “A política de permanência apresentou melhorias, mas continua insuficiente. Precisamos dos meios adequados para garantir a formação desses estudantes negros”, afirma. “O processo de formação e elitização da sociedade levam ao quadro de sub-representação de pessoas negras, que não é uma questão só da universidade, mas da sociedade brasileira”.
CARREIRA DOCENTE DESIGUAL
No caso do acesso à carreira docente, pessoas negras enfrentam ainda mais barreiras. Na UFRJ, por exemplo, dos 3.959 docentes do Magistério Superior, apenas 129 (3,26%) se autodeclaram pretos e 523 (13,21%), pardos. Mais de 80% de autodeclaram brancos e 1,74% não informou sua origem étnica. Já entre os 92 professores efetivos do EBTT, 76% se autodeclaram brancos, 4,35% pretos e 17,39% pardos. Os dados são do Painel Estatístico da PR-4.
As cotas na pós são realidade recente na academia e ainda reverberam pouco nos concursos, como avalia a pró-reitora de Pessoal, Neuza Luzia Pinto. “As políticas de ações afirmativas para a população negra aconteceram neste século, cerca de uma década atrás, para acesso aos concursos públicos”, aponta. Um marco muito recente, se comparado aos séculos de escravidão aos quais essa população foi submetida. “Eu vejo que o quadro começará a mudar a médio prazo, na medida em que mais negros acessam a graduação, a pós-graduação. Essa formação mais completa aumenta a possibilidade de mais negras e negros entrarem em nossos quadros de docência”, analisa.
Além disso, as vagas ofertadas muitas vezes não alcançam o que estipula a lei. No caso da UFRJ, ocorreu uma mudança significativa a partir de 2022. “A UFRJ ainda tem muito o que avançar na aprovaçãoem seus concursos. Entre 2014 e 2021, houve uma sub-oferta das vagas para cotistas, fato que é compartilhado por praticamente toda a rede de Universidades Federais”, avalia o professor Alexandre Brasil, Titular do Instituto Nutes e diretor da Secretaria-Executiva do Ministério da Educação.
O docente era pró-reitor da UFRJ, quando ocorreu o primeiro concurso docente após a aprovação da Resolução 15/2020, do Consuni. “Tive o privilégio de estar à frente da PR-4 nos concursos retomados em 2022. Como resultado, 23,6% dos novos docentes que ingressaram em 2022 se declararam de cor preta ou parda”, conta o docente. “Até a aprovação da lei, em 2014, esse percentual era de 13%. Já entre 2015 e 2021 chegou a 18,8%, ainda abaixo dos 20% previstos na lei de cotas, sendo que a maioria destes não ingressaram por meio das vagas reservadas”, afirma Brasil.
O ex-pró-reitor revela que a universidade possui um déficit de 129 vagas que deveriam ter sido ofertadas para docentes cotistas nos concursos entre 2014 e 2021. Vagas que não foram oferecidas por uma leitura mais restritiva da lei de cotas. “Seis universidades adotaram, a partir de 2024, percentuais maiores, de 30% a 40%, de vagas reservadas visando a reposição da quantidade não ofertada. conta o docente. “Ter uma universidade com a maior presença de docentes negros precisa ser um objetivo assumido por todos”.
Orgulhosos rostos pretos vão compor uma galeria permanente na UFRJ. No mês da Consciência Negra, em que se destaca a figura mítica de Zumbi dos Palmares, a exposição “Memórias Negras” pretende aquilombar trajetórias de docentes e técnicos negros que construíram e constroem a história da universidade. O projeto foi concebido pelo Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH). Com imagens de 55 professores e 24 técnicos, a exposição será lançada no próximo dia 27, às 17h, no auditório Professor Manoel Mauricio Albuquerque, na Praia Vermelha.
“O foco é tornar visíveis imagens de técnicos e docentes negros da UFRJ, num recorte do CFCH. Há um histórico de pessoas negras tanto na área técnica quanto na área docente, mas essas pessoas são invisibilizadas. Vamos juntar pessoas com muito tempo na universidade e pessoas jovens e recém-chegadas, como um jogo da memória”, explica o professor Vantuil Pereira, decano do CFCH e idealizador do projeto. A exposição permanente ficará no Espaço Jessie Jane Vieira de Souza, do CFCH, mas terá mostras itinerantes para o Colégio de Aplicação e para o IFCS/IH.
