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WhatsApp Image 2022 08 08 at 19.30.56O professor Goffredo da Silva Telles lê a “Carta aos Brasileiros” para alunos da Faculdade de Direito, em São Paulo - Foto: FOLHAPRESS/FOLHAPRESSDas Arcadas do Largo de São Francisco, do “Território ­Livre” da Academia de Direito de São Paulo, dirigimos a todos os brasi­leiros esta Mensagem de Aniversário, que é a Proclamação de Princípios de nossas convicções políticas.

Na qualidade de herdeiros do patrimônio recebido de nossos maiores, ao ensejo do Sesquicentenário dos Cursos Jurídicos no Brasil, queremos dar o testemunho, para as gerações futuras, de que os ideais do Estado de Direito, apesar da conjuntura da hora presente, vivem e atuam, hoje como ontem, no espírito vigilante da nacionalidade.
Queremos dizer, sobretudo aos moços, que nós aqui estamos e aqui permanecemos, decididos, como sempre, a lutar pelos Direi­tos Humanos, contra a opressão de todas as ditaduras.
Nossa fidelidade de hoje aos princípios basilares da Democracia é a mesma que sempre existiu à sombra das Arcadas: fidelidade indefectível e operante, que escreveu as Páginas da Liberdade, na História do Brasil.
Estamos certos de que esta Carta exprime o pensamento ­comum de nossa imensa e poderosa Família - da Família formada, durante um século e meio, na Academia do Largo de São Francisco, na Faculdade de Direito de Olinda e Recife, e nas ­outras grandes Faculdades de Direito do Brasil - Família indestrutível, espalhada por todos os rincões da Pátria, e da qual já saíram, na vigência de Constituições democráticas, dezessete Presidentes da República.

1. O Legal e
o Legítimo
Deixemos de lado o que não é essencial.
O que aqui diremos não tem a pretensão de constituir novidade. Para evitar interpretações errôneas, nem sequer nos vamos referir a certas conquistas sociais do mundo moderno. Deliberada­mente, nada mais diremos do que aquilo que, de uma ou outra maneira, vem sendo ensinado, ano após ano, nos cursos normais das Faculdades de Direito. E não transporemos os limites do ­campo científico de nossa competência.
Partimos de uma distinção necessária. Distinguimos entre o legal e o legítimo.
Toda lei é legal, obviamente. Mas nem toda lei é legítima. Sustentamos que só é legítima a lei provinda de fonte legítima.
Das leis, a fonte legítima primária é a comunidade a que as leis dizem respeito; é o Povo ao qual elas interessam - comunidade e Povo em cujo seio as ideias das leis germinam, como produtos naturais das exigências da vida.
(...)
A fonte legítima secundária das leis é o próprio legislador, ou o conjunto dos legisladores de que se compõem os órgãos legislativos do Estado. Mas o legislador e os órgãos legislativos somente são fontes legítimas das leis enquanto forem representantes autorizados da comunidade, vozes oficiais do Povo, que é a fonte primária das leis.
O único outorgante de poderes legislativos é o Povo. Somente o Povo tem competência para escolher seus representantes. Somente os Representantes do Povo são legisladores legítimos.
A escolha legítima dos legisladores só se pode fazer pelos processos fixados pelo Povo em sua Lei Magna, por ele também elaborada, e que é a Constituição.
(...)
Imposta, a ordem é violência. Às vezes, em certos momentos de convulsão social, apresenta-se como remédio de urgência. Mas, em regra, é medicação que não pode ser usada por tempo dilatado, porque acaba acarretando males piores do que os causados pela doença.

