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Por Renan Fernandes
Em 1832, depois de atracar o HMS Beagle no Porto do Rio de Janeiro, o naturalista britânico Charles Darwin conheceu um irlandês dono de terras em Conceição de Macabu, na época um distrito da Vila de São João de Macaé. O convite do fazendeiro possibilitou o primeiro contato do naturalista com a biodiversidade da Mata Atlântica.
Quase dois séculos depois, Darwin retornou à Macaé. A Sociedade Brasileira de Genética e a Sociedade Brasileira de Biologia Evolutiva promoveram o Darwin Day entre os dias 24 e 26 de março no Instituto de Biodiversidade e Sustentabilidade da UFRJ (Nupem). Foram três dias de atividades para promover a disseminação de conhecimentos sobre a evolução da vida no planeta Terra.
O evento começou com a inauguração do Biomuseu do Nupem, o primeiro museu de História Natural do Norte Fluminense. “É um espaço dedicado à divulgação científica, à educação ambiental e ao encantamento com a natureza”, disse o professor Rodrigo Nunes da Fonseca, diretor da AdUFRJ e um dos responsáveis pela organização. “Reunir comunidade, estudantes, professores e visitantes em torno desses temas fortalece nosso compromisso com a Ciência e com a construção de um futuro mais consciente e sustentável”, completou.
A professora Cíntia Monteiro de Barros, diretora do Nupem, exaltou o museu como um espaço de inspiração e aprendizado para os estudantes e pesquisadores. “Nosso compromisso é fortalecer a educação científica e estimular o interesse pela biodiversidade e sua preservação”.
EVOLUÇÃO
A professora Christine Ruta, coordenadora do Fórum de Ciência e Cultura, órgão que gere as políticas de difusão cultural e divulgação científica, esteve presente na abertura do evento. “Foi um prazer encontrar crianças e jovens no lançamento. O museu vai aproximar essa juventude da Biologia”, comentou.
A seção dos animais taxidermizados fez sucesso entre o público infantil. O professor Pablo Rodrigues Gonçalves explicou que o Nupem recebe animais da região atropelados na rodovia BR-101. “As crianças ficam encantadas. São memórias que ficam para o resto da vida”, afirmou.
Além da exposição sobre a história da evolução e os ecossistemas atuais, o instituto abrirá as coleções científicas ao público. “É como uma biblioteca da fauna e da flora. As turmas de ensino básico vão poder ver como estudamos esses animais”.
Gonçalves participou de uma mesa de debate sobre o ensino de evolução na graduação e no Ensino Médio. Professores de colégios públicos compareceram e compartilharam as dificuldades do dia a dia.
“Além da falta de material para aulas práticas, o negacionismo provocado pelo fanatismo religioso foi citado por muitos professores da rede pública”, afirmou o docente. “Houve relatos de pais que foram à escola reclamar, esbravejando que o filho não veio do macaco. O professor precisa contemporizar, dizer que é apenas uma visão que não compete com a religiosa”, ponderou.
Por Renan Fernandes
Em dezembro de 1968, o AI-5 interrompeu a trajetória de Lucia Murat como estudante do Instituto de Economia da UFRJ. Lucia foi presa durante o Congresso da UNE em Ibiúna (SP), e ingressou na luta armada. “Faz mais de 50 anos que não pisava aqui nesse campus”, lembrou a cineasta, na terça-feira (25), após a exibição de seu mais novo filme, “O Mensageiro”, na edição especial do Cine Cidadania, no auditório Professor Manoel Maurício Albuquerque, na Praia Vermelha.
O evento, promovido pelo Fórum de Ciência e Cultura (FCC) e pela Universidade da Cidadania, debateu o tema das lutas e resistências femininas em homenagem ao mês das mulheres.
A ocasião tornou-se ainda mais simbólica por acontecer no dia em que o STF iniciou o julgamento das denúncias que levaram Bolsonaro e outros sete aliados — entre eles, cinco militares de alta patente — ao banco dos réus por tentativa de golpe de Estado, entre outros crimes.