Erika Marins e Vantuil Pereira
Erika Fernanda Marins de Carvalho, assistente social e técnica-administrativa do Centro de Referência de Mulheres da Maré — projeto do Núcleo de Estudos em Políticas Públicas em Direitos Humanos (NEPP-DH) —, é uma das fotografadas para a exposição. “Esse projeto relembra e resgata minha trajetória na UFRJ. Fui aluna do Serviço Social e passei no concurso para ser servidora, realizando um sonho. As pessoas pretas são merecedoras de estarem nesses lugares. A universidade pública ainda tem um pensamento colonial, nós enfrentamos dificuldades de acesso ao ensino superior, e somos minoria no corpo social, como docentes e técnicos. Dar visibilidade ao nosso povo dentro da universidade é de extrema importância. O projeto faz isso: nós estamos aqui, nós construímos essa universidade”.
O decano Vantuil Pereira espera que o projeto incentive outras áreas da UFRJ a dar mais visibilidade aos servidores pretos: “O CFCH tem hoje, em termos proporcionais, o maior número de docentes negros da UFRJ. Salvo engano, o número total de autodeclarados negros na universidade está em torno de 400. O projeto traz isso à tona também. Essas imagens, juntas, produzem uma força. O projeto quer colocar em relevo essa força negra. Esperamos que essa exposição crie um impacto na instituição, que ela se replique por outros centros, que seja uma inspiração”.
ARTIGO | Paulo Baía, sociólogo, cientista político, ensaísta e professor aposentado da UFRJ
Como professor aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro, manifesto aqui minha sincera emoção, gratidão e compromisso com a história que vivi e continuo a viver ao lado de tantos companheiros e companheiras de jornada
A presença de docentes pretos e pardos na UFRJ sempre foi minoritária. Essa minoria revela, de forma dolorosa e persistente, a força do racismo estrutural que, há séculos, exclui moradores de favelas, trabalhadores, suburbanos e habitantes das periferias do acesso pleno à educação. Essa exclusão começa no ensino fundamental, atravessa o ensino médio e, ainda hoje, marca profundamente o ensino superior.
Sou um homem de 74 anos. Tive o privilégio de realizar duas graduações, em Estatística e em Ciências Sociais. Iniciei a minha trajetória como professor da UFRJ em 1977 e me aposentei em 2018. Durante todo esse percurso, fui um corpo diferente entre meus colegas. Um corpo que destoava, mas que nunca deixou de encontrar respeito, parceria e boas amizades ao longo do caminho.
Por isso, quando o professor Vantuil, decano do CFCH, me convidou para participar da sessão de fotos de professores pretos e pardos da UFRJ, aceitei de imediato. Não apenas por mim, mas por todos que caminharam antes de mim e por todos os que ainda chegarão. A iniciativa é poderosa. Ela ilumina trajetórias que fizeram e fazem a UFRJ ser o que é. Trajetórias que contam a história da instituição a partir de corpos que tantas vezes foram silenciados, invisibilizados ou esquecidos.
Hoje, vejo uma universidade diferente. As políticas de ações afirmativas transformaram o cotidiano da UFRJ. A universidade está mais colorida, mais preta, mais mestiça. A presença dos jovens das favelas, das periferias e dos subúrbios começa a ocupar espaços que sempre lhes pertenceram. Os números ainda não refletem a proporção real da população brasileira revelada pelo Censo Demográfico de 2022 do IBGE, mas representam um avanço irreversível e profundamente simbólico.
Esta exposição é uma luta contra o apagamento. Um gesto de memória, justiça e reparação. É um chamado para que os próximos cem anos da UFRJ sejam construídos com mais igualdade, mais diversidade e mais coragem.
Agradeço, com enorme admiração, ao professor Vantuil, cuja dedicação incansável combate o racismo, enfrenta os racistas e afirma diariamente os direitos fundamentais do povo preto e pardo no Brasil e no Rio de Janeiro. Sua iniciativa não apenas acolhe. Ela devolve dignidade, orgulho e pertencimento.
Assino esta declaração com o coração cheio, honrado por fazer parte dessa história e esperançoso pelas histórias que ainda virão.
