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A expressão “kafkiano”, em referência à obra do escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924), virou sinônimo de absurdo ou ilógico. E é desta forma que os cientistas brasileiros encaram o excesso de burocracia para aprovação de projetos, liberação de bolsas, avaliações e prestação de contas. Um estudo do Conselho Nacional das Fundações de Apoio (Confies), de 2017, constatou que um pesquisador gasta, em média, 33% do seu tempo com problemas burocráticos. Uma situação que piorou nos últimos anos. Mas os professores decidiram reagir.

A gota d’água foi uma sequência de mudanças nos processos de preenchimento da avaliação quadrienal na Plataforma Sucupira, de 2019 até este ano. Todas passaram a demandar ainda mais horas dedicadas a atividades administrativas. Em protesto, docentes da UFRJ escreveram uma carta, que será encaminhada à presidência da Capes no início da próxima semana. O documento, por enquanto restrito a coordenadores de pós-graduação de todo o país, já conta com 639 assinaturas até o fechamento desta edição. Existe apoio de todas as áreas do conhecimento.

O professor Nelson Braga, titular do Instituto de Física, redigiu o texto em parceria com as colegas Ethel Pinheiro (Arquitetura) e Daniela Rodrigues (Ecologia). Em sua avaliação, o excesso de tempo gasto com tantos trâmites quase torna incompatível a função de coordenador de pós-graduação com a de docente. “Nós somos também professores, pesquisadores, orientadores, extensionistas e o tempo que levamos para preencher todos os formulários é desproporcional”, critica. “É preciso ter em mente que a nossa atividade-fim é orientação, aula, formação de alunos. Não é preenchimento de relatório”, protesta.

Só as mudanças na Plataforma Sucupira geraram uma infinidade de manuais para orientar os coordenadores de pós, além de vídeos e lives para elucidar dúvidas. São 31 boletins de apoio só para ensinar o correto preenchimento dos novos dados acrescentados ao relatório de avaliação quadrienal, em curso. “O trabalho burocrático, que já era enorme, ficou ainda mais extenso e mudou tudo em cima da hora, tornando ainda mais difícil a nossa tarefa”, avalia Nelson.

Para o professor Pedro Lagerblad, diretor da AdUFRJ e titular do Instituto de Bioquímica Médica, é legítima a motivação de controle das atividades públicas de pesquisa, de buscar prestar contas daquilo que é produzido, mas a execução desse processo só tem piorado. “A forma como é feito esse controle joga nas costas dos funcionários públicos e docentes, em particular, uma carga de trabalho muito grande. Ou se simplifica essa carga, ou se oferece apoio institucional para realizar as tarefas”, sugere.

Pedro fez a conta e percebeu que, se cada docente da universidade preencher ao longo de um mês um formulário de dez minutos, no total serão contabilizados 40 mil minutos de atividades burocráticas, o equivalente a 667 horas (a UFRJ tem 3.993 docentes, mas ele usou o número arredondado de quatro mil). “Nós trabalhamos 40 horas por semana, 160 horas por mês. Com um formulário simples, de dez minutos, você joga fora o tempo de trabalho de quatro professores”, conclui. O docente estima que chega a gastar 40% de sua carga horária com “papeladas”.

Pior do que o tempo gasto é a sensação de que o trabalho foi realizado em vão. “O volume de material gerado com cada formulário é tão grande que nenhuma comissão de avaliação tem tempo hábil para fazer uma análise detalhada. Eu tenho convicção de que a maior parte de tudo o que nós preenchemos para as agências de fomento sequer é lido”, opina Nelson Braga. “Eu sou professor da UFRJ desde 1990. A quantidade de coisas inúteis que fiz nesse tempo todo me deixa sinceramente irritado”.

Ele deixa claro que a intenção do manifesto e das críticas não é apontar culpados, mas buscar mudar a forma como se faz o controle da produção científica brasileira. “A burocracia é um problema cultural nacional e isso faz com que o país não avance. É preciso pensar quanto tempo se vai perder com todos esses formulários. É preciso que essa cultura mude”.

