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‘Quarenta anos depois da chegada de Colombo a Santo Domingo, na República Dominicana, em 1492, foi criada uma universidade. Aqui, a primeira universidade de verdade desse país foi criada em 1920 (a UFRJ), 420 anos depois da chegada de Cabral. Essa é a demonstração do atraso educacional do Brasil”, disse o presidente Lula durante a cerimônia de comemoração ao dia do professor, no Parque Olímpico, na última quarta-feira. Durante o evento, Lula realizou um antigo pleito dos professores e professoras brasileiros. A criação de uma carteira nacional docente, válida em todo território nacional e com função de documento de identidade oficial.
A cerimônia foi grandiosa, com mais de 3 mil pessoas. Entre eles, 100 docentes da UFRJ que receberam o documento – confira depoimentos AQUI).
A carteira possibilita benefícios exclusivos: meia-entrada em eventos culturais, cartões de crédito com condições diferenciadas, descontos em hotéis e em lojas parceiras. Mas seu valor simbólico, de identificação oficial e valorização do magistério, representa muito mais para os docentes.
“Ter o presidente da República valorizando o professor e entregando as carteirinhas me orgulha muito. Disseram que vamos ter descontos com a carteira, mas não sobre isso, é sobre o orgulho de mostrar essa carteira linda quando nos pedirem a identificação de docente”, disse o reitor Roberto Medronho, personagem central de um vídeo apresentado no começo do evento.
Em seu discurso, Lula ressaltou que foi o presidente que mais implantou universidades e institutos federais, apesar de jamair ter cursado uma universidade. “Desse público aqui, sou o único sem diploma universitário. Tenho o primário e um diploma do SENAI. Por isso, minha obsessão pela educação. Quero garantir que todos tenham a mesma oportunidade”, afirmou.
O presidente anunciou que o governo criará, ainda este ano, uma Universidade Federal Indígena e a Universidade do Esporte. “Quero que esse país tenha muitos diplomas universitários, mas com conhecimento a serviço do povo. Não a serviço pessoal”, observou. “Nós precisamos formar mais engenheiros, mais matemáticos. Esse país não pode continuar sendo exportador de soja e de milho. Precisamos exportar inteligência, conhecimento, tecnologia”.
Na gestão Bolsonaro, os educadores não tinham vez com o governo. Mas Lula assegurou que, com ele, a história é diferente: “Vocês têm que tirar proveito disso e pedir mais coisas. Peçam!”, afirmou, arrancando aplausos e gritos de apoio da plateia.
RECONHECIMENTO
A ideia da carteirinha surgiu a partir de pedidos dos docentes de diferentes partes do país, relatou o ministro da Educação, Camilo Santana. “Eles diziam: ministro, às vezes, a gente vai ao cinema e, para provar que sou professor, tenho que imprimir meu contracheque. Isso é uma humilhação”, disse. “Por que o advogado tem a carteirinha dele? Por que o médico tem a carteira dele? Por que a gente não pode criar a carteirinha da mais importante profissão deste país, que é a do professor?”, questionou.
Camilo informou que, nesta primeira etapa, as carteirinhas poderão ser solicitadas pelos docentes com vínculo ativo. “Estamos entregando 1,5 mil carteiras para os professores daqui no Rio de Janeiro como início da entrega de 2,7 milhões que poderão ser emitidas no Brasil. Mas vamos emitir também para os professores aposentados deste país”.
COMO PEDIR
A solicitação da carteira pode ser feita no site do programa Mais Professores (https://maisprofessores.mec.gov.br), fazendo login com a conta SouGov. É preciso que o professor tenha CPF em situação regular na Receita Federal e esteja em exercício da atividade docente em instituição de ensino.
TODOS OS RECADOS DO PRESIDENTE
A cerimônia de emissão das carteiras nacionais docentes não foi só celebração. De olho nas eleições do ano que vem, Lula usou boa parte do evento para enviar algumas mensagens políticas.
