Fundir para quê?
Por Pedro Lagerblad
Quando criança, uma vez desmontei um relógio mecânico (sim o mundo já teve relógios que não eram digitais!). O relógio funcionava, as pecinhas rodavam em seu interior e os ponteiros seguiam seu movimento solene, marcando o curso das horas, minutos e segundos. O mecanismo era fascinante, um monte de pequenas partes que interagiam entre si e faziam aquela engenhoca ganhar vida. Fui tirando peças, uma a uma, na minha cruel cirurgia de menino. Espalhadas as partes sobre a mesa, desnecessário dizer que o relógio jamais voltou a funcionar. A sensação que muitos brasileiros tem hoje é de que o país caiu nas mãos de gente que desmonta o Estado brasileiro como uma criança (da minha época) desmontava um relógio, pondo as peças sobre a mesa e tentando remontá-lo, sem muita preocupação sobre o resultado da “experiência”. É o que parece a proposta de fusão CAPES/CNPq. Brincadeira de criança, ou no máximo uma piada sem graça de arremedo de youtuber, fruto talvez de uma adolescência mal resolvida.
Mas essa sensação é metade certa, metade engano. A metade certa é que evidentemente a ideia da fusão das duas agências é coisa de quem não é do ramo. A proposta do governo conseguiu rapidamente unificar praticamente todos que entendem minimamente do assunto e o abaixo-assinado contrário à fusão já ultrapassou 1 milhão de assinaturas (ref). Não apenas a comunidade acadêmica (SBPC, ABC, ANDIFES, movimentos sociais etc) se postou imediatamente contrária, mas imprensa e políticos dos mais variados matizes que tenham tido alguma proximidade com temas de C&T, todos se manifestaram consensualmente contrários. O óbvio, que repito aqui de forma sumária, é que são órgãos complementares, com atividades distintas que mostram interdependência e sinergia quando o investimento é significativo e existe articulação. Isto aconteceu durante o ciclo virtuoso recente de desenvolvimento científico do país, caracterizado pelo aumento explosivo da produção científica e da formação de pessoal altamente qualificado pela pós-graduação. Mas há um lado enganoso na visão de que atrás de toda essa bizarrice existe apenas o amadorismo. Seria mais fácil se fosse assim. A proposta da fusão não se trata apenas de um equívoco movido unicamente pela ignorância, como se não houvesse um plano. Definitivamente, não é o caso. No meio do espetáculo circense há uma lógica fria e bem pensada, baseada no objetivo tão propalado do “Estado mínimo”. O que se persegue não é a melhoria do funcionamento do sistema, mas a diminuição do seu tamanho e do seu “custo”.
Há sem dúvida setores do Estado que podem ser alvo uma política consistente de aumento da eficiência, de modo a gerar economias substantivas (sem comprometer o atendimento de sua função social). Mas dificilmente este é o caso do CNPq ou da CAPES. Claro, é possível e necessário melhorar, mas ambos os órgãos se notabilizam por aplicar a enorme maioria dos seus recursos nas suas atividades fim, com um percentual muito modesto de gastos na administração. A CAPES, por exemplo, em 2015 gastava pouco mais de 2% do seu orçamento internamente, ou seja, empregava mais de 97% dos seus recursos em atividades fim (bolsas e apoio a programas de pós-graduação, principalmente). O CNPq funciona em um patamar semelhante, gastando em torno de 6% do seu orçamento com a administração. Do ponto de vista de gestão, são o Estado que deu certo, um modelo de eficiência, especialmente se comparados a outras áreas do executivo, mais ainda frente ao judiciário ou legislativo. Qualquer um que pense nas finalidades para as quais se destinam CAPES e CNPq jamais acharia que o caminho para o desenvolvimento começa com botar dois órgãos eficientes de pernas pro ar.
Contrastando com isso, os frutos do trabalho do sistema brasileiro de C&T podem ser medidos no aumento da produção de conhecimento (o aumento da produção científica brasileira em quantidade e qualidade é um fato reconhecido internacionalmente), na formação de pessoal qualificado (mais de 200 mil estudantes de pós-graduação no país hoje) e na geração de tecnologia e instrumentos de gestão de empreendimentos públicos e privados. Os exemplos pontuais são inúmeros, como o pré-sal, a elucidação da relação entre o vírus da Zika e a microcefalia, os aviões da EMBRAER, o aumento da produtividade agrícola e outros.