“É simbólica a exibição deste filme no dia em que defensores de torturadores estão sendo julgados por seus crimes”, exaltou a professora Christine Ruta, coordenadora do FCC.
A professora Eleonora Ziller, diretora da Universidade da Cidadania, fez coro às celebrações pelo julgamento inédito na história do Brasil. “Onde estaríamos se o 8 de janeiro não tivesse fracassado? A que nível de agressividade, de potência autoritária nós estaríamos submetidos?”, questionou.
O MENSAGEIRO
No longa, a história da protagonista Vera é inspirada na vida da própria diretora. A narrativa acompanha a força da jovem militante para resistir às torturas e a resiliência de sua mãe, Maria, que desafia as amarras impostas pelo patriarcado.
Num cenário de total falta de informação sobre o paradeiro da filha, Maria constrói uma relação de amizade com um recruta, Armando, o carcereiro de Vera que assume o papel de mensageiro. “Pensar no mensageiro é pensar na possibilidade de diálogo com o outro. Havia uma demonstração de humanidade em meio a todo aquele horror”, explicou Murat.
A historiadora Dulce Pandolfi, assessora da Universidade da Cidadania, comentou ao final da exibição que também teve um mensageiro enquanto esteve presa e que ele possibilitou o envio de uma carta para sua família, no Recife. “A ambiguidade naquele ambiente era enorme. A perversidade dos torturadores ia tomando conta dos jovens soldados que muitas vezes eram boas pessoas”, lembrou.
O tema da ditadura é recorrente na obra de Murat. Em quatro décadas de carreira, dirigiu obras importantes como “Que bom te ver viva”, “Quase dois irmãos” e “A memória que me contam”. “Faço filmes em função das minhas angústias. Cada filme que faço sobre a ditadura fala também da época em que foi feito”, revelou Lucia.
A motivação da cineasta neste último trabalho foi a percepção de uma crescente polarização na sociedade brasileira nos últimos anos. “Esse filme surgiu da necessidade de discutir porque mais de 50 milhões de brasileiros votaram num cara que defende a ditadura”, pontuou.
Murat é defensora do diálogo e citou Hannah Arendt no longa para falar sobre o perdão. Contudo, a cineasta reforça que perdoar não é esquecer. Após os créditos finais do filme, uma lembrança dolorosa aos espectadores. “Enquanto na Argentina, 1.125 torturadores foram condenados por crimes contra a humanidade, no Brasil, passados 38 anos do fim da ditadura, nenhum ditador nem torturador foi levado a julgamento”, diz a mensagem sobre um fundo preto representando o luto.
Eleonora Ziller destacou a perspectiva didática da obra na abordagem do tema, sem cair em uma perspectiva rasa. “É profundo e necessário, uma pedagogia de reeducação sobre o significado dessa fase da nossa história”, comentou a docente.
Após a exibição, a mesa de debate composta por quatro mulheres discutiu a força feminina na resistência ao regime.
A historiadora Andrea Queiroz, diretora da Divisão de Memória Institucional do Sistema de Bibliotecas e Informação da UFRJ, pesquisa os impactos do regime militar na universidade.
Entre os 45 professores cassados na universidade, Queiroz destacou a forma como as mulheres eram tratadas nos dossiês. “Eram comuns termos pejorativos, um olhar de vulgarização e objetificação. Grandes intelectuais como Eulália Lobo, Maria Yedda Linhares e Marina São Paulo de Vasconcelos eram tratadas como ‘vagabundas’ que ensinavam orgias”, disse.
Murat também recordou seu relatório da ABIN. “Minhas anotações eram: assalto a banco, roubo de carro, vários amantes. Tudo no mesmo patamar”, recordou rindo.