A primeira é que Eduardo Paes (PSD) será o candidato de Lula ao governo do Rio. Independentemente de qualquer composição de chapa com a esquerda fluminense ou das vaias que o prefeito e seu secretário Renan Ferreirinha receberam dos educadores municipais no dia 15.
Olhando diretamente para Paes, que lidera as pesquisas de intenção de voto para governador, Lula disparou: “Não consigo entender, Eduardo Paes, como é que esse estado altamente politizado elege um cara para governador que era um juiz picareta, que se meteu em corrupção”, em referência a Wilson Witzel, eleito contra o próprio Paes em 2018. Witzel, que sofreu impeachment em 2021, já manifestou em entrevistas o desejo de voltar a disputar o cargo no ano que vem.
Também em 2026 estarão em disputa duas vagas ao Senado em cada estado. A deputada federal Benedita da Silva (PT) é a aposta do presidente para ocupar uma delas. No evento do Dia do Professor, Bené ganhou um lugar de destaque na primeira fila de autoridades, em cima do palco, e foi bastante aplaudida. Ela e o senador Flávio Bolsonaro (PL), que buscará a reeleição, estão à frente da disputa, nas pesquisas mais recentes.
Lula não perdeu a oportunidade de alfinetar o adversário da petista: “Pedi pro Camilo ler tudo que a gente fez na educação. Se a gente não disser, os adversários vão dizer tudo ao contrário. Ano que vem é o da verdade. Quem quiser mentir vá para a casa do chapéu”, afirmou. “Porque a gente não vai permitir a volta de mentiroso nesse país. Chega de cidadão ir para os EUA e ficar inflando os americanos contra nós. E tem alguém da família que é candidato a senador aqui (no Rio)”, completou.
Para derrotar a extrema direita, é preciso fazer alianças ao centro e o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos), integra esta articulação. Quando Motta foi chamado a discursar, ouviu vaias e gritos contra a anistia dos golpistas de 8 de janeiro. Lula rapidamente se levantou, ficou ao seu lado até o fim da fala e puxou aplausos para o deputado.
“Hugo é presidente deste Congresso. Ele sabe que este Congresso nunca teve a qualidade de baixo nível como tem agora”, disse Lula. “Aquela extrema direita que se elegeu na eleição passada é o que existe de pior. A gente não pode ter um presidente que nega Covid, que nega vacina, que tinha um ministro da Saúde que não entendia porra nenhuma de saúde”, criticou.
“Vai ser decidido por vocês. Não é por mim. Vocês que vão ter que saber qual o senador que vão eleger, qual o deputado federal, qual o deputado estadual. Depois, não adianta reclamar”, concluiu Lula. “Eu ‘tô’ nessa. Vou lutar até o fim da minha vida para que o meu neto, os netos de vocês tenham aquilo que têm direito. Soberania é qualidade de vida do nosso povo”.
Kelvin Melo e Renan Fernandes
“É como se fosse uma medalha de ouro”. Assim a professora Cecília Izidoro, da Escola de Enfermagem, definiu a nova Carteira Nacional Docente do Brasil. Ao lado de centenas de colegas da UFRJ e de outras instituições de ensino, Cecília estava exultante ao receber a linda carteirinha de couro na solenidade do último dia 15. A alegria não era pelos descontos que serão garantidos com a apresentação da carteira, mas por um tão esperado reconhecimento institucional. “A sensação é que éramos uma categoria que estava no fim da fila. Para provar que era professor na entrada do cinema, por exemplo, precisava imprimir o contracheque ou entrar no SouGov”, reforçou o professor Daniel Conceição, diretor da AdUFRJ. “Agora, temos essa carteira linda, que mostra o reconhecimento institucional pelo nosso valor”. Confira a seguir os depoimentos dos docentes ao Jornal da AdUFRJ.
Nelson Braga
Professor do Instituto de Física
Em quase 40 anos de magistério, 35 apenas na UFRJ, esse foi um dos melhores presentes de dia dos professores que ganhei. Não apenas pela nova carteira, mas pela beleza da cerimônia que teve um significado além. Em todos esses anos, não me lembro de um presidente da república e um ministro da educação promoverem uma cerimônia tão bonita de reconhecimento à categoria docente inteira, representando todos os professores do Brasil.