2. A Ordem,
o Poder e a Força
Estamos convictos de que há um senso leviano e um senso grave da ordem.
O senso leviano da ordem é o dos que se supõem imbuídos da ciência do bem e do mal, conhecedores predestinados do que deve e do que não deve ser feito, proprietários absolutos da verdade, ditadores soberanos do comportamento humano.
O senso grave da ordem é o dos que abraçam os projetos resultantes do entrechoque livre das opiniões, das lutas fecundas entre ideias e tendências, nas quais nenhuma autoridade se sobrepõe às Leis e ao Direito.
Ninguém se iluda. A ordem social justa não pode ser gerada pela pretensão de governantes prepotentes. A fonte genuína da ordem não é a Força, mas o Poder.
O Poder, a que nos referimos, não é o Poder da Força, mas um Poder de persuasão.
Sustentamos que o Poder Legítimo é o que se funda naquele senso grave da ordem, naqueles projetos de organização social, nascidos do embate das convicções e que passam a preponderar na coletividade e a ser aceitos pela consciência comum do Povo, como os melhores.
(...)
Denunciamos como ilegítimo todo Governo fundado na ­Força. Legítimo somente o é o Governo que for órgão do Poder.
Ilegítimo é o Governo cheio de Força e vazio de Poder.
(...)

3. A Soberania
da Constituição
Proclamamos a soberania da Constituição.
Sustentamos que nenhum ato legislativo pode ser tido como lei superior à Constituição.
Uma lei só é válida se a sua elaboração obedeceu aos preceitos constitucionais, que regulam o processo legislativo. Ela só é válida se, em seu mérito, suas disposições não se opõem ao pensa­mento da Constituição.
(...)
Observamos que a Constituição também é uma lei. Mas é a Lei Magna. O que, antes de tudo, a distingue nitidamente das outras leis é que sua elaboração e seu mérito não se submetem a disposições de nenhuma lei superior a ela. Aliás, não podemos admitir como legítima lei nenhuma que lhe seja superior. Entretanto, sendo lei, a Constituição há de ter, também, sua fonte legítima.
Afirmamos que a fonte legítima da Constituição é o Povo.

4. O Poder
Constituinte
Costuma-se dizer que a Constituição é obra do Poder. Sim, a Constituição é obra do Poder Constituinte. Mas o que se há de acrescentar, imediatamente, é que o Poder Constituinte pertence ao Povo, e ao Povo somente.
(...)
Em consequência, sustentamos que somente o Povo, por meio de seus Representantes, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte, ou por meio de uma Revolução vitoriosa, tem competência para elaborar a Constituição; que somente o Povo tem compe­tência para substituir a Constituição vigente por outra, nos casos em que isto se faz necessário.
Sustentamos, igualmente, que só o Povo, por meio de seus Representantes no Parlamento Nacional, tem competência para emendar a Constituição.
(...)
Declaramos ilegítima a Constituição outorgada por autoridade que não seja a Assembleia Nacional Constituinte, com a única exceção daquela que é imediatamente imposta por meio de uma Revolução vitoriosa, realizada com a direta participação do Povo.
Declaramos ilegítimas as emendas na Constituição que não forem feitas pelo Parlamento, com obediência, no encami­nhamento, na sua votação e promulgação, a todas as formalidades do rito, que a própria Carta Magna prefixa, em disposições expressas.
(...)
Se, ao Poder Executivo fosse facultado reformar a Constituição, ou submetê-la a uma legislação discricionária, a Constituição perderia, precisamente, seu caráter constitucional e passaria a ser um farrapo de papel.
A um farrapo de papel se reduziria o documento solene, em que a Nação delimita a competência dos órgãos do Governo, para resguardar, zelosamente, de intromissões cerceadoras dos poderes públicos, o campo de atuação da liberdade humana.