O contexto de terror imposto pelo regime militar foi a fagulha para muitas mulheres descobrirem uma força interior “Aquelas mulheres da geração das nossas mães, que eram donas de casa subservientes aos maridos, tiveram que mudar para proteger seus filhos”, apontou a cineasta, lembrando também de Eunice Paiva e do filme “Ainda estou aqui”.
Docentes de diferentes centros e unidades da UFRJ marcaram presença na Casa da Ciência na sexta-feira, 14, no coquetel que festejou o início do período letivo. O evento, organizado pela AdUFRJ, com apoio do Fórum de Ciência e Cultura, marcou também o relançamento da exposição Servidores da Sociedade. A mostra já esteve em cartaz no Centro de Ciências da Saúde e no Nupem/Macaé. Agora, permanece aberta ao grande público na Casa da Ciência até 11 de abril. Toda a iluminação da temporada na Casa da Ciência é projeto do Sistema Universitário de Apoio Teatral (SUAT), com coordenação do professor José Henrique Moreira (ECO/UFRJ).
Diretora da Divisão de Programas da Casa da Ciência, Luciane Correia celebrou a parceria com a AdUFRJ. “A Casa da Ciência é um lugar onde os professores podem fazer comunicação científica e trazer sua pesquisa para um público diversificado, falar de ciência em linguagem acessível”, disse. “É um espaço de reflexão sobre o fazer científico e de divulgação científica”, afirmou.
Christine Ruta, coordenadora do Fórum de Ciência e Cultura, também elogiou a parceria. “Os museus, infelizmente, ainda não são protegidos no nosso país. Não há uma política pública voltada para esses patrimônios. Por isso, quero agradecer ao sindicato por valorizar a nossa Casa da Ciência”, disse.
O reitor Roberto Medronho também prestigiou a celebração. “A AdUFRJ exerce o seu papel que vai muito além de tratar de questões reivindicatórias. A acolhida aos nossos docentes também faz parte das ações de um sindicato que defende a categoria”, afirmou. “Fiz questão de estar nesta belíssima exposição porque é um sindicato que me representa enquanto docente”, declarou. “Enquanto reitor, temos algumas divergências que, através do diálogo, serão resolvidas, pois o objetivo é fortalecer a UFRJ”.
Curadora da exposição, a professora Nedir do Espirito Santo celebrou a presença dos docentes. “Muito obrigada a todos vocês que vieram prestigiar este momento e confraternizar conosco”, disse a vice-presidente da AdUFRJ. Em nome da diretoria, a professora sorteou ingressos para a peça ‘Simplesmente Eu, Clarice Lispector’. Estrelada por Beth Goulart, o espetáculo está em cartaz no Teatro Prio, do Jockey Club.
Quem foi à festa também recebeu o planner comemorativo do mês das mulheres. O planejador destaca 12 personagens femininas que fazem parte da história da UFRJ.
Outro presente oferecido prioritariamente aos participantes do evento foi o curso gratuito de Alemão. A AdUFRJ abrirá duas turmas para professores sindicalizados. Os interessados devem enviar seu pedido de inscrição para Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.. Veja algumas imagens da comemoração.
Veja mais imagens da festa aqui.
Professora emérita da UFRJ e integrante da Academia Brasileira de Letras, a escritora e pesquisadora Heloisa Teixeira faleceu nesta sexta-feira (28), aos 85 anos. Com vasta produção acadêmica, Heloisa era reconhecida como uma das maiores pensadoras do feminismo brasileiro, e seus estudos nos campos das Letras e da Comunicação são referências nos cursos de graduação e pós-graduação. Nos últimos tempos, a professora dirigia o Programa Avançado de Cultura Contemporânea (PACC-Letras/UFRJ), onde coordenava o Laboratório de Tecnologias Sociais, do projeto Universidade das Quebradas, e o Fórum M, espaço de debates sobre a questão da mulher na universidade.