É fundamental reconhecer a importância que os professores têm para a sociedade. Fala-se muito em valorizar o professor no Brasil, mas vemos agora um gesto concreto, que vai além das palavras. Temos agora uma maneira de nos identificar em todo país e em qualquer circunstância como sendo docentes. É uma atitude muito importante do Ministério da Educação e do presidente Lula de formalizar o reconhecimento da carreira e fiquei muito feliz.
Renata Carvalho
Espaço de Desenvolvimento Infantil Vicente de Carvalho
É um reconhecimento, uma valorização. Mesmo sendo um gesto pequeno do governo, ele é muito simbólico. Assim como outras categorias, você agora se identifica como professor. Minha identidade não precisará ser mais comprovada, ela será mostrada. É concreto.
Daniel Conceição
Professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional
Não tínhamos um documento oficial. A sensação é que éramos uma categoria que estava no fim da fila. Para provar que era professor na entrada do cinema, por exemplo, precisava imprimir o contracheque ou entrar no SouGov na frente das pessoas. É um aceno de reconhecimento pela nossa importância para um país que o presidente Lula deseja construir. Agora, temos essa carteira linda, que mostra o reconhecimento institucional pelo nosso valor.
Mayra Goulart
Professora do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais e ex-presidenta da AdUFRJ
Já passei por situações em que, para comprovar a meia-entrada, precisei abrir o SouGov e estava sem internet. Uma coisa horrível! A CND representa a recuperação da autoestima do professor.Ainda que os incentivos financeiros não sejam o suficiente, os incentivos simbólicos de ter um presidente do nosso lado fazem toda a diferença. Não é à toa que a área da educação é a mais bem avaliada do governo nas pesquisas.
Roberto Medronho
Reitor
Ter o presidente da República valorizando o professor e entregando as carteirinhas me orgulha muito. Disseram que vamos ter descontos com a carteira, mas não sobre isso, é sobre o orgulho de mostrar essa carteira linda quando nos pedirem a identificação de docente. A presença do Lula tornou esse momento ainda mais especial. O presidente que mais investiu em educação na história do Brasil, que mais implantou universidades e institutos federais.
O trabalho que o presidente Lula iniciou permite que hoje tenhamos alunos moradores da Maré estudando Medicina na UFRJ. Isso é muito importante. Transforma vidas, famílias, comunidades inteiras. E toda essa transformação só é possível com professores, técnicos administrativos em educação e os alunos que formam esse ecossistema que nos torna a maior universidade federal do Brasil e uma das melhores da América Latina.
Estou reitor, mas eu sou professor. Tenho 35 anos de docência e 47 na UFRJ. Entrei como aluno, me apaixonei e nunca mais saí. É um amor que durará para sempre. Só quero sair quando me for encomendado algo melhor lá em cima.
Pedro LagerbladProfessor do Instituto de Bioquímica Médica e 1º secretário da AdUFRJ
É um reconhecimento simbólico. Existirão pequenas vantagens no dia a dia, mas é um reconhecimento simbólico da profissão junto à população. Traduz o reconhecimento social da sua função. Foi um bom presente de dia dos professores.
Rafael Almada
Reitor do IFRJ
É uma ideia tão simples, mas que mostra um reconhecimento para uma carreira que sofre quando precisa usar a meia-entrada ou quer usar algum desconto. Dá um orgulho poder mostrar a carteira nos espaços. O MEC acerta muito ao criar esse programa e criar a possibilidade desse reconhecimento a partir de um simples gesto de ter uma carteira profissional válida no Brasil todo. Receber, simbolicamente, a carteirinha das mãos do presidente Lula foi um dos maiores presentes dos meus 20 anos de docência.