O professor Luciano Menegaldo, da Coppe, concorda. “Não só a burocracia externa é sufocante, mas interna, da UFRJ, também. Tanto a parte de tramitação de processos quanto acadêmica está cada vez mais burocrática, nos tira muita energia e muito tempo”, critica. “Para se fazer qualquer coisa, são dezenas de passos e você gasta um tempo que não tem. Cada vez são mais regras, mais papeis, mais certificados. E as pessoas veem isso com normalidade, o que é mais impressionante”.

Pró-reitora de Pós-graduação e Pesquisa, a professora Denise Freire reconhece as dificuldades. “Precisamos de menos burocracia e muito mais liberdade para criar, fazer projetos inovadores e disruptivos”, afirma. Em relação às reclamações sobre as burocracias internas, a docente afirma que um dos compromissos da atual gestão é simplificar os procedimentos, mas que isso nem sempre é possível. “Detecto inúmeras barreiras endógenas para a real desburocratização da UFRJ. Podemos citar a ditadura cada vez mais presente dos órgãos de controle e muitas vezes a existência de clusters de ‘micropoderes’ que precisam da burocracia para sobreviver”.

 

Presidente da Capes nomeia orientanda

A escalada de desmonte da pesquisa chega a níveis até difíceis de acreditar. Os perfis técnicos e qualificados estão dando lugar a conchavos e interesses pessoais. Um exemplo aconteceu nesta semana na Capes. No último dia 4, a Diretoria de Relações Internacionais foi assumida por Lívia Pelli Palumbo, aluna de doutorado da atual presidente da agência, a professora Cláudia Mansani Queda de Toledo. A comunidade científica recebeu a notícia com preocupação, principalmente por se tratar de alguém sem atributos necessários para conduzir uma das diretorias mais importantes da Capes. A Sociedade Brasileira de Física, que há menos de quatro meses se pronunciou com críticas à nomeação de Cláudia Mansani, voltou a se manifestar.

A SBF reafirma a importância da agência para a pesquisa brasileira e sublinha que a estudante não tem “qualquer experiência em coordenação de redes de colaboração internacional ou outra distinção que a credenciem para o cargo”. A nota segue: “Isto é particularmente preocupante para o período que passamos, que demanda para a DRI um perfil de liderança com grande experiência acadêmica para rearticular as redes e os projetos institucionais de internacionalização da pesquisa científica do Brasil”.

Lívia tem 35 nos. Graduou-se em Direito na Instituição Toledo de Ensino, em 2008, faculdade de propriedade da família de sua orientadora. Fez o mestrado e cursa o doutorado no mesmo local. Ela substitui Heloísa Hollnagel, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). A assessoria de imprensa da Capes se limitou a dizer que a atual presidente agradece a dedicação de Heloísa no tempo em que esteve à frente da diretoria e que deseja “sucesso em suas atividades futuras”.

Por Silvana Sá e Liz Mota Almeida

 

Os setores estratégicos para o desenvolvimento do Brasil passam por um momento dramático de cortes e desmonte de conquistas históricas. A situação da Ciência é WhatsApp Image 2021 08 06 at 21.53.19emblemática, com restrições orçamentárias severas e processos burocráticos kafkianos.

Em 2021, o governo federal liberou menos de um terço da cota de importação de insumos e equipamentos para pesquisa. O patamar histórico é da ordem de US$ 300 milhões, mas só houve aprovação de US$ 93 milhões. Esta cota permite que pesquisadores brasileiros importem materiais necessários às suas investigações livres do imposto, uma economia que pode superar os 60%.

“Em geral, os insumos e equipamentos de ponta vêm de fora porque não são produzidos em território nacional. É uma necessidade real, já que estamos desindustrializados”, aponta o professor Fernando Peregrino, presidente do Conselho Nacional das Fundações de Apoio às Instituições de Ensino Superior e de Pesquisa Científica e Tecnológica (Confies) e diretor executivo da Fundação Coppetec. “Reduzir a cota em 70% é uma maldade, sobretudo para quem não tem dinheiro. E a pesquisa nacional não tem recursos”, protesta. As fundações ligadas às universidades respondem por até 80% de todas as importações do Brasil para a pesquisa. Noventa delas são afiliadas ao Confies.