“Que tristeza. Agora a saudade vai invadir as Quebradas”, lamentou o professor Fernando Santoro, diretor do IFCS, ao saber da morte de Heloisa. Criada em 2009, a Universidade das Quebradas (UQ), projeto abraçado por Heloisa, é um laboratório de tecnologia social tem mais de 800 participantes e se baseia na troca de saberes entre as comunidades, que produzem cultura fora das universidades, e a comunidade acadêmica. Entre suas múltiplas atividades, Heloisa tinha especial atenção à cultura produzida nas periferias das grandes cidades.
A professora Lilia Schwarcz, pesquisadora da USP, falou com saudade da amiga. “Acaba de nos deixar a querida Helô Teixeira. Ela deve estar agitando essa outra dimensão em que hoje está. E dando uma série de ideias para revolucionar tudo o que encontrar. Pois Helô era assim, uma pessoa sempre à frente do seu tempo. Uma visionária, uma revolucionária. Era também uma mulher inclusiva e plural. Foi ela que me ensinou a ser feminista, a querer sempre mais e a não me acomodar. Numa nota pessoal, preciso dizer que ela me inventou como pesquisadora acadêmica, nos idos de 1988. Inventou que cobriria as manifestações sobre o centenário da abolição em São Paulo. Ela era assim. Um furacão de conteúdo e ativismo”, contou Lilia.
Secretária municipal de Ciência, Tecnologia e Inovação do Rio, a professora Tatiana Roque também lembrou o papel de Heloísa como desbravadora de caminhos. “Uma intelectual insubstituível que soube, como ninguém, levar a universidade para as quebradas, como ela gostava de dizer, e criou essa iniciativa linda: a Universidade das Quebradas. Heloisa entendia que o maior potencial que nós temos na universidade são as pessoas que vêm de diferentes territórios e que conseguem, nessas conexões de pensamento, criar o novo. E ela sempre incentivou e apoiou de todas as formas possíveis”, disse Tatiana.
Ex-aluna doutorado e colega de Heloisa na Escola de Comunicação da UFRJ, a pró-reitora de Extensão, professora Ivana Bentes, pontuou que a pesquisadora inovou também em termos de linguagem: “Te agradeço por todas as portas abertas, todas as vezes que viu e parou para ouvir tudo que emerge e se move. Com você aprendi que a pesquisa pode ser desengessada, ágil e falar a linguagem de todos. Um ensaísmo pop que nos liberta do academicês e nos autoriza a pensar sem amarras. Um privilégio ter sido tua contemporânea, estar nesse mesmo tempo que conecta muitas gerações e mundos!”.
Ivana destacou a importância de Heloisa na conexão entre as periferias e a universidade. “Heloisa criou e participou da Universidade das Quebradas, um programa de extensão na UFRJ que trouxe a produção cultural e de pensamento das periferias para o diálogo acadêmico. Mostrando quanto a extensão universitária pode impactar na vida da cidade e da produção de conhecimento”.
Paulista de Ribeirão Preto, Heloisa nasceu em 26 de julho de 1939, graduou-se em Letras Clássicas pela PUC-Rio em 1961, e foi admitida como professora da UFRJ em 1965. Tornou-se titular da instituição em 1969. Fez mestrado e doutorado em Literatura Brasileira na UFRJ, e pós-doutorado em Sociologia da Cultura na Universidade de Columbia, em Nova York.
Em 2023, mesmo ano em que foi eleita para ocupar a 30ª cadeira da Academia Brasileira de Letras (ABL), sucedendo Nélida Piñon, Heloisa tomou a decisão de trocar o sobrenome que herdara de seu primeiro companheiro, o advogado e galerista Lula Buarque de Hollanda, já falecido, pelo sobrenome materno: Heloisa Teixeira
Com uma velocidade impressionante, o presidente norte-americano Donald Trump desferiu nestes primeiros 24 dias de março um arsenal de golpes contra seus inimigos preferenciais — as universidades, os servidores públicos, a Educação e a Justiça — que não deixa dúvidas quanto ao caráter autoritário de seu segundo mandato na Casa Branca. No caso das universidades, os ataques incluem o corte de recursos federais, a intervenção acadêmica e a prisão e deportação de estudantes e professores.