Luiz Eurico Nasciutti
Decano do Centro de Ciências da Saúde
Estou completando 50 anos como docente da UFRJ. Esse é o título mais importante da minha vida: ser professor. E professor de uma universidade pública de excelência. Fico muito feliz de estar aqui representando os professores da UFRJ. Por isso, é um orgulho imenso receber essa identidade. Muitas profissões têm suas carteiras de identificação e o professor, até hoje, não tinha. O que desejo é que esse projeto traga consequências para que a educação cresça e seja o estopim do desenvolvimento desse país.
Cecília Izidoro
Professora da Escola de Enfermagem Anna Nery
Depois de 35 anos como docente, esse foi um momento muito emocionante. Para nós, professores de todos os níveis, do ensino básico ao superior, é uma honra sermos reconhecidos no exercício da docência. Com todos os enfrentamentos e dificuldades, é como se fosse uma medalha de ouro. Hoje, todos os professores do Brasil sobem no pódio com sua carteirinha docente.
Cíntia Vieira Marinho
Professora de Ciências Físicas e
Biológicas da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro
A importância desse evento e da nova carteira do professor é, acima de tudo, a valorização do nosso trabalho. O professor precisa ser valorizado diante dos inúmeros desafios que enfrentamos na educação brasileira. Muitas vezes usamos os nossos próprios recursos para ensinar as crianças, adolescentes, jovens e adultos. A classe sente a necessidade de valorização salarial e cultural. Muitos se sentem desmotivados, sofrem com cargas horárias excedentes. Nos tiraram direitos às horas de planejamento, a investir em nossa própria formação. Por isso, muitos colegas da rede municipal aproveitaram o momento e a visibilidade para protestar.
Eliezer Menezes Pereira
Professor de Microbiologia
e Bioquímica do IFRJ
Hoje é um dos dias mais felizes da minha vida. Sou professor há 17 anos e essa carteirinha representa uma identidade, um reconhecimento para a carreira e para todos os profissionais do Brasil. Nosso compromisso com a educação nos exige muita responsabilidade e muito carinho. Receber esse reconhecimento, ainda mais com a presença do presidente Lula, é muito importante para nós, professores. Minha emoção é ainda maior porque pude trazer minha esposa e minha filha que puderam participar desse momento tão especial.
Pouco mais de 12 horas após a sua posse, a nova diretoria da AdUFRJ teve seu primeiro compromisso oficial na manhã desta quinta-feira (16): a presidenta Ligia Bahia fez uma apresentação dos principais eixos de atuação da nova gestão do sindicato, na reunião da Congregação da Faculdade de Medicina, no Centro de Ciências da Saúde, na Cidade Universitária. Entre os pontos abordados, a professora falou da estruturação de carreiras para os docentes, da luta pelo aumento do orçamento das universidades federais e da valorização da Faculdade Medicina da UFRJ, sobretudo frente ao avanço das instituições privadas.
“A nossa Faculdade de Medicina tem uma vinculação muito forte com a pesquisa, com a inovação em Saúde, e temos que valorizar isso, isso nos diferencia das faculdades privadas que existem e das que estão chegando agora”, salientou Ligia, que é professora da IESC e médica formada na Faculdade de Medicina da UFRJ. Ela também falou das carreiras docentes: “Carreiras no plural. Já passou da hora de pensarmos em carreiras para pesquisadores, carreiras para professores que não querem ou não podem ter dedicação exclusiva. Ou que são conferencistas. Carreiras pelas quais possamos transitar, que não sejam uma monotonia”, defendeu ela.
Ligia voltou a acentuar, como fizera na cerimônia de posse, que a AdUFRJ será um lugar de encontro, de reflexão e de valorização das atividades docentes. “Penso que a AdUFRJ pode ser uma câmera de descompressão entre o nosso mundo o trabalho, como professores e pesquisadores, e o mundo lá de fora, com as mudanças climáticas, as guerras e intensificação das desigualdades. E o sindicato vai fazer tudo para que o nosso trabalho se expanda”. Outra bandeira defendida pela docente é a luta por mais orçamento para as federais, “inclusive com a diversificação de fontes de financiamento”.