ENTREVISTA I ALEXANDRE WERNECK, COORDENADOR DO NÚCLEO DE ESTUDOS DE CIDADANIA, CONFLITO E VIOLÊNCIA URBANA DA UFRJ
Foto: arquivo pessoalNesta semana, favelas da Zona Sudoeste da cidade foram alvos de operações policiais. Só que desta vez, sem corpos, sem feridos, sem intenso tiroteio, sem grande aparato policial. Cenário bem diferente de duas semanas atrás, quando a megaoperação policial dos complexos do Alemão e da Penha gerou a maior chacina do país.
Para entender o contraste entre as operações e a escalada do conflito urbano, o Jornal da AdUFRJ ouviu o professor Alexandre Werneck, coordenador do Núcleo de Estudos de Cidadania, Conflito e Violência Urbana da UFRJ. Werneck foi orientando do professor Michel Misse, um dos maiores nomes em segurança pública do Brasil (falecido em agosto), e é herdeiro de seu legado intelectual. Werneck analisa, nesta entrevista, as relações entre crime e Estado e nos dá pistas sobre como a academia pode intervir no debate público sobre segurança.
Jornal da AdUFRJ - O que leva uma operação ter a ação de uma só força policial, sem trocas de tiros e mortes; e outra contar com expressivo aparato e vasto número de mortes?
Werneck - Evidentemente, a gente está falando como observador externo e uma resposta do tipo “justificativa” para uma diferença entre uma operação e outra deveria vir do governo. Eles certamente terão argumentos supostamente técnicos. Falo “supostamente”, porque vários dos argumentos utilizados para o massacre do Alemão e da Penha foram também supostamente técnicos. Havia um discurso de responder a minúcias da ADPF para justificar a ação.
Há uma especificidade daquela operação do ponto de vista de seus objetivos. O resultado dela, sabemos: os mandados de prisão não foram cumpridos de fato, o grande manancial de corpos produzidos pela operação não foi responsável por uma neutralização do Comando Vermelho. Há certo consenso de que essa operação tinha muito mais o sentido de fazer uma declaração de força e de tentativa de deslocar o debate público do país para a discussão da segurança pública. O que está colocado é centrado não em soluções sociais, de segurança no sentido humanista, de gestão da cidadania. O que está posto é um projeto em favor de soluções econômicas, de investimento/resultado.
E eu preciso falar o óbvio: o Brasil não conta em seu arcabouço jurídico com a pena capital. A eliminação definitiva de um sujeito, seja ele criminoso ou não, não pode ser o resultado ou o fim de uma operação. O Estado não pode fazer isso. Aquela operação parece ter sido pensada para ser um recado público. Acabar com o crime eliminando criminosos é ineficaz. Repensar a própria ideia de segurança, garantindo cidadania, direitos, isso, sim, é política de segurança.
Há uma aceitação social que permite execuções em certos pontos da cidade?
Certamente há uma aceitação social. Há um apelo à raiva que leva as pessoas a adesões simplistas. As pesquisas de etnografias e observações diretas nas favelas expressam esse tipo de apoio a essas medidas. A raiva é constantemente mobilizada.
Todas as pessoas têm medo de morrer, mas umas estão mais expostas a essa possibilidade do que outras. O que pauta a sensação de segurança de boa parte das pessoas é o medo de perder o celular, não um risco concreto de morte. Quem corre risco concreto de homicídio hoje é, prioritariamente, o morador de favela. O perigo propriamente existencial é circunscrito a determinadas parcelas da população, enquanto o perigo patrimonial é circunscrito a outras. Isto no aspecto racional.
Do ponto de vista simbólico, isso é trabalhado de outra maneira. A raiva é mais mobilizadora que o medo. O medo é utilizado como argumento racional, mas a raiva é o sentimento efetivamente mobilizado. Quando alguém diz “matou pouco”, como vemos em redes sociais, isso é expressão da raiva. Se a gente não debelar esse mecanismo de injeção de raiva no debate público, a gente não vai conseguir fazer um debate sério sobre segurança cidadã.
Muitos desses locais da Zona Sudoeste são de domínio da milícia ou de recente ocupação do CV. O senhor acredita que isso poderia explicar em parte essa ausência de letalidade e de conflito armado?
É possível. Evidentemente, há um conteúdo de especulação aqui, mas raciocinemos. Milícia não é um tipo específico de quadrilha. A milícia é uma forma de atuar. O modus operandi básico é que agentes do Estado, dotados de monopólio conferido pelo Estado de mobilização de força, privatizam esses dispositivos para cobrança por produtos e serviços. É diferente de uma facção encastelada numa região da cidade para venda de um produto, a droga. A milícia tradicionalmente é um dispositivo de exploração de monopólio de mercado. Esse modus operandi depende de policiais, bombeiros etc.