Entre tantos episódios que remetem aos tempos da Guerra Fria, talvez o mais emblemático seja o do estudante Mahmoud Khalil, aluno da Universidade de Columbia, em Nova York. Um dos líderes dos protestos estudantis contra a guerra em Gaza, ele teve seu visto suspenso e aguarda a deportação numa prisão na Louisiana. Foi detido num alojamento da universidade, em 8 de março, diante da mulher, que está grávida de oito meses. “Esta é a primeira prisão de muitas que virão”, disse Trump na rede Truth Social, acusando Khalil de ser um “estudante radical a favor do Hamas”.
Refugiado palestino criado na Síria, o estudante se declara um preso político, e sua detenção abriu mais um capítulo na cruzada de Trump contra outro inimigo prioritário desde que assumiu o governo: a Justiça. Khalil só não foi ainda deportado porque está amparado por um bloqueio à deportação determinado por um juiz federal de Nova York. O governo Trump já tentou dois recursos para derrubar a medida, mas não teve sucesso.
A médica Rasha Alawieh, de origem libanesa, professora da Faculdade de Medicina da Universidade Brown, não teve a mesma sorte. Detida em 13 de março, quando voltou aos Estados Unidos depois de uma viagem para visitar a família no Líbano, ela foi deportada dois dias depois, sob a alegação de ter participado do funeral de Hassan Nasrallah, líder do Hezbollah morto durante ataque de Israel em 2024. Os advogados da docente conseguiram que um juiz de Massachusetts ordenasse ao governo comunicar com 48 horas de antecedência a deportação. A medida foi ignorada: ela foi colocada em um voo para a França, de onde seguiu para o Líbano.
EMBATES
Para o pró-reitor de Pós-Graduação e Pesquisa da UFRJ, professor João Torres, os ataques do governo Trump às universidades representam um retrocesso aos tempos da Guerra Fria. Ele cita uma correspondência enviada pela administração federal dos Estados Unidos à Universidade de Columbia no dia 13 de março, com uma série de medidas a serem tomadas sem as quais a instituição não terá mais acesso a recursos do governo. “A carta é uma peça de intervenção. Um ataque direto à liberdade de expressão e de cátedra, algo sem precedentes nos Estados Unidos desde o macarthismo”, avalia o professor.
Entre as medidas impostas está a intervenção “por no mínimo cinco anos” no Departamento de Estudos do Oriente Média, Sul da África e Ásia, além de novas regras para admissão de professores e alunos, e a investigação e expulsão de estudantes. João Torres estranha a passividade com que Columbia tem aceitado as imposições. “No caso de Mahmoud Khalil, preso sem nenhum crime comprovado, a universidade tem se mantido em silêncio e seus comunicados sequer citam o nome do aluno, algo que impressiona”.
Na sexta-feira (21), a Universidade de Columbia aceitou formalmente uma série de medidas exigidas pelo governo como pré-condição para recuperar os investimentos cortados.
Professor do IFCS, o sociólogo e cientista político Paulo Baía vê paralelos entre as ações de Trump em relação às universidades com a postura adotada pelo governo Bolsonaro no Brasil. “A política do governo Trump é contra a autonomia da Ciência, dos cientistas e dos pesquisadores. É contra a universidade que preza a liberdade de cátedra e a liberdade de pensamento. Eles querem que toda a produção de conhecimento seja feita por corporações empresariais. E não é uma questão de privatização, porque as universidades norte-americanas já são privadas. A política de Trump é sinergética ao bolsonarismo, que também tentou atingir as universidades naquilo que elas têm de mais importante: o seu pluralismo, a sua democracia interna”, compara Baía.