O diretor da Faculdade de Medicina, professor Alberto Schanaider, saudou a apresentação da presidenta da AdUFRJ: “A professora Ligia se formou em 1980, um ano antes de mim, e lembro dela entrando em sala de aula para pedir a palavra como liderança estudantil. Ao trazê-la hoje aqui, a meu convite, saúdo essa trajetória da Ligia, que é uma referência nacional em Saúde, pesquisadora e com intensa atividade política. Ela tem muito a trazer, com a sua diretoria, para o nosso corpo social”.
Foto: João LaetTrês professoras foram escolhidas pela assessoria do presidente para conversar com Lula, antes do início da solenidade do dia 15. Maria de Fátima Gonçalves, da Escola Municipal Haydea Vianna Fiuza de Castro; Moníca Trindade, do IFRJ, e Tatiana Sampaio, do Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ. “Eu estava representando os docentes universitários”, disse à reportagem. Seu nome foi indicado pelo reitor Roberto Medronho.
O vídeo do encontro foi compartilhado nos perfis oficiais da presidência. Tatiana explicou sua pesquisa no tratamento de lesões medulares e, ao final, Lula falou para a docente mandar um recado ao ministro da Saúde, Alexandre Padilha. “Pede para ele ajudar, para a Anvisa aprovar (o medicamento)”, disse. Na legenda, o presidente ainda escreveu: “Tive a alegria de ter conhecido, no Rio de Janeiro, três mulheres incríveis dedicadas à educação. Uma delas, a professora Tatiana Sampaio, desenvolveu um medicamento que pode devolver movimentos a quem sofreu lesões na medula. Um trabalho que é pura esperança”.
O processo, no entanto, está há três anos esperando a autorização da Anvisa para a realização de um estudo regulatório. A etapa é obrigatória antes da comercialização do remédio no mercado. “Na universidade, podemos fazer um estudo clínico sem autorização da Anvisa. Porque nossos resultados são para publicação científica”, contou. “Quando há interesse no desenvolvimento de um remédio, é necessário que os estudos sejam reconhecidos pela Anvisa, o que demora. Estamos há três anos pedindo. A gente pede, eles devolvem com mais perguntas. Hoje, dia 17, vamos protocolar mais uma resposta com eles. São muitas rodadas de negociação”, completou Tatiana.
CARTEIRA É RECONHECIMENTO
Logo depois da reunião, durante a solenidade, a professora do ICB recebeu a carteirinha das mãos do próprio Lula. “Receber a carteira do próprio presidente foi uma honra enorme. É uma pessoa espetacular. Fiquei muito lisonjeada”, afirmou. “Sei que ele me parabenizou, mas a emoção do momento não me permitiu guardar as palavras exatas”.
Tatiana disse que a carteirinha vai ajudar no cotidiano, mas seu significado é muito maior. “Do ponto de vista prático, é bom ter a carteira especial do professor para ter acesso aos descontos. Não vamos mais precisar andar com o contracheque na bolsa para provar que somos professores. Mas é mais do que isso: é uma forma de costurar uma identidade entre os professores e uma forma também de o país reconhecer o valor especial dos professores”.
Uma nova ameaça paira sobre a comunidade científica brasileira: o projeto de lei 330/2022. De autoria do senador Mecias de Jesus (Republicanos-RR) e em tramitação na Comissão de Ciência e Tecnologia (CCT) do Senado Federal, o PL 330 pretende criminalizar a má conduta científica e vem recebendo severas críticas de especialistas e entidades representativas da Ciência brasileira. O projeto prevê o enquadramento judicial de práticas como falsificação de dados, manipulação de resultados e ocultamento de informações sobre voluntários.
Na semana passada, a UFRJ divulgou uma nota técnica listando uma série de contradições e ambiguidades do PL (leia abaixo um resumo). Um dos signatários é o reitor Roberto Medronho, que foi duro ao comentar o projeto para o Jornal da AdUFRJ. “Embora trate de uma questão importante, que é a integridade, o PL 330 é absolutamente inadequado e busca criminalizar a atividade científica sob a égide de combater a má conduta”, afirmou. “Ele é tão abrangente que pode envolver criminalmente pessoas que utilizem eventualmente um determinado procedimento metodológico de que outros cientistas discordem. Isso é crime? Esse projeto não deve prosperar”.