Um sistema que agrega valores na escala em que o conhecimento cientifico gera não pode ser alvo de sovinices como a pretensa economia alardeada com a fusão. Basta uma conta de padaria simples para visualizar o impacto futuro dessas medidas. Se reduzirmos 50% das despesas operacionais dessas agências (o que seria praticamente impossível sem destruí-las) isso representará uma economia de 1% sobe o custo total. Se esse corte draconiano diminuir a eficiência de uso dos 97% dos recursos que são empregados nas atividades fim em apenas 10% (uma estimativa extremamente otimista), já teríamos um prejuízo operacional muito expressivo (perdendo, sob a forma de uso ineficiente, dez vezes mais do que a suposta economia). O quadro piora muito, se levarmos em conta que o retorno para a sociedade é multiplicativo em se tratando de C&T e educação. É um lugar comum que o nível educacional do trabalhador correlaciona a remuneração com a empregabilidade, refletindo que os agentes econômicos, privados ou estatais, reconhecem na educação uma fonte de aumento da eficiência e do retorno financeiro. Há uma farta literatura mostrando que os investimentos em educação e C&T retornam aos países que fizeram estes investimentos muitas vezes os valores investidos. Mas isso toma tempo, e não existe atalho neste caminho, o conhecimento gera riqueza na proporção muito maior, mas é um exercício de perseverança, incompatível com o timing exigido pelo Arcebispo Paulo Guedes e o Deus Mercado, que demandam lucros semanais para satisfazer o apetite voraz do pregão da bolsa. E essa é a questão de fundo: a preservação do papel do Estado como agente do desenvolvimento (limitando e normatizando a natureza selvagem do capital tendo em vista o retorno no longo prazo e níveis de bem-estar social minimamente aceitáveis) ou o modelo neoliberal, cruel e desigual, ao qual estamos sendo jogados a passo largos.
De fato, a bem da justiça, devemos reconhecer que o processo de desmonte do parque de ciência e tecnologia nacional não começou com o governo Bolsonaro. O Clã Bolsonaro não inventou a ideia de que o investimento em educação, ciência, tecnologia e cultura estava sendo excessivo. O que se viu desde o início do governo Temer e aprofundado de forma radical no governo atual foi a redução dramática do investimento em C&T em todas as suas principais frentes (Figura 1). O orçamento da CAPES que já foi de 7 bilhões caiu a quase 1/3 em 2020 e um corte ainda mais draconiano está sendo previsto para o ano que vem. Isso sem falar nos malfadados contingenciamentos, tratados pelo ministro como apenas um detalhe rotineiro, mas que representaram um desgaste profundo na credibilidade do sistema de ensino e pesquisa junto à sociedade e à própria comunidade universitária. Provas de ingresso nos cursos foram canceladas, alunos desistiram de seguir na pós-graduação, prejuízos enormes e difíceis de serem avaliados. O jogo do contingenciamento, seguido de liberação de recursos próxima do final do ano, é uma estratégia para disfarçar o corte global já decidido pela LOA (como mostra a figura 1). Para quem vive o dia a dia da Universidade, esse quadro tem duas dimensões: uma é a dos números, dos ganhos e perdas econômicas, da avaliação das forças históricas globais que são o pano de fundo desse furacão que ameaça destruir a universidade brasileira como a conhecemos. Mas há um outro lado, a dimensão humana do problema. Cresce a cada dia o número de alunos que abandonam vocações, cresce a evasão. A cada evadido, um drama pessoal, um sonho que se perde. Dentro dos laboratórios, aumenta a olhos vistos a incidência de casos de depressão entre alunos, funcionários e professores. Essa é a guerra deles. Qual é a nossa? Se os primeiros anos desse século pareciam animadores para aqueles que sonhavam com um país mais justo, mais educado, mais humano, o balanço deste ano não permite dúvidas. A luta da academia é pela sua sobrevivência, pelo conhecimento, mas muito além disso, é pela preservação da esperança.
“Sou integralmente produto da UFRJ”
Por Ana Beatriz Magno e Silvana Sá
Pedro acumula prêmios nacionais e internacionais, assina a orientação de 23 teses de doutorado, e dedica seus dias e noites a decifrar a estrutura bioquímica dos insetos “chupadores de sangue”, como os mosquitos Aedes e barbeiro –transmissor da Doença de Chagas. “Tento descobrir como os insetos conseguem digerir a enorme quantidade de sangue que sugam quando se alimentam”, resume. “O mosquito come três vezes mais do que seu peso”, completa o docente fascinado pelo fantástico mundo entomológico. “Mais de 70% das espécies animais são insetos”, justifica.
A investigação de Pedro é essencial para entender o metabolismo dos insetos e nos ensina a importância da pesquisa básica – aquela que não está ligada diretamente a uma aplicação imediata. “A universidade é o lugar que me permite fazer o que eu gosto: investigar coisas que ninguém sabe, que não estão escritas em livro. E, ao mesmo tempo, dividir esse conhecimento com alunos e colegas”.
Militante do movimento secundarista nos tempos da ditadura, Pedro chegou a atuar na clandestinade nos anos 70, mas nunca permitiu que sua opção política o distanciasse do rigor acadêmico. “O laboratório é onde me sinto mais professor. Aqui impacto mais na formação dos alunos do que em sala de aula”, avalia. A experiência do laboratório mistura ensino, pesquisa e extensão. É uma relação viva”.
Coordenador do INCT (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia) de entomologia molecular da UFRJ, o professor lamenta o desmonte da educação e da pesquisa no país. “Voltamos a patamares de orçamento do período anterior ao governo Lula, mas a comunidade científica aumentou quatro vezes”, compara. “Já tive cinco pós-doc. Hoje tenho um. Não há mais bolsas”.