PERSEGUIÇÕES
O incentivo a delações e as averiguações de conduta feitas pelo governo Trump só encontram paralelo no macarthismo (veja quadro na página 9). Há relatos de abordagens diretas feitas por integrantes de agências governamentais a professores e servidores públicos em seus locais de trabalho. Na semana passada, um comunicado interno da Universidade do Estado da Louisiana (LSU) orientava os professores a direcionar abordagens de agentes do governo ao Departamento de Recursos Humanos da instituição.
Nem os professores estrangeiros em visita aos Estados Unidos escapam das abordagens. No dia 9 de março, um cientista francês, cujo nome não foi revelado, foi barrado no aeroporto de Houston, no Texas, onde participaria de uma conferência como representante do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França. Os agentes o selecionaram para uma revista, encontraram mensagens com críticas às medidas do governo Trump contra as universidades em seus aparelhos eletrônicos e o enviaram de volta à França. Ao saber do caso, o ministro francês de Educação Superior e Pesquisa, Philippe Baptiste, declarou: “Liberdade de opinião, pesquisa livre e liberdade acadêmica são valores que continuaremos a defender com orgulho. Defenderei o direito de todos os pesquisadores franceses de serem fiéis a eles, respeitando a lei”.
Marco Antônio Sousa Alves, professor de Teoria e Filosofia do Direito e do Estado da UFMG, sentiu na pele essa onda persecutória do governo Trump. Ele teve um projeto cancelado depois de ter sido aprovado pela agência de fomento norte-americana Fulbright. O projeto traria ao Brasil, para um ciclo de debates, o professor Bernard Harcourt, da Universidade de Columbia, e foi vetado por conter termos considerados inapropriados pela agenda America First do governo Trump, como “Human Rights” e “oppressions of gender, class, and race”.
“Universidades, especialistas, cientistas e grupos de pesquisa são tradicionalmente vistos como inimigos a ser batidos pelos grupos de extrema direita. Só que agora ganharam uma prioridade, envolvendo cortes de recursos, como os 400 milhões de dólares de Columbia, de onde vinha nosso convidado, e perseguições políticas, como a do estudante palestino. Temos uma deriva muito perigosa nos Estados Unidos, que vai minando aos poucos a base de um Estado Democrático de Direito. Corremos o risco de ter um governo autoritário claramente estabelecido nos Estados Unidos”, avalia o professor da UFMG.
Marco Antônio também vê semelhanças notáveis entre o segundo governo Trump e o macarthismo. “A extrema direita tem muita penetração em pautas negacionistas, como os movimentos antivacina, a negação do aquecimento global, e tende a politizar a Ciência, fazer leituras inspiradas em teorias conspiratórias. Estamos vendo hoje nos Estados Unidos algo que houve há tempos atrás, no auge da Guerra Fria, no macarthismo, na caça às bruxas, que eram os comunistas. Isso teve um impacto tremendo nas universidades norte-americanas naquela época. Acho que a gente está revivendo algo parecido, como um neomacarthismo. Agora os inimigos passam pelas teorias de gênero, a defesa da Palestina, os direitos humanos”.
RESISTÊNCIA
A cruzada do governo Trump contra a agenda “woke” — algo como “tô ligado”, “acordei” e que designa a conscientização em relação a temas sociais e raciais, entre outros — está por trás dos ataques às universidades norte-americanas. A Universidade de Columbia encabeça a lista de instituições cerceadas e investigadas, algumas integrantes da prestigiosa Ivy League, grupo conhecido pela excelência acadêmica e influência mundial, como Harvard, Yale, Princeton e a própria Columbia. Tanto quanto o cerco, chama atenção a passividade com que essas instituições têm lidado com o cenário adverso. Harvard e Penn State aceitaram, por exemplo, o congelamento temporário na contratação de professores.