O professor acredita que, se aprovado, o projeto será um duro golpe para a pesquisa no país: “Temo que os mais jovens pesquisadores, os doutorandos, por exemplo, fiquem com medo de fazer pesquisa pelo temor de serem criminalizados. Temos que zelar pelos nossos comitês de integridade e de ética, pela revisão por pares, e pelas retratações quando há alguma inconsistência”, afirmou.
REFERÊNCIA NO MUNDO
No último dia 24, uma audiência pública na CCT do Senado debateu o PL 330. O autor do projeto não estava presente para ouvir as críticas feitas por especialistas — o Jornal da AdUFRJ fez contato com o gabinete do senador Mecias de Jesus, mas não houve retorno até o fechamento desta edição. Na justificativa do PL 330, Mecias sustenta que o objetivo é “garantir mais transparência e responsabilidade na produção científica brasileira”.
Uma das especialistas ouvidas na audiência, a presidenta da Capes e ex-reitora da UFRJ, professora Denise Pires de Carvalho, foi enfática ao afirmar que o projeto é um equívoco. “Muito me preocupa um projeto de lei que criminaliza os cientistas e a Ciência, num país que é referência mundial em integridade científica. E que isso possa levar à perseguição de cientistas como a que sofreu Galileu Galilei, que foi preso por defender que a Terra gira em torno do Sol”, lembrou.
Denise destacou que o país evoluiu muito no campo da integridade cientítica: “Falo não como presidenta da Capes, mas como cientista que sou desde a época de minha iniciação científica, quando fui treinada nos laboratórios da UFRJ. Quando defendi minha tese, em 1994, o Brasil não tinha ainda as instituições que tem hoje. Precisamos tomar muito cuidado com um projeto de lei que tenta criminalizar a atividade científica por pessoas que sequer cientistas são”.
FISCALIZAÇÃO
Para a presidenta da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Helena Nader, a motivação do projeto é legítima, mas a solução apresentada “não é a mais adequada e nem a mais eficaz”. “A Ciência é uma atividade baseada em incertezas. Erros metodológicos ou discordâncias entre grupos não podem ser tratados como crimes. O risco é criminalizar a própria prática científica, inibindo a inovação e a criatividade”, sustentou.
Helena explicou que o Brasil já tem diversos mecanismos de fiscalização do trabalho científico, como a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) — vinculada ao Conselho Nacional de Saúde (CNS) —, responsável por avaliar os aspectos éticos das pesquisas com seres humanos, e o Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal. “O Direito Penal deve ser reservado a situações extremas de dolo e dano comprovados. Para todos os outros casos, os mecanismos existentes são suficientes, e precisam ser valorizados e fortalecidos”.
Na mesma linha, o diretor da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Samuel Goldenberg, lembrou que as universidades e demais centros de pesquisa do Brasil vêm fortalecendo suas políticas internas de controle. “A condenação de cientistas, além de contribuir para a distorção do debate público, pode reforçar discursos de negação e antagonismo à própria Ciência”, recordou.
Pró-reitor de Pòs-graduação e Pesquisa da UFRJ, o professor João Torres chama a atenção para o ítem V do PL330 — “usar de maneira inadequada dados estatísticos”. “A redação é vaga, imprecisa e, na prática, confunde divergência metodológica legítima com dolo científico. Essa ambiguidade abre espaço para transformar controvérsias técnicas em litígios penais, inibindo o debate acadêmico e a correção normal da literatura, mecanismos basais da autorregulação científica”, diz.
Físico com larga experiência em colaborações internacionais, João Torres observa que a estatística “não é uma tábua com dez mandamentos”: “Análises estatísticas podem seguir paradigmas diferentes e, mesmo dentro de cada paradigma, há vasta escolha de modelos, testes e estratégias de ajuste. Não é raro que conclusões divirjam. Criminalizar ‘uso inadequado’ ignora essa pluralidade. O item V, tal como redigido, não distingue fraude de divergência metodológica e, por isso, fragiliza a Ciência que pretende proteger”.