A relação escusa do Estado com o tráfico está no pagamento do “arrego” para evitar as operações policiais. Na milícia, a relação escusa se dá entre PM negociando com PM. É possível, portanto, que isso module as relações entre os territórios e as forças de Estado. Mas isso só o detalhamento das tomadas de decisão por parte das forças policiais é capaz de explicitar. O que a gente pode fazer é entender o contexto. De todo modo, mesmo não tendo havido mortes nas operações desta semana, o tipo de ação continua sendo imediatista.
Nos seus 20 anos de pesquisas nesta área, o senhor percebe uma manutenção, melhora ou piora em relação aos conflitos urbanos e aos resultados de operações policiais? Há um “enxugar de gelo”?
Há duas questões em paralelo: a primeira delas é o problema do crime. A outra, é a solução imediatista, que é a violência de Estado. Do ponto de vista do crime, a gente vive uma espécie de sazonalidade ao sabor de inúmeros fatores que envolvem desde uma problemática fundamental de cidadania, até sabores eleitorais que se manifestam e a própria pauta da vida econômica do país. Momentos mais sérios de crise econômica produzem respostas diferentes. Esse é um pedaço da questão.
Foto: Tomaz Silva /agência Brasil
Agora, do ponto de vista da resposta do Estado, certamente piorou muito. Tanto piorou que a gente acabou de testemunhar a maior chacina do país, secundada por outra chacina recente que já tinha sido a maior do estado, quando 28 pessoas foram mortas. A escalada aí é muito perigosa de resposta ao crime, mas também de mudança qualitativa. Há recusa de cidadania, de direitos humanos, recusa da nossa própria ordem social.
A gente evidentemente tem um problema de crime que precisa ser resolvido com solução de inteligência, mas também com solução de cidadania. O “enxugar gelo”, como você diz, não é apenas uma contingência de políticas de segurança ineficientes, tornou-se um elemento das políticas de segurança. Elas são concebidas para serem imediatistas, pontuais. A vida das pessoas se tornou massa de manobra para esse tipo de movimentação imediatista.
Evidentemente que o crime é um problema concretamente experimentado, sobretudo pelas populações mais pobres, mas a classe média também experimenta o crime com seu celular furtado, com seu carro roubado etc. No entanto, a pauta nacional é mais ampla. A centralização dessa pauta apaga a capacidade de atenção das pessoas a outros problemas de igual ou maior monta.
Como a academia pode intervir nesta realidade? Como convencer os gestores a trabalharem com evidências científicas no combate ao crime organizado?
Não é uma tarefa simples nem fácil. A gente vive um momento muito difícil de obscurantismo em relação ao conhecimento em geral. Não nos esqueçamos que viemos de um governo central contrário a políticas de saúde com base científica, antivacina. Esse mesmo governo central fazia um discurso, na figura de seu ministro da Educação, afirmando serem as ciências humanas anedóticas, ’antro’ de posições políticas e não científicas. Esse obscurantismo irresponsável ajudou a construir um certo campo de tomada de decisão não baseada em evidências científicas.
A academia, a universidade pública, tem um mandato de responsabilidade na produção de conhecimento qualificado. Se ela fizer o que tem que fazer, como já faz, já está produzindo esse serviço para embasar políticas públicas. A academia também é centro de ensino e extensão, de conversa com a sociedade. A divulgação científica é um espaço importante de circulação desse conhecimento científico de alto nível para a população em geral. As descobertas das ciências sociais também necessitam ser traduzidas para o público. Precisamos explicar os nossos achados e precisamos dos meios de comunicação dispostos a isso.
O Jornal da AdUFRJ ouviu seis professores titulares negros, de diferentes unidades e centros da UFRJ, sobre a subrepresentatividade da população negra no quadro docente. Eles contam um pouco de suas trajetórias, avaliam os percauços da vida acadêmica e apontam o racismo estrutural que ainda precisa ser superado na universidade e na sociedade
Ana Cristina Barros da Cunha
Professora Titular
do Instituto de Psicologia
“Eu sou a primeira filha formada em nível superior e em uma universidade pública. Embora tenha tido acesso a uma formação consistente, ela desde sempre foi muito sofrida. Eu estudava como bolsista em escolas de elite, então aprendi desde cedo a ter resiliência. Não era uma resiliência de letramento racial, mas de sobrevivência.