“A postura de não resistir a essa pressão é muito ruim. No caso de Columbia, vai contra um legado histórico. Os estudantes lá tiveram um papel crucial na luta contra o apartheid na África do Sul, nas décadas de 1970 e 1980, com protestos e campanhas de desinvestimento. Da mesma forma como fazem hoje em favor da Palestina. Os que participam de colaborações internacionais estão muito preocupados, porque não sabem até onde isso vai. Estão de certa forma se acovardando, cedendo à pressão de retirar palavras de seus documentos. Se compararmos o que nossas universidades sofreram sob o governo Bolsonaro, posso dizer que nós tivemos um pouco mais de atitude”, diz João Torres, que presidiu a AdUFRJ no período bolsonarista.
Marco Antônio prevê tempos difíceis, mas diz que é preciso resistir. “Meu temor é uma nova Era das Trevas, na qual se passa a perseguir cientistas, pesquisadores, pensadores, por supostos crimes de ideia. E que um governo autoritário passe a pautar as pesquisas científicas, impedindo que determinados temas sejam sequer estudados. A esperança é que os Estados Unidos não levem o mundo com eles. Resistir e denunciar, isso me parece o caminho, com a soma da força dos sindicatos, dos movimentos sociais progressistas, para poder fazer frente a um poder que é muito grande”.
Com a proximidade das eleições presidenciais no Brasil, em 2026, o avanço da extrema direita incensada pelo governo Trump é uma preocupação urgente, na avaliação do professor Paulo Baía.
“A reação do campo democrático tem que se dar por meio do ativismo presencial e digital, junto à classe média, sobretudo, e aos segmentos populares. Isso é fundamental para combater as fake news da direita. E não pode ser um ativismo acadêmico. Temos que perceber que há uma nova sociedade brasileira, bem distante da que era em 1970 ou 1980. Temos que intensificar a luta contra a intolerância religiosa, respeitar e conviver com os evangélicos, disseminar de forma clara os conceitos democráticos e progressista”, diz Baía.
A professora Mayra Goulart, cientista política e presidenta da AdUFRJ, vê com apreensão o cenário norte-americano e sua ligação com o Brasil. “Neste segundo governo Trump, o funcionalismo público tem sido um alvo preferencial de cortes, justificados por argumentos relativos à ortodoxia fiscal, mas, também, pela crença de que a gestão privada é sempre mais eficiente do que a pública. A Ciência é um segundo alvo de drásticos cortes, justificados pela crítica à diversidade e à proteção de minorias, mas também pela ideia de que são gastos desnecessários. Nós, como funcionários públicos e pesquisadores, somos um alvo certeiro”, diz Mayra.
“O que está em jogo é a sobrevivência do Estado Democrático de Direito e do nosso projeto de universidade pública, gratuita e de qualidade. Daí a importância da aglutinação das forças progressistas diante do avanço da extrema direita no Brasil, incensada pelas recentes medidas do governo Trump, sobretudo com vistas às eleições presidenciais de 2026”, completa a professora.
A ESCALADA DE MARÇO
4 de março
O presidente Donald Trump anuncia a suspensão de todo o financiamento federal para faculdades e escolas que “permitirem protestos ilegais” e avisa
que os “agitadores serão presos ou enviados de volta ao país de onde vieram”. Ele já havia ameaçado, no início de seu mandato, cortar verbas de instituições de ensino que estimulassem a agenda “woke”, de conscientização política, racial, ambiental, social e de gênero.
7 de março
A administração federal divulga cortes de 400 milhões de dólares (R$ 2,3 bilhões) nos fundos federais concedidos à Universidade de Columbia, acusada de ter sido passiva “diante do persistente assédio aos estudantes judeus” durante protestos contra a guerra em Gaza, em 2024. Seis dias depois, a universidade anunciou punições a estudantes que ocuparam um prédio do campus no ano passado durante os protestos.