1. “Má conduta científica”
e erro honesto
“O PL 330 se apropria do termo ‘má conduta científica’ de forma vaga e, ao mesmo tempo, descomprometida com a complexidade do termo em um contexto de produção científica internacional. (...) O PL 330 trata má conduta e erro honesto, ou mesmo discordâncias metodológicas, como se fossem equivalentes. (...) Criminalizar esse e outros tipos de abordagens interpretativas abriria espaço para a judicialização indevida do próprio debate científico, transformando divergências acadêmicas em litígios penais, com grande potencial de dano à reputação e à carreira dos cientistas envolvidos.”
2. Papel das publicações e correção da literatura científica
“O PL 330 não leva em conta que a correção da literatura científica é parte da autorregulação da ciência, com publicação de correções e retratações para as quais as justificativas são públicas. (...) Em publicações científicas, caso envolva manipulação de dados experimentais, como edição inadequada de imagens, por exemplo, com impacto direto na interpretação dos resultados, também será submetida a análise de especialistas no âmbito editorial e, se necessário, das instituições envolvidas. (...)”
3. Plágio e insegurança jurídica
“O PL 330, em sua configuração, inclui o plágio como parte integrante de ‘má conduta científica’, o que segue o consenso científico e de políticas de integridade científica que se estabeleceram ao longo das últimas décadas. (...) Na ciência, plágio inclui ideias, resultados, processos e texto (cuja extensão já é subjetiva). (...) Há nessa integração proposta pelo PL 330, que, portanto, criminaliza o plágio no âmbito da ‘má conduta científica’, uma perigosa insegurança acadêmica e jurídica, com risco de decisões arbitrárias e apressadas.”
4. Autoria e
responsabilidades
partilhadas
“Ao criminalizar a ‘má conduta científica’ em terreno frágil e com qualificações vagas e desarticuladas com a cultura científica e suas melhores práticas para fortalecer sua autorregulação, o PL também desconsidera os papéis e responsabilidades associadas à autoria científica. (...) Nesse sentido, a possibilidade de tal erro honesto ser mal interpretado por um denunciante criaria um ambiente de medo e seria um desincentivo para atrair jovens para a carreira científica.”
5. Perspectiva equivocada e enviesada por casos pontuais ocorridos na pesquisa em saúde
“Como já descrito, o PL 330 se sustenta, majoritariamente, em casos envolvendo a pesquisa com seres humanos, com fundamento em irregularidades pontuais (...) Essa extrapolação é ingênua e arriscada. (...) Propor esse tipo de medida, e com base em episódios pontuais, impacta a dinâmica de pesquisa em toda a ciência brasileira, bem como aspectos sobre a liberdade e a criatividade científicas que, mais do que nunca, precisam ser cultivadas.”
Considerações finais
No que tange o tratamento da ‘má conduta científica’, o PL 330 desalinha o Brasil dos padrões internacionais e tira o foco do que é absolutamente emergencial para o país neste momento: criar estratégias para que a integridade científica e a credibilidade da ciência brasileira, reconhecidas internacionalmente, sejam refletidas em ações que se comprometam a fomentar uma cultura de integridade e prevenção de má conduta. (...) Indicando uma direção oposta, o PL 330/2022 enfraquece o papel da integridade científica, que deveria ser uma prioridade no Brasil.”
Sonia Vasconcelos (IBqM/CCS – UFRJ)
Edson Watanabe (Coppe - UFRJ)
Renan Moritz Varnier Rodrigues de Almeida (Coppe - UFRJ)
Adalberto Vieyra (IBCF/CCS - UFRJ)
Cássia Turci (Instituto de Química/CCMN - UFRJ, vice-reitora da UFRJ)
Roberto Medronho (Faculdade de Medicina/CCS - UFRJ, reitor da UFRJ)