A cota para importações, usando a Lei 8010, de 1990, foi esgotada em maio sem conseguir atender à maior parte da demanda. São necessidades diversas: compras de insumos, de equipamentos, peças para reparo e manutenção de máquinas de ponta. “Eu ganhei uma verba de emenda parlamentar para montar um laboratório novo na Coppe, mas a cota de importação já esgotou e eu não consegui nem começar o projeto”, afirma o professor Luciano Menegaldo, do Programa de Engenharia Biomédica da Coppe. “O primeiro passo era fazer a importação dos equipamentos e essas importações estão paradas. São equipamentos mais modernos que vão também atender aos pacientes da pediatria do IPPMG”, conta.

Laboratórios experimentais de diferentes áreas enfrentam problemas. “Estou com um processo de importação parado desde janeiro deste ano. Entramos com outro processo no mês passado e também não temos nenhuma previsão”, relata o professor Angelo Márcio de Souza Gomes, do Laboratório de Baixas Temperaturas, do Instituto de Física. O primeiro processo busca a importação de um porta amostras para medidas magnéticas. O segundo, um equipamento de ponta para o laboratório. “Hoje nós só temos um porta amostras que, se parar, não temos o que fazer. O laboratório fecha”. Os produtos vêm dos Estados Unidos e da China.

Outro obstáculo é a flutuação do dólar. O processo é enviado para análise do CNPq com um orçamento baseado no câmbio daquele momento. Quanto mais lenta é a avaliação e a liberação do processo, mais dinheiro pode ser perdido com o aumento do dólar. “Há casos em que o pesquisador não consegue mais importar, porque o orçamento inicial não dá conta dessa alteração do câmbio. Deixa de ser suficiente”, afirma o professor Angelo. “Além disso, ainda há a questão da prestação de contas do projeto. Se não gastamos o recurso no prazo, precisamos devolver o dinheiro ou pedir extensão do tempo”.

Levantamento realizado pelo Confies em junho deste ano já indicava que apenas cinco fundações filiadas já acumulavam 45 importações paradas por falta de cota. Uma média de nove materiais por fundação. De lá para cá, esse número só cresceu. “Há inúmeros projetos parados por falta de dinheiro. A última notícia que tivemos era de que o (ministro da Ecoonomia) Paulo Guedes liberaria US$ 100 milhões agora e depois outros US$ 107 milhões, perfazendo, assim, o total de US$ 300 milhões”, conta Fernando Peregrino. “Mas, até, agora, nada disso se confirmou”, afirma.

Uma solução seria utilizar os recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). A comunidade científica se mobilizou para tornar os recursos do fundo incontingenciáveis. O PLC 135/2020 foi aprovado e tornado Lei Complementar 177/2021. O presidente Jair Bolsonaro chegou a vetar artigos para desfigurar a lei, mas o Congresso rejeitou os vetos. “Tudo certo, tudo aprovado, mas Bolsonaro e Paulo Guedes não cumprem a lei. Aqueles que têm uma visão equivocada da economia não sabem o mal que estão fazendo ao país”, analisa Peregrino.

FACADA NO PEITO DOS CIENTISTAS
Denise Freire, pró-reitora de Pós-graduação e Pesquisa, considera que o corte da cota de importação abala também a internacionalização da universidade. “Temos muitos projetos internacionais, contamos com a tecnologia importada. Quando se corta isso, agrega-se um valor a mais para os projetos que a gente não pode honrar. Isso afeta os projetos acadêmicos, de mestrado e doutorado, mas também projetos com a indústria”, pontua a dirigente. “Vários projetos inovadores, como por exemplo, a nossa vacina, estão ameaçados. É uma facada no peito de que a gente não precisava”.