5. O Estado de Direito
e o Estado de Fato
Proclamamos que o Estado legítimo é o Estado de Direito, e que o Estado de Direito é o Estado Constitucional.
O Estado de Direito é o Estado que se submete ao princípio de que Governos e governantes devem obediência à ­Constituição.
(...)
O Estado de Direito se caracteriza por três notas essenciais, a saber: por ser obediente ao Direito; por ser guardião dos Direitos; e por ser aberto para as conquistas da cultura jurídica.
É obediente ao Direito, porque suas funções são as que a Constituição lhe atribui, e porque, ao exercê-las, o Governo não ultrapassa os limites de sua competência.
É guardião dos Direitos, porque o Estado de Direito é o Estado-Meio, organizado para servir o ser humano, ou seja, para assegurar o exercício das liberdades e dos direitos subjetivos das ­pessoas.
E é aberto para as conquistas da cultura jurídica, porque o Estado de Direito é uma democracia, caracterizado pelo regime de representação popular nos órgãos legislativos e, portanto, é um Estado sensível às necessidades de incorporar à legislação as normas tendentes a realizar o ideal de uma Justiça cada vez mais perfeita.
(...)
Sustentamos que os Estados de Fato, ou Estados de Exceção, são sistemas subversivos, inimigos da ordem legítima, promotores da violência contra Direitos Subjetivos, porque são Estados contrários ao Estado Constitucional, que é o Estado de Direito, o Estado da Ordem Jurídica.
(...)
Não nos deixaremos seduzir pelo canto das sereias de ­quaisquer Estados de Fato, que apregoam a necessidade de Segurança e Desenvolvimento, com o objetivo de conferir legitimidade a seus atos de Força, violadores frequentes da Ordem Constitucional.
Afirmamos que o binômio Segurança e Desenvolvimento não tem o condão de transformar uma Ditadura numa Democracia, um Estado de Fato num Estado de Direito.
Declaramos falsa a vulgar afirmação de que o Estado de Direi­to e a Democracia são “a sobremesa do desenvolvimento econômico”. O que temos verificado, com frequência, é que desenvolvimentos econômicos se fazem nas mais hediondas ditaduras.
(...)
Em meio da treva cultural dos Estados de Fato, a chama acesa da consciência jurídica não cessa de reconhecer que não existem, para Estado nenhum, ideais mais altos do que os da Liberdade e da Justiça.

6. A Sociedade
Civil e o Governo
O que dá sentido ao desenvolvimento nacional, o que confere legitimidade às reformas sociais, o que dá autenticidade às renovações do Direito, são as livres manifestações do Povo, em seus órgãos de classe, nos diversos ambientes da vida.
(...)
Sustentamos que uma Nação desenvolvida é uma Nação que pode manifestar e fazer sentir a sua vontade. É uma Nação com organização popular, com sindicatos autônomos, com centros de debate, com partidos autênticos, com veículos de livre informação. É uma Nação em que o Povo escolhe seus dirigentes, e tem meios de introduzir sua vontade nas deliberações governamentais. É uma Nação em que se acham abertos os amplos e francos canais de comunicação entre a Sociedade Civil e o Governo.
(...)
Chamamos de Ditadura o regime em que o Governo está separado da Sociedade Civil. Ditadura é o regime em que a ­Sociedade Civil não elege seus Governantes e não participa do Governo. Ditadura é o regime em que o Governo governa sem o Povo. Ditadura é o regime em que o Poder não vem do Povo. Ditadura é o regime que castiga seus adversários e proíbe a contes­tação das razões em que ela se procura fundar.
Ditadura é o regime que governa para nós, mas sem nós.
Como cultores da Ciência do Direito e do Estado, nós nos recusamos, de uma vez por todas, a aceitar a falsificação dos conceitos. Para nós a Ditadura se chama Ditadura, e a Democracia se chama Democracia.
Os governantes que dão o nome de Democracia à Ditadura nunca nos enganaram e não nos enganarão. Nós saberemos que eles estarão atirando, sobre os ombros do povo, um manto de irrisão.