8 de março
Agentes do Departamento de Imigração e Alfândega prendem Mahmoud Khalil, aluno da Universidade de Columbia, um dos líderes dos protestos em universidades norte-americanas contra a guerra em Gaza. Detido em um alojamento da universidade, ele teve o seu visto de estudante revogado e foi levado a uma prisão na Lousiana.
9 de março
Um cientista francês é detido e impedido de entrar nos Estados Unidos por causa de mensagens críticas ao presidente Donald Trump. Ele estava a caminho de uma conferência em Houston, no Texas, quando agentes da Alfândega e Proteção de Fronteiras dos EUA o selecionaram para uma revista mais abrangente e encontraram mensagens de celular em que o francês criticava os cortes em pesquisas científicas nos EUA a grupos de amigos.
11 de março
O Departamento de Educação dos EUA informa a redução drástica de seu quadro de funcionários. A agência é responsável por administrar empréstimos para universidades, acompanhar o desempenho de alunos e aplicar os direitos civis nas escolas. Dos 4.133 servidores, 1.315 foram demitidos, 572 aceitaram a demissão voluntária, e 63 que estavam em estágio probatório foram desligados.
13 de março
A Universidade Johns Hopkins anuncia a dispensa de mais de dois mil funcionários devido aos cortes de 800 milhões de dólares (R$ 4,6 bilhões) impostos pelo governo Trump.
Em carta enviada à Universidade de Columbia (detalhes acima), o governo Trump faz uma série de exigências como “pré-condição para negociações formais sobre o relacionamento financeiro contínuo” da instituição com o governo dos Estados Unidos. Entre as exigências estão a intervenção no MESAAS Departament e a investigação e expulsão de estudantes. Columbia acatou as imposições.
14 de março
A administração federal abre investigação contra mais de 50 universidades por programas de diversidade. O Departamento de Educação justificou a medida pela necessidade de “averiguar supostas práticas discriminatórias contra estudantes brancos e asiático-americanos”.
15 de março
A médica Rasha Alawieh, de origem libanesa, professora da Faculdade de Medicina da Universidade Brown, é presa e deportada, apesar de ter visto válido e estar protegida por ordem judicial. Ela foi detida em 13 de março, quando voltou aos Estados Unidos depois de uma viagem para visitar a família no Líbano. O motivo da prisão e da deportação foi a presença da médica no funeral de Hassan Nasrallah, líder do Hezbollah morto durante ataque aéreo de Israel em setembro de 2024, em Beirute.
19 de março
O governo suspende 175 milhões de dólares (R$ 1 bilhão) em financiamento federal para a Universidade da Pensilvânia, sob a alegação de que a instituição “força mulheres a competirem contra homens nos esportes”. O corte se baseou em decreto presidencial de fevereiro, que proibiu a participação de transgêneros em esportes femininos.
20 de março
Trump assina a ordem executiva que esvazia as funções e dá início à extinção do Departamento de Educação. O documento determina que as funções da instituição sejam transferidas gradativamente aos estados. O fechamento terá ainda de ser apreciado pelo Congresso.
MACARTHISMO, DOENÇA INFANTIL DO CAPITALISMO
Com o fim da Segunda Guerra e o início da Guerra Fria, a perseguição interna a milhares de norte-americanos rotulados como comunistas se intensificou. Figura central dessa cruzada, o senador republicano Joseph McCarthy (foto) comandou inquéritos contra funcionários públicos, artistas, intelectuais, educadores e sindicalistas, com apoio do FBI, comandado por J. Edgar Hoover, em busca de supostos “espiões soviéticos”.
Essa “caça às bruxas”, como se convencionou chamar no final dos anos 1940 e início dos anos 1950, incentivava as delações, como o que vem ocorrendo agora nos Estados Unidos. O macarthismo passou a denominar um conjunto de práticas de acusação de traição e subversão, mesmo sem provas. Milhares de funcionários do governo norte-americano foram demitidos de 1950 a 1957.
Qualquer semelhança com o segundo governo Trump não é mera coincidência.