Os ministérios da Ciência, Tecnologia e Inovação e da Economia foram procurados pela reportagem. O MCTI não retornou às tentativas de contato. Já o Ministério da Economia informou, por sua assessoria, que não iria comentar nem sobre o corte da cota de importação, nem se Paulo Guedes vai mesmo liberar os US$ 100 milhões prometidos.

  1. WhatsApp Image 2021 08 04 at 09.40.37Ele foi nosso ponto de encontro e nos ajudou a atravessar momentos muito difíceis! Nos últimos tempos, sobrecarregados com tantas lives, reuniões e aulas remotas, suspendemos a nossa programação. Esse convite é para um reencontro, para renovarmos nossas forças pois em breve iniciaremos a campanha eleitoral para a nova diretoria da AdUFRJ.
  2. Para participar é fácil, a partir das 17h15 você envia uma mensagem para o whatsapp da AdUFRJ (21) 99365-4514 pedindo para participar e nós te enviamos o link de acesso à nossa sala no ZOOM. Se você ainda não conhece o aplicativo, acesse zoom.come instale em seu computador ou celular.

ENTREVISTA I CONSUELO LINS
Professora Titular da Escola de Comunicação e integrante do Comitê Científico da sociedade brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual

 

Por Ana Beatriz Magno e Kelvin Melo
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Não foi só uma consequência dramática do descaso ou uma tragédia anunciada e denunciada meses antes pelos funcionários e autoridades do Ministério Público. O WhatsApp Image 2021 08 06 at 21.42.10incêndio da Cinemateca, na noite de 29 de julho, integra um projeto criminoso de queimar todo e qualquer polo crítico, criativo, inteligente, emancipatório no Brasil. “Há uma guerra cultural em curso. O governo Bolsonaro declarou guerra contra qualquer coisa que seja crítica, libertária e criativa. A cinemateca é simbólica disso tudo”, resume Consuelo Lins, professora titular da Escola de Comunicação da UFRJ, e usuária assídua dos acervos da Cinemateca para suas pesquisas.

Documentarista e estudiosa da produção audiovisual brasileira, Consuelo está inconformada com os efeitos das chamas. “O fogo consumiu toda a memória de algumas instituições federais de fomento ao cinema, como a Embrafilme. Toda memória que se tem de todas as produções feitas por esta instituição tão importante foi queimada”, lamenta. “É desolador. Como dizia Darcy Ribeiro, é um projeto de desmonte, não é uma incompetência, é deliberado”.

Pesquisadora do papel da memória na construção cultural, Consuelo ressalta que o incêndio não destruiu apenas o passado. “Elas queimaram também o futuro. Construímos o futuro a partir do passado, a partir de imagens registradas no passado e guardadas em instituições como a Cinemateca. Por isso, essas instituições são tão importantes, porque são essenciais para a construção do futuro”, lamenta a docente em entrevista ao Jornal da AdUFRJ. “No atual momento, é urgente uma política de redução de danos. É o possível. E o mais rápido possível. Ainda há muitas outras coisas com potencial não só de serem queimadas, mas de serem perdidas por falta de preservação”.


WhatsApp Image 2021 08 06 at 21.45.56Jornal da AdUFRJ: A cinemateca pegou fogo ou foi incendiada?
Consuelo Lins: Foi incendiada. É a crônica total de um crime anunciado.

O que significa perder essa memória da produção cultural, não só do cinema?
É uma possibilidade de futuro. Potencialmente, você tem uma multiplicidade de possibilidades naquele material. Não é só cinema. É história, antropologia. Tem imagens dos índios, no começo do século XX. Por mais que a gente possa problematizar essas imagens. A memória não está ali pronta. É um material que a gente tem que trabalhar de variadas maneiras. No Brasil, já é difícil a preservação. Muita coisa já se perdeu. E, de repente, se você queima isso, você não pode mais reconfigurar as coisas. Potencialmente, você acaba com essa multiplicidade de possibilidades.