7. Os Valores Soberanos do Homem, Dentro do
Estado de Direito
Neste preciso momento histórico, reassume extraordinária importância a verificação de um fato cósmico. Até o advento do Homem no Universo, a evolução era simples mudança na organização física dos seres. Com o surgimento do Homem, a evolução passou a ser, também, um movimento da consciência.
(...)
Sustentamos que um Estado será tanto mais evoluído quanto mais a ordem reinante consagre e garanta o direito dos cidadãos de serem regidos por uma Constituição soberana, elaborada livre­mente pelos Representantes do Povo, numa Assembleia Nacional Constituinte; o direito de não ver ninguém jamais submetido a disposições de atos legislativos do Poder Executivo, contrários aos preceitos e ao espírito dessa Constituição; o direito de ter um Governo em que o Poder Legislativo e o Poder Judiciário ­possam cumprir sua missão com independência, sem medo de represálias e castigos do Poder Executivo; o direito de ter um Poder ­Executivo limitado pelas normas da Constituição soberana, elaborada pela Assembléia Nacional Constituinte; o direito de escolher, em ­pleitos democráticos, seus governantes e legisladores; o direito de ser eleito governante ou legislador, e o de ocupar cargos na administração pública; o direito de se fazer ouvir pelos Poderes Públicos, e de introduzir seu pensamento nas decisões do Governo; o direito à liberdade justa, que é o direito de fazer ou de não fazer o que a lei não proíbe; o direito à igualdade perante a lei que é o direito de cada um de receber o que a cada um pertence; o direito à intimidade e à inviolabilidade do domicílio; o direito à propriedade e o de conservá-la; o direito de organizar livremente sindicatos de trabalhadores, para que estes possam lutar em defesa de seus interesses; o direito à presunção de inocência, dos que não forem declarados culpados, em processo regular; o direito de imediata e ampla defesa dos que forem acusados de ter praticado ato ilícito; o direito de não ser preso, fora dos casos previstos em lei; o direito de não ser mantido preso, em regime de inco­municabilidade, fora dos casos da lei; o direito de não ser conde­nado a nenhuma pena que a lei não haja cominado antes do delito; o direito de nunca ser submetido à tortura, nem a tratamento desumano ou degradante; o direito de pedir a manifestação do Poder Judiciário, sempre que houver interesse legítimo de alguém; o direito irrestrito de impetrar habeas corpus; o direito de ter Juízes e Tribunais independentes, com prerrogativas que os ­tornem refratários a injunções de qualquer ordem; o direito de ter uma imprensa livre; o direito de fruir das obras de arte e cultura, sem cortes ou restrições; o direito de exprimir o pensamento, sem qualquer censura, ressalvadas as penas legalmente previstas, para os crimes de calúnia, difamação e injúria; o direito de resposta; o direito de reunião e associação.
Tais direitos são valores soberanos. São ideais que inspiram as ordenações jurídicas das nações verdadeiramente civilizadas. São princípios informadores do Estado de Direito.
Fiquemos apenas com o essencial.
O que queremos é ordem. Somos contrários a qualquer tipo de subversão. Mas a ordem que queremos é a ordem do Estado de Direito.
A consciência jurídica do Brasil quer uma cousa só: o Estado de Direito, já.
Goffredo Telles Júnior
São Paulo - 08/08/1977

WhatsApp Image 2022 08 08 at 19.22.26Professora Maria Paula - Foto: Silvana Sá/Arquivo AdUFRJA historiadora e professora titular da UFRJ, Maria Paula Nascimento Araújo, se dedica a pesquisar o que se passou no Brasil nos tempos da ditadura militar. Mas, quando se trata de 1977, a docente não é apenas uma pesquisadora. Ela integra a História. Em 1977, Maria Paula fazia movimento estudantil e era presidente do Centro Acadêmico da PUC, um dos endereços de maior combatividade e resistência ao regime na época.
Na entrevista abaixo, ela analisa a Carta de 1977 e a compara com a missiva de hoje, que já conquistou mais de 800 mil assinaturas contra os desmandos autoritários do presidente da República.

JORNAL DA ADUFRJ - Qual o contexto político em que nasce a Carta de 1977?
Maria Paula
- Do lado da ditadura, há uma crise severa. O Pacote de Abril fecha ainda mais o país e coloca em xeque a promessa de Geisel de fazer uma distensão lenta e gradual, uma redemocratização por cima, pelas elites, pelo poder. Do lado da resistência ao regime, há um duplo movimento. Primeiro, um reconhecimento de que a luta armada fracassara e que produzira muitas mortes. E. segundo, era preciso abrir um diálogo com setores democráticos, não necessariamente de esquerda, para retomar a normalidade democrática no país.

O fato de a Carta ter sido lida por um professor de Direito, defensor do Estado de Direito, sinalizava o nascimento de uma frente?
A carta não é inaugural. Ela resulta também de um processo histórico que começa perto de 1973, com a profunda crise da luta armada. Aos poucos, quase todos os setores de crítica ao regime sentem a necessidade de conversar. Vai se formando uma frente. Essa articulação incluía diálogo entre grupos de esquerda, partidos de oposição como o MDB, e setores da sociedade civil como OAB, ABI e UNE. Os estudantes, aliás, tiveram um papel decisivo nesse processo. Tanto em São Paulo, onde nasceu a Carta de 1977, quanto no Rio. Aqui, nessa época na PUC, conseguimos fazer assembleias com cinco mil pessoas.