Na universidade, entramos eu e mais 4 estudantes negras. Havia uma enorme falta de pertencimento. O Instituto de Psicologia era um universo branco da UFRJ. Usei essa resiliência para seguir minha graduação. O racismo faz isso. A gente se adequa às estruturas racistas para tentar sobreviver. Isso me ajudou a me posicionar na UFRJ, mas confesso que durante muito tempo fiquei no ostracismo, tentando sobreviver.
A professora Leila Nunes (falecida em 2023) me preparou para a carreira acadêmica. É alguém em quem me inspiro. Ela acreditou em mim. Os alunos negros eram silenciados e com isso, algumas pessoas sucumbiam. Das quatro alunas que entraram comigo, só duas continuaram na graduação. Hoje tenho alunos que são meus filhos acadêmicos e cuido deles buscando ser inspiração para que eles tenham a chance de se sentirem pertencente à UFRJ e sonhar em ocupar no futuro espaços representativos, como eu ocupo hoje.
Imagino que o quantitativo de docentes negros aumente com o tempo. As cotas conferem um futuro mais promissor para aqueles que querem seguir carreira acadêmica. Mas há outros mecanismos que dificultam a construção desses requisitos para a progressão na carreira. Ser titular não é mérito, é resultado de muito trabalho. Percebo que ainda há barreiras atitudinais em muitas unidades, que dificultam a carreira de professores negros.”
José Jairo Vieira
Professor Titular da Faculdade de Educação, Pesquisador de Produtividade do CNPq,
Cientista do Nosso Estado da Faperj, representante dos Titulares do CFCH no Consuni
“Eu trabalho com educação antirracista. É um tema que me acompanha há 31 anos na minha carreira de professor federal. Na docência do ensino superior ainda há grande subrepresentatividade.
Quando entrei no primeiro concurso, na Universidade Federal de Viçosa, eu era o único negro do meu Centro. Depois, fiz novo concurso para a UFRJ, em 2007. De lá para cá, o quadro mudou um pouco. Mas quando você quer desenvolver certos diálogos, algumas interações que dependem da vivência do docente negro, você encontra, sim, certa solidão no percurso.
Estamos em fase de mudança curricular na FE e teremos a disciplina ‘Educação das relações etnico-raciais’ obrigatória para todos os cursos da licenciatura. Também desenvolvemos a disciplina ‘Educação escolar quilombola’, que será eletiva para as licenciaturas. Assim, vamos trabalhando a solidificação da temática antirracista na universidade. Essas disciplinas foram pensadas a partir do diálogo com professores negros. É um exemplo concreto da mudança de perspectiva quando um grupo tem acesso a um espaço de construção do conhecimento. É importante que a gente possa estender essa experiência para todas as universidades brasileiras, de forma a combater o racismo da nossa sociedade. Racismo, esse, que está presente ainda hoje também na universidade. Cadê os professores negros nos espaços de poder? Ainda precisamos, internamente, traçar esses caminhos.”
Nilo Pompílio da Hora
Professor Titular da Faculdade Nacional de Direito
“Eu vejo, ainda, algumas posturas muito refratárias na academia, em especial em programas de pós-graduação. Eu, por exemplo, não consegui ingressar ainda em um programa de pós. Certa vez, logo depois que concluí meu doutorado, pedi a determinado docente para ingressar no programa. Então ele me disse: ‘Tua área do conhecimento não me interessa.’ Essa pessoa continua lá com essa linha de pensamento.
Vejo que quando colegas negros são chamados a integrar algum espaço de poder, eles são sempre colocados em posições secundarizadas. Ou, então, os convites nem chegam. É aquele: ‘Eu gosto de você, mas você não joga no meu time.’ Isso é real e é motivado pela cor da pele. É assim na sociedade e na academia, infelizmente, não é diferente. Estamos em 2025 e ainda há colegas em ilhotas que continuam reproduzindo esses comportamentos de exclusão.
Temos avançado. Há espaços sendo conquistados, demarcados, mas precisamos de mais participação efetiva na academia. É um absurdo termos apenas nove, dez docentes titulares em toda a UFRJ.”
Antônio Carlos dos Santos
Professor Titular do Instiituto de Física
“A UFRJ ainda é o lugar dos herdeiros. É muito comum ver professores da que são filhos, sobrinhos, netos de professores. Com a herança, vem junto o capital social. Abrem-se mais portas para quem tem esse histórico familiar. Ter um sobrenome ainda é muito importante na univesidade.