A senhora lembra do exato momento em que recebeu a notícia do fogo no galpão da Cinemateca? O que sentiu naquela hora?
Recebi a notícia por mensagem de uma amiga, Patrícia Machado, da PUC-Rio, que trabalha com imagens de arquivo. Ela estava em estado de choque. Eu lembro que falei: “Não, não é possível”. Mas é possível. Neste governo, as notícias terríveis são tão cotidianas...

A cinemateca já pegou fogo antes. Houve um grande incêndio em 1957...
n Agora é diferente dos anos 1950, porque hoje a gente tem mais consciência da preservação. É um momento muito particular, de ter um presidente partidário da necropolítica, no sentido amplo. Não só em deixar morrer uma boa parte da população, seja por covid-19, seja por pobreza. Isso inclui também a memória do Brasil. A situação estava complicada na Cinemateca há muitos anos. Mas as coisas estavam funcionando até o Bolsonaro ser eleito. Não existe nenhuma empatia dele com nada que acontece no Brasil de trágico. É um projeto mesmo de incendiar, de acabar. A Cinemateca é muito simbólica disso.

O que fazer para impedir mais destruição na Cinemateca?
Claro que precisa ter uma política de longo prazo, independentemente de governos, precisa de mais verbas. No atual momento, é política de redução de danos. É o possível. E o mais rápido possível. Ainda há muitas outras coisas com potencial não só de serem queimadas, mas de serem perdidas por falta de preservação. Espero que consigam fazer esse deslocamento (da gestão) para o governo do estado ou que volte a ser da associação dos amigos da Cinemateca. Ela passou a ser subordinada ao Ministério da Cultura, quando o governo estava interessado em investir em Cultura. Mas, com a mudança de governo, isso é terrível.

Por que os bolsonaristas odeiam tanto a Cultura e a Ciência?
São milhares de razões. Há uma guerra cultural em curso. O governo Bolsonaro declarou guerra contra qualquer coisa que seja crítica, libertária e criativa. A cinemateca é simbólica disso tudo. Uma guerra que não é só no Brasil. Mas, no Brasil, as coisas são mais toscas, mais caricaturais.

O que se perdeu?
Ainda estão fazendo o levantamento. O mais importante é toda a memória de algumas instituições federais de fomento ao cinema, como a Embrafilme. Toda memória que se tem de todas as produções feitas por esta instituição tão importante foi queimada.

Qual sua relação com a cinemateca?
Já frequentei vários festivais de cinema lá ou seminários acadêmicos. Existe uma associação acadêmica, a Socine, a Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual, que muitas vezes fez suas reuniões na Cinemateca. Quem trabalha com cinema, na academia ou na prática, frequenta ou frequentou a Cinemateca em algum momento da vida. Em 2009, ganhei um edital do ministério da cultura para fazer um curta-metragem sobre as babás. Além de falar daquele momento no Brasil, poucos anos antes da regulamentação da profissão das empregadas domésticas, havia essa pesquisa. Eu queria buscar imagens nos arquivos familiares e nos arquivos públicos. Vim a São Paulo (Nota da Redação: a professora estava na capital paulista, quando concedeu esta entrevista). As funcionárias que me atenderam foram absolutamente ágeis e competentes. Fizeram uma seleção de materiais. Fiquei dois, três dias assistindo a imagens dos anos 1910, 20 e 30 e consegui imagens muito legais.

Como essa sua experiência ajuda a explicar a importância da Cinemateca?
Eu encontrei imagens, mas não com essa rubrica “babás” ou “trabalho doméstico”. As famílias com posse compraram câmeras e filmaram batizados, casamentos. E essas pessoas que eram tão presentes no cotidiano das famílias apareciam tão pouco. O fato de os negros aparecerem tão pouco nessas imagens é um dado a ser trabalhado. O que essas imagens não revelam também é fundamental, mas elas precisam existir.

