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ENTREVISTA I CONSUELO LINS
Professora Titular da Escola de Comunicação e integrante do Comitê Científico da sociedade brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual

 

Por Ana Beatriz Magno e Kelvin Melo
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Não foi só uma consequência dramática do descaso ou uma tragédia anunciada e denunciada meses antes pelos funcionários e autoridades do Ministério Público. O WhatsApp Image 2021 08 06 at 21.42.10incêndio da Cinemateca, na noite de 29 de julho, integra um projeto criminoso de queimar todo e qualquer polo crítico, criativo, inteligente, emancipatório no Brasil. “Há uma guerra cultural em curso. O governo Bolsonaro declarou guerra contra qualquer coisa que seja crítica, libertária e criativa. A cinemateca é simbólica disso tudo”, resume Consuelo Lins, professora titular da Escola de Comunicação da UFRJ, e usuária assídua dos acervos da Cinemateca para suas pesquisas.

Documentarista e estudiosa da produção audiovisual brasileira, Consuelo está inconformada com os efeitos das chamas. “O fogo consumiu toda a memória de algumas instituições federais de fomento ao cinema, como a Embrafilme. Toda memória que se tem de todas as produções feitas por esta instituição tão importante foi queimada”, lamenta. “É desolador. Como dizia Darcy Ribeiro, é um projeto de desmonte, não é uma incompetência, é deliberado”.

Pesquisadora do papel da memória na construção cultural, Consuelo ressalta que o incêndio não destruiu apenas o passado. “Elas queimaram também o futuro. Construímos o futuro a partir do passado, a partir de imagens registradas no passado e guardadas em instituições como a Cinemateca. Por isso, essas instituições são tão importantes, porque são essenciais para a construção do futuro”, lamenta a docente em entrevista ao Jornal da AdUFRJ. “No atual momento, é urgente uma política de redução de danos. É o possível. E o mais rápido possível. Ainda há muitas outras coisas com potencial não só de serem queimadas, mas de serem perdidas por falta de preservação”.


WhatsApp Image 2021 08 06 at 21.45.56Jornal da AdUFRJ: A cinemateca pegou fogo ou foi incendiada?
Consuelo Lins: Foi incendiada. É a crônica total de um crime anunciado.

O que significa perder essa memória da produção cultural, não só do cinema?
É uma possibilidade de futuro. Potencialmente, você tem uma multiplicidade de possibilidades naquele material. Não é só cinema. É história, antropologia. Tem imagens dos índios, no começo do século XX. Por mais que a gente possa problematizar essas imagens. A memória não está ali pronta. É um material que a gente tem que trabalhar de variadas maneiras. No Brasil, já é difícil a preservação. Muita coisa já se perdeu. E, de repente, se você queima isso, você não pode mais reconfigurar as coisas. Potencialmente, você acaba com essa multiplicidade de possibilidades.

A senhora lembra do exato momento em que recebeu a notícia do fogo no galpão da Cinemateca? O que sentiu naquela hora?
Recebi a notícia por mensagem de uma amiga, Patrícia Machado, da PUC-Rio, que trabalha com imagens de arquivo. Ela estava em estado de choque. Eu lembro que falei: “Não, não é possível”. Mas é possível. Neste governo, as notícias terríveis são tão cotidianas...

A cinemateca já pegou fogo antes. Houve um grande incêndio em 1957...
n Agora é diferente dos anos 1950, porque hoje a gente tem mais consciência da preservação. É um momento muito particular, de ter um presidente partidário da necropolítica, no sentido amplo. Não só em deixar morrer uma boa parte da população, seja por covid-19, seja por pobreza. Isso inclui também a memória do Brasil. A situação estava complicada na Cinemateca há muitos anos. Mas as coisas estavam funcionando até o Bolsonaro ser eleito. Não existe nenhuma empatia dele com nada que acontece no Brasil de trágico. É um projeto mesmo de incendiar, de acabar. A Cinemateca é muito simbólica disso.

O que fazer para impedir mais destruição na Cinemateca?
Claro que precisa ter uma política de longo prazo, independentemente de governos, precisa de mais verbas. No atual momento, é política de redução de danos. É o possível. E o mais rápido possível. Ainda há muitas outras coisas com potencial não só de serem queimadas, mas de serem perdidas por falta de preservação. Espero que consigam fazer esse deslocamento (da gestão) para o governo do estado ou que volte a ser da associação dos amigos da Cinemateca. Ela passou a ser subordinada ao Ministério da Cultura, quando o governo estava interessado em investir em Cultura. Mas, com a mudança de governo, isso é terrível.

Por que os bolsonaristas odeiam tanto a Cultura e a Ciência?
São milhares de razões. Há uma guerra cultural em curso. O governo Bolsonaro declarou guerra contra qualquer coisa que seja crítica, libertária e criativa. A cinemateca é simbólica disso tudo. Uma guerra que não é só no Brasil. Mas, no Brasil, as coisas são mais toscas, mais caricaturais.

O que se perdeu?
Ainda estão fazendo o levantamento. O mais importante é toda a memória de algumas instituições federais de fomento ao cinema, como a Embrafilme. Toda memória que se tem de todas as produções feitas por esta instituição tão importante foi queimada.

Qual sua relação com a cinemateca?
Já frequentei vários festivais de cinema lá ou seminários acadêmicos. Existe uma associação acadêmica, a Socine, a Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual, que muitas vezes fez suas reuniões na Cinemateca. Quem trabalha com cinema, na academia ou na prática, frequenta ou frequentou a Cinemateca em algum momento da vida. Em 2009, ganhei um edital do ministério da cultura para fazer um curta-metragem sobre as babás. Além de falar daquele momento no Brasil, poucos anos antes da regulamentação da profissão das empregadas domésticas, havia essa pesquisa. Eu queria buscar imagens nos arquivos familiares e nos arquivos públicos. Vim a São Paulo (Nota da Redação: a professora estava na capital paulista, quando concedeu esta entrevista). As funcionárias que me atenderam foram absolutamente ágeis e competentes. Fizeram uma seleção de materiais. Fiquei dois, três dias assistindo a imagens dos anos 1910, 20 e 30 e consegui imagens muito legais.

Como essa sua experiência ajuda a explicar a importância da Cinemateca?
Eu encontrei imagens, mas não com essa rubrica “babás” ou “trabalho doméstico”. As famílias com posse compraram câmeras e filmaram batizados, casamentos. E essas pessoas que eram tão presentes no cotidiano das famílias apareciam tão pouco. O fato de os negros aparecerem tão pouco nessas imagens é um dado a ser trabalhado. O que essas imagens não revelam também é fundamental, mas elas precisam existir.

Por que a UFRJ ainda não tem um curso de graduação de cinema?
Precisamos de uma reestruturação maior. De mais equipamento, de mais técnicos. Temos aula de roteiro, de edição, de montagem, mas não conseguimos organizar algo como existe na USP ou na UFF. Vamos continuar nesta batalha, mas agora é tentar se manter de pé com o que é possível. Depois, a gente volta a tentar avançar nestas questões.

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