Muitos colegas negros relatam quase que uma solidão. Trabalham sozinhos porque não têm pares em suas áreas. Não são convidados para bancas, não são convidados para projetos e também não têm o lastro familiar da academia. Quem é negro e está aqui, geralmente é o primeiro da família.
Mesmo quando você ascende na carreira, aquela posição conquistada é reconquistada o tempo todo. O tempo todo você é testado. O docente negro tem que provar seguidamente que está ali por sua competência. E isso afeta o psicológico.
A mudança ainda é muito gradual e lenta. Volta e meia ouço relatos de que uma candidata negra conquista o primeiro lugar no concurso, mas é contestada por uma candidata branca. É um mecanismo perverso que insistentemente questiona a presença desses docentes. Ter que provar que merece estar ali mina a saúde mental.
Uma pessoa branca não tem obrigação de ser a melhor a todo momento; uma pessoa negra tem essa obrigação. É um peso.
Já sofri preconceito até de alunos. Uma aluna branca não aceitou uma explicação minha sobre uma questão da prova unificada. Quando um aluno branco falou exatamente a mesma coisa que eu disse, ela acreditou nele. Veja, eu tenho mais tempo de universidade do que ela tem de vida. Esse é um atestado de racismo que muitas vezes não é reconhecido pela comunidade. Se uma pessoa negra diz isso, é mimimi. Então, muitas vezes você carrega essas agressões consigo sem sequer poder desabafar. É preciso ter resiliência.”
Fernando Pereira Duda
Professor Titular da COPPE
“Meu avô, pai da minha mãe, era bem retinto. Já a minha avó era indígena. A família do meu pai, que não tive muito convívio, era branca. A mistura é muito grande. Consciência negra passa também por nos reconhecermos melhor. Mas acho que a subrepresentação na UFRJ é algo que talvez vá além da questão de raça.
No meu caso, o que mais marcou foi o fato de ser nordestino, de vir de uma família de agricultura de subsistência. Quando eu tinha 5 anos, minha mãe se separou do meu pai para fugir da violência. Eu e meus irmãos fomos morar com meus avós. Isso me criou uma ‘casca grossa’. O pessoal do povoado chamava o meu avó de negro besta, porque ele fazia questão que os filhos estudassem, algo incomum na época.
Depois que eu saí do interior, eu não encontrava ninguém igual a mim. Fui o primeiro dos irmãos e da minha geração de amigos a entrar na universidade. Depois, fui puxando outros. Ninguém conseguiu nada sozinho. Muita gente ajudou. A nossa conquista é coletiva.
As cotas podem mudar o quadro do corpo docente da universidade, mas há muitas peneiras no meio do caminho. É preciso cuidar da formação básica também. Eu fui privilegiado por conta dos apoios que tive, mas vi muita gente boa ficar no meio do caminho.”
Maria Soledade dos Santos
Professora Titular da Escola de Enfermagem Anna Nery, diretora do Neabi
“Iniciamos um levantamento com o Coletivo de Docentes Negros para que a gente pudesse se achar, ainda na pandemia. Nesse momento, a gente começa a se ver e perceber que não somos convidados, chamados, reconhecidos para altos cargos. Eu só comecei a integrar funções de gestão na universidade após chegar a Associada. Então, aos poucos, estamos saindo da invisibilidade.
Somos muito poucos e há dificuldades para o ingresso de novos docentes negros. Ainda há uma enorme reparação que precisa ser executada na universidade. Há candidatos que vão bem na primeira etapa do concurso, mas não dão continuidade. Outros, julgam que não foram bons o suficiente e desistem. A gente não sabe bem o que acontece nesse processo. Sou da Comissão de Acompanhamento e, a partir dessas situações, fizemos um conjunto de observações para as bancas, que são majoritariamente brancas e formadas por homens. Esse levantamento levou a construirmos uma base de dados em parceria com a ABPN (Associação Brasileira de Pesquisadores Negros) para listar esses pesquisadores de todo o Brasil. Ouvimos muitas vezes: ‘Ah, a gente não coloca docente preto na banca porque não tem’. Mas na verdade, tem. A Fiocruz usou nosso banco, a USP. Então, a partir dessa possibilidade de entrada desse docente é que poderemos ampliar a participação de docentes negros na gestão. A última reunião do CPEG que fui, só tinham docentes brancos. No CEG, sou a única. O quadro na nossa própria universidade ainda é muito complexo.”