Por que a UFRJ ainda não tem um curso de graduação de cinema?
Precisamos de uma reestruturação maior. De mais equipamento, de mais técnicos. Temos aula de roteiro, de edição, de montagem, mas não conseguimos organizar algo como existe na USP ou na UFF. Vamos continuar nesta batalha, mas agora é tentar se manter de pé com o que é possível. Depois, a gente volta a tentar avançar nestas questões.

WhatsApp Image 2021 07 31 at 10.03.07ESTÁTUA do bandeirante Borba Gato, em São Paulo, foi incendiada em ato isoladoDiretoria da AdUFRJ

Nada mais definidor das políticas públicas para a Ciência e a Arte do atual governo do que a semana que se encerra: CNPq fora do ar, com um servidor queimado e a notícia de que teria se perdido todo o seu enorme banco de dados (incluindo aí os nossos Lattes) e o incêndio em um dos galpões da Cinemateca Brasileira, com a possibilidade de perdas irrecuperáveis da memória do cinema nacional. Junte-se a isso o achado da antropóloga Adriana Dias, divulgado em matéria do Intercept, que, por acaso, se deparou com as conexões entre grupos neonazistas e o atual presidente da República datados de 2004. Alguém ainda tem dúvida sobre o horror que nos governa? O bafo imundo da besta sopra no Planalto Central, desafia, mente e escarnece as instituições do país. Institui do alto de suas prerrogativas a mentira e a falsificação como norma, e reduz o já vergonhoso toma-lá-dá-cá, ou o famoso “é dando que se recebe” da fisiologia parlamentar, ao mais abjeto colaboracionismo. “O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera”, drummondianamente falando. Mas não só. Porque sábado foi dia de rua, ato, grito e muitos “Fora, Bolsonaro!”. Nem tão grande nas capitais como gostaríamos, mas surpreendente em tantas cidades pelo país.
O que fere e queima num país que convive com mais de meio milhão de mortos na pandemia? Não queremos explosões descontroladas, dispersas e pouco efetivas. Precisamos de organização, sensatez, persistência e disciplina para nos mantermos no jogo. Aproveitemos a semana olímpica e o belo baile da favela que entrou pela casa de tantas pessoas em todo o mundo. Rebeca entrou com tudo, Daiane lembrou que faz muito pouco diziam que ali não era lugar para elas. Mas elas foram e ocuparam. E Rebeca ocupou sem concessões: mulher, negra, favelada finca o pé na festa esportiva de todos os povos, queimando na pira olímpica mais um tanto de racismo e preconceito. Tivemos até fadinha, com direito a esperança num mundo melhor.
E, no meio do caminho, uma estátua incendiada. Muita polêmica em torno dela, porque roubou a cena dos atos organizados, porque deu argumentos para os conservadores, porque foi uma decisão autoritária de um pequeno grupo. E também porque não se queimam monumentos, não se queima a história... E por aí segue o fio de uma grande lista de argumentos contra o ato da autointitulada Revolução Periférica. Mas não é do passado que estamos falando, pois a questão é que Borba Gato está mais vivo do que nunca. Escravista e aventureiro, predador extrativista, parece que seu espírito volta a nos assombrar, rondando a vida política brasileira, hoje sustentada por madeireiros ilegais, garimpeiros e toda sorte de contrabandistas e atravessadores. Por isso a discussão é urgente, mas ela é muito maior do que refutar o passado colonialista, é ainda lutar desesperadamente para que ele seja de fato um passado a ser criticado.
Sigamos nessa conjuntura cada vez mais complexa, sem perder o rumo da prosa: unidade de todas as forças democráticas, em defesa da vida. Não é pequeno o que temos pela frente, não cabe qualquer ilusão que projete para um futuro próximo uma eleição redentora de todos os males. Cada dia é preciso conter o avanço desse projeto autoritário, em todas as frentes, onde for possível. Estamos iniciando o processo eleitoral para a nova diretoria da AdUFRJ. As inscrições de chapas estão abertas até o dia 12 de agosto. Que este seja um momento de reorganizarmos nossas forças. Vamos fortalecer o nosso sindicato. A velha máxima ainda está valendo: todos juntos somos fortes.

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