E qual a diferença para o momento de hoje, quando novamente os defensores da democracia assinam uma nova Carta?
Os militares dos anos 1970 tinham um projeto nacional. Era autoritário, mas era um projeto de construção de país. E do outro lado, pela esquerda, também tinhamos uma perspectiva de destruição da ditadura, mas de construção de um novo país, com a ampliação das liberdades democráticas. Hoje é diferente, O governo não tem um projeto. Seu projeto é a destruição. E nós estamos lutando contra a destruição da democracia. É isso que nos une, a restruturação do tecido democrático, porque, sem esse tecido, sequer nossas diferenças podem existir.

Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo Largo São FranciscoFaculdade de Direito da USP: berço das cartas de 1977 e 2022 - reprodução: internetSempre.
É com esse advérbio de tempo, o mais belo de todos, que se encerra a “Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito”, que será a epígrafe dos atos em defesa da democracia no próximo dia 11 de agosto e que reunia, até o fechamento desta edição, 801.012 assinaturas. Passados 37 anos de nossa redemocratização, após 21 anos de ditadura — de 1964 a 1985 —, nunca foi tão necessário reafirmar esse “sempre”, diante das ameaças golpistas emanadas diariamente do governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro.
Há 45 anos, a “Carta aos Brasileiros”, que inspirou o atual manifesto, também foi ungida sob tempos sombrios. Corria o ano de 1977 e o governo do general Ernesto Geisel, que prometera uma abertura política “lenta, gradual e segura”, baixou o Pacote de Abril, pleno de retrocessos: fechou o Congresso, alterou regras eleitorais e criou a figura do “senador biônico” (leia mais sobre a Carta de 1977 na página 5). Naquele agosto de 1977, a carta lida na Faculdade de Direito da USP terminava com outro advérbio de tempo, então tão necessário quanto premente, em defesa do Estado Democrático de Direito. Já!
A Carta de 1977 ajudou o país a retomar o caminho da democracia, hoje tão agredida. O capitão que vê seu sonho de reeleição cada vez mais distante flerta desde o início de seu desgoverno com o autoritarismo. Faz ataques constantes ao Supremo Tribunal Federal e ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Levanta suspeitas sem provas contra as urnas eletrônicas e diz que não aceitará o resultado das eleições — fez isso, inclusive, em uma tão patética quanto acintosa exposição a embaixadores em Brasília, em 18 de julho.
A Carta de 2022 pode ser interpretada como um grito em defesa da preservação do arcabouço institucional que sustenta, desde 1985, a democracia brasileira. Ela defende o sistema eleitoral: “Nossas eleições com o processo eletrônico de apuração têm servido de exemplo no mundo. Tivemos várias alternâncias de poder com respeito aos resultados das urnas e transição republicana de governo. As urnas eletrônicas revelaram-se seguras e confiáveis, assim como a Justiça Eleitoral”.
Sem citar nomes, a carta refuta os ataques bolsonaristas à democracia e os compara ao que ocorreu após a eleição de Joe Biden, nos Estados Unidos, na invasão ao Capitólio insuflada pelo derrotado nas urnas, o ex-presidente Donald Trump, em janeiro de 2021. “Ataques infundados e desacompanhados de provas questionam a lisura do processo eleitoral e o Estado Democrático de Direito tão duramente conquistado pela sociedade brasileira. São intoleráveis as ameaças aos demais poderes e setores da sociedade civil e a incitação à violência e à ruptura da ordem constitucional. Assistimos recentemente a desvarios autoritários que puseram em risco a secular democracia norte-americana. Lá as tentativas de desestabilizar a democracia e a confiança do povo na lisura das eleições não tiveram êxito, aqui também não terão”.
O primeiro esboço da carta nasceu a partir da iniciativa de um grupo de ex-alunos da Faculdade de Direito da USP, com a intenção de homenagear os 45 anos da “Carta aos Brasileiros” de 1977. O esboço tomou como base a defesa do sistema eleitoral e o respeito ao resultado das urnas, sem viés partidário.
O grupo levou o esboço da carta ao diretor da Faculdade de Direito da USP, Celso Campilongo. Ele, que viu com seus olhos de estudante de Direito da USP a leitura da Carta de 1977, abraçou a ideia e se prontificou a hospedar o documento no site da faculdade. O curioso é que Campilongo ponderou ao grupo que “seria bom ter umas 200, 300 assinaturas já na largada, para fazer volume”. Foi de uma humildade premonitória. Quando foi postada no site, em 26 de julho, a carta já tinha mais de 3 mil adesões.
Em menos de 24 horas de exposição, o texto já acumulava 100 mil assinaturas, reunindo desde banqueiros e empresários a artistas, juristas, professores, profissionais de diversas áreas, aposentados e estudantes. Estão lá ex-ministros do STF, como Celso de Mello, Joaquim Barbosa e Sepúlveda Pertence; banqueiros como Candido Bracher, Pedro Moreira Salles e Roberto Setúbal; empresários como Horácio Lafer Piva (Klabin), Walter Schalka (Suzano) e Pedro Passos (Natura); artistas como Chico Buarque, Fernanda Montenegro e Dira Paes.
Na mesma medida em que angariava adesões, o documento suscitava a ira de Bolsonaro. Em 28 de julho, dois dias após a divulgação do manifesto, o presidente sentiu o golpe e postou em seu perfil no Twitter: “Carta de manifesto em favor da democracia. Por meio desta, manifesto que sou a favor da democracia. Assinado: Jair Messias Bolsonaro, presidente da República Federativa do Brasil”. Com a crescente adesão da sociedade civil à carta e a mobilização de várias entidades para os atos de 11 de agosto, o capitão, como é de seu feitio, foi perdendo a linha.
Incomodado com outro manifesto, este reunindo entidades empresariais e da sociedade civil, organizado pelo presidente da Fiesp, Josué Gomes da Silva, Bolsonaro criticou a iniciativa em uma live, em 28 de julho. “Eu não entendi essa nota, que foi patrocinada pelo nosso querido filho do vice do ex-presidente Lula, seu Josué Gomes da Silva. É uma nota política em ano eleitoral”, disse.
Na última terça-feira (2), Bolsonaro voltou a atacar ministros do STF e do TSE. Na véspera, na volta dos trabalhos do STF após o recesso de julho, o presidente da Corte, Luiz Fux, reafirmara a confiança no sistema eleitoral brasileiro, qualificando-o como “um dos mais eficientes, confiáveis e modernos de todo o mundo”, e o capitão perdeu as estribeiras em entrevista à Rádio Guaíba. “Com todo respeito ao Fux, de vez em quando nós trocamos algumas palavras aqui, ele é chefe de Poder. Mas, no mínimo, para ser educado, (foi) equivocado. Ou fake news (a declaração). Que deveria estar o Fux respondendo processo no inquérito do Alexandre de Moraes, se fosse um inquérito sério. E não essa mentira, essa enganação, que são esses inquéritos do Alexandre de Moraes”.
Na mesma entrevista, Bolsonaro atacou o ministro Luís Roberto Barroso por ter se posicionado contra a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que instituía o voto impresso: “Interferência direta do Barroso dentro do Congresso Nacional para não aprovar o voto impresso. Interferência política, isso é crime previsto na Constituição. O Barroso é um criminoso”, disparou. Por fim, ele atacou os que assinam o manifesto da USP: “Esse pessoal que assina esse manifesto (é) cara de pau, sem caráter”.
O desespero com a possibilidade de perder a eleição e, mais que isso, de ser preso, como já externou a colaboradores, tem atormentado o capitão. Ele tem convocado seus apoiadores para as comemorações do Sete de Setembro, data em que, no ano passado, elevou ao mais alto grau as suas ameaças golpistas.
Nesse contexto, a nova carta aos brasileiros e os atos de 11 de agosto são como antídotos. Em seu trecho final, diz a carta: “No Brasil atual não há mais espaço para retrocessos autoritários. Ditadura e tortura pertencem ao passado. A solução dos imensos desafios da sociedade brasileira passa necessariamente pelo respeito ao resultado das eleições. Em vigília cívica contra as tentativas de rupturas, bradamos de forma uníssona: Estado Democrático de Direito Sempre!”.
Não custa repetir o mais belo de todos os advérbios de tempo.
Sempre.

Carta às brasileiras e aos brasileiros em
defesa do Estado Democrático de Direito

Em agosto de 1977, em meio às comemorações do sesquicentenário de fundação dos cursos jurídicos no País, o professor Goffredo da Silva Telles Junior, mestre de todos nós, no território livre do Largo de São Francisco, leu a Carta aos Brasileiros, na qual denunciava a ilegitimidade do então governo militar e o estado de exceção em que vivíamos. Conclamava, também, o restabelecimento do Estado de Direito e a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte.

A semente plantada rendeu frutos. O Brasil superou a ditadura militar. A Assembleia Nacional Constituinte resgatou a legitimidade de nossas instituições, restabelecendo o Estado Democrático de Direito com a prevalência do respeito aos direitos fundamentais.

Temos os Poderes da República, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, todos independentes, autônomos e com o compromisso de respeitar e zelar pela observância do pacto maior, a Constituição Federal.

Sob o manto da Constituição Federal de 1988, prestes a completar seu 34º aniversário, passamos por eleições livres e periódicas, nas quais o debate político sobre os projetos para o país sempre foi democrático, cabendo a decisão final à soberania popular.

A lição de Goffredo está estampada em nossa Constituição: “ Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição ”.

Nossas eleições, com o processo eletrônico de apuração, têm servido de exemplo no mundo. Tivemos várias alternâncias de poder com respeito aos resultados das urnas e transição republicana de governo. As urnas eletrônicas revelaram-se seguras e confiáveis, assim como a Justiça Eleitoral.

Nossa democracia cresceu e amadureceu, mas muito ainda há de ser feito. Vivemos em um país de profundas desigualdades sociais, com carências em serviços públicos essenciais, como saúde, educação, habitação e segurança pública. Temos muito a caminhar no desenvolvimento das nossas potencialidades econômicas de forma sustentável. O Estado apresenta-se ineficiente diante dos seus inúmeros desafios. Pleitos por maior respeito e igualdade de condições em matéria de raça, gênero e orientação sexual ainda estão longe de serem atendidos com a devida plenitude.

Nos próximos dias, em meio a estes desafios, teremos o início da campanha eleitoral para a renovação dos mandatos dos legislativos e executivos estaduais e federais. Neste momento, deveríamos ter o ápice da democracia com a disputa entre os vários projetos políticos visando a convencer o eleitorado da melhor proposta para os rumos do país nos próximos anos.

Ao invés de uma festa cívica, estamos passando por momento de imenso perigo para a normalidade democrática, risco às instituições da República e insinuações de desacato ao resultado das eleições.

Ataques infundados e desacompanhados de provas questionam a lisura do processo eleitoral e o Estado Democrático de Direito tão duramente conquistado pela sociedade brasileira. São intoleráveis as ameaças aos demais poderes e setores da sociedade civil e a incitação à violência e à ruptura da ordem constitucional.

Assistimos, recentemente, a desvarios autoritários que puseram em risco a secular democracia norte-americana. Lá, as tentativas de desestabilizar a democracia e a confiança do povo na lisura das eleições não tiveram êxito, aqui também não terão.

Nossa consciência cívica é muito maior do que imaginam os adversários da democracia. Sabemos deixar de lado divergências menores em prol de algo muito maior, a defesa da ordem democrática.

Imbuídos do espírito cívico que lastreou a Carta aos Brasileiros de 1977 e reunidos no mesmo território livre do Largo de São Francisco, independentemente da preferência eleitoral ou partidária de cada um, clamamos às brasileiras e aos brasileiros a ficarem alertas na defesa da democracia e do respeito ao resultado das eleições.

No Brasil atual não há mais espaço para retrocessos autoritários. Ditadura e tortura pertencem ao passado. A solução dos imensos desafios da sociedade brasileira passa, necessariamente, pelo respeito ao resultado das eleições.

Em vigília cívica contra as tentativas de rupturas, bradamos de forma uníssona:
Estado Democrático de Direito Sempre!