Foto: Alessandro CostaRenomados cientistas que atuam no estado do Rio de Janeiro se reuniram no último sábado, 1º de novembro, na UFRJ, para formar uma rede de pesquisadores contra a violência. A tese dos estudiosos é que a crise de segurança que assola o Rio de Janeiro não é um problema isolado e só poderá ser resolvida com políticas baseadas em evidências científicas.
O encontro foi organizado em resposta à chacina que vitimou pelo menos 121 pessoas no final de outubro. O plano de ação inclui, ainda, pressionar instituições financiadoras, como Capes, CNPq e BNDES, a abrirem editais de fomento específicos para pesquisas que discutam e proponham soluções para a segurança pública.
Mais de 80 pesquisadores de diferentes instituições do Rio de Janeiro, além de parlamentares e lideranças comunitárias, participaram do encontro. A ADUFRJ foi uma das organizadoras. “A ideia é que tenhamos recursos para que essa rede tenha condições de se estabelecer”, explicou a presidenta do sindicato, professora Ligia Bahia. “Nós precisamos intervir no debate público sobre segurança, mas também atuar na defesa dos direitos sociais”, resumiu.
Michel Gherman, 2º vice-presidente do sindicato, defendeu a importância de articular teoria e prática para combater a barbárie. “Nossa intenção é constituir um fórum de pesquisa, de política e de ação”, complementou.
Considerado um dos maiores especialistas em segurança pública do país, o antropólogo Luiz Eduardo Soares criticou duramente a operação realizada nos complexos do Alemão e da Penha. “Não é crível, não é verossímel, que alguém responsável possa acreditar que uma operação dessas tenha algum impacto além das mortes”, disse. “Portanto, trata-se de uma mudança de agenda pública. A soberania nacional estava ganhando cada vez mais espaço e, mais uma vez, o ‘coelho na cartola’ foi a carnificina, o banho de sangue”, concluiu.
EXTERMÍNIO
O sociólogo Ignácio Cano, professor do Instituto de Ciências Sociais da Uerj, apresentou indicadores de uma pesquisa realizada por seu grupo de estudo, que analisa o uso da força letal policial em nove países da América Latina. Um desses indicadores mede o número de mortos e o número de feridos numa ação. “Normalmente, em qualquer ação de conflito armado há um número maior de feridos do que de mortos, 1x3, 1x4”, disse. “Quando você tem mais mortos do que feridos, isso indica abuso da força letal e intenção de matar”, explicou. “Nesse massacre, eu não encontrei um suspeito ferido que sobreviveu. Temos 117 mortes de um lado e zero feridos. É muito exemplificador do grau de extermínio desse massacre”.
Para o professor João Trajano, do Instituto de Ciências Sociais da Uerj, a defesa da ciência tem relação direta com a defesa da democracia. “Eu tenho a impressão de que temos um Estado Democrático de Direito circunscrito a determinados espaços da cidade e um Estado de Exceção permanente (nos territórios de favela). É isso que estamos vivendo e eu não sei como a gente sai disso”, desabafou o professor. “Do ponto de vista da comunicação, nós estamos perdendo essa disputa”.
REAÇÃO CONJUNTA
Além da ADUFRJ, outras instituições fizeram parte da organização do encontro, como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Ana Tereza Vasconcelos, diretora da SBPC, leu trecho da nota assinada pelas direções da SBPC e ABC (Academia Brasileira de Ciências). “É urgente a revisão da política de segurança pública, substituindo a lógica de guerra pela da prevenção e da cidadania, bem como o acesso público a informações e pesquisas sobre a letalidade policial, condição essencial para um debate democrático e para a formulação de políticas baseadas em evidências”.
João Paulo Sinnecker, vice-diretor do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), outra instituição organizadora do encontro, considera que o grande desafio é o diálogo constante entre a academia e a sociedade. “Como estabelecer esse diálogo, de forma a trazer evidências científicas concretas dos caminhos que a gente pode seguir?”, questionou. “O CBPF se coloca à disposição para contribuir para dialogar com a sociedade e com quem está do lado oposto a nós”.
Alessandro Jatobá, coordenador adjunto do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz, entidade também organizadora do evento, alertou para o impacto do negacionismo científico na formulação de políticas de segurança. “Esse cenário é especialmente estarrecedor, mas não surpreendente. As evidências científicas são constantemente ignoradas na formulação de políticas públicas e há enormes críticas à atuação dos cientistas, como se a ciência não detivesse os métodos para compreender as realidades das comunidades brasileiras”, disse. “Precisamos combater de forma consistente esse discurso negacionista sobre o papel da ciência no desenvolvimento de políticas públicas”.
Diretor do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio, o professor Marcelo Burgos comentou a pesquisa de opinião que revelou que 90% dos moradores de favelas são a favor de operações policiais. “Vai nos dando uma sensação de impotência, mas preciso lembrar que num país moldado pela escravidão, o que é novo é a luta por direitos. A necropolítica tem raízes fundas nesse país”, disse.
Veja abaixo o documento síntese do encontro. Uma reunião da rede está programada para o dia 17 de novembro, no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ.
A CIÊNCIA POR UMA SEGURANÇA PÚBLICA SEM BARBÁRIE
Informe sobre reunião A Ciência por uma Segurança Pública sem Barbárie,
realizada no dia 01 de novembro de 2025, no Auditório Pedro Calmon, na UFRJ
1. A operação reitera a percepção de que a democracia no Brasil segue incompleta.
2. Os preceitos previstos na Constituição de 1988 não chegaram à segurança pública e aos membros das camadas pobres da população brasileira.
3. Os pesquisadores entendem que o apoio de parcelas da população a ações como a ocorrida expressa o sentimento de desamparo frente ao controle territorial armado de grupos criminosos e a sensação de inexistência de alternativas públicas que lhes garantam os direitos previstos numa ordem democrática.
4. Há consenso sobre a natureza política e não policial da barbárie, atestada pelo apoio acrítico à chacina, declarado por governadores de oposição ao governo federal e alinhados ideologicamente ao governador fluminense.
5. Há o entendimento de que a ação contra o CV deve ser posta na perspectiva da exploração econômica dos territórios, praticada também por outros grupos armados.
6. Os resultados da operação, mensurados pela proporção entre número de feridos x mortos (poucos feridos) e número de mortes de “suspeitos” x policiais (32/1), atestam inequivocamente o uso abusivo da força pelas corporações policiais.
7. Há a admissão de que políticas sociais são fundamentais e necessárias, mas não suficientes. É necessário reconstruir as bases de uma política de segurança pública que respeite os preceitos da Constituição em vigor. Para isso, entende-se que a ADPF 635 deve ser encarada como um ponto de partida importante, incluindo a exigência de que o Ministério Público desempenhe com rigor seu papel de fiscal externo das atividades policiais.
8. Houve indicação quanto à necessidade de se refletir (autocrítica) em relação às virtudes de experiências anteriores, como as UPP’s, alternativas à lógica das operações armadas e voltadas à redução da letalidade.
9. O carimbo “defensores de bandidos” aplicado às esquerdas é sim um problema. Pesquisadores não concordam com esse tipo de caracterização, enfatizando que, em geral, o campo da esquerda está preocupado com os direitos da população, frequentemente violados por operações policiais que não respeitam os moradores.
10. Os pesquisadores enfatizam sua preocupação com os policiais, que também são expostos por operações que, na prática, também os consideram “matáveis”.
11. Os pesquisadores rejeitam uso do termo “narcoterrorismo”, considerando-o completamente inadequado para definir organizações como o CV. Esse deslizamento semântico denota a clara intenção de criar um discurso favorável à internacionalização da segurança pública no Brasil, colocando-a no radar dos EUA.
12. Nesse momento parlamentares estão apoiando parentes das vítimas (possivelmente tal como as Mães de Acari, haverá desdobramentos).
13. Os parlamentares presentes no encontro manifestaram sua grande preocupação com a forma como está sendo feita a perícia dos corpos no IML, sem seguir protocolos técnicos, sem autonomia em face da polícia.
14. Reconheceu-se a importância de se investir em mais pesquisas, que qualifiquem os dados trazidos pelos grandes institutos, que tendem a sugerir um apoio sem crítica da população ao massacre realizado no Alemão.
15. As entidades organizadoras do encontro, e outras que o apoiaram, têm a intenção de captar recursos para financiar um fórum de estudos sobre segurança pública, a partir de uma compreensão de que ela precisa ser articulada com as pautas relacionadas à questão tributária, educação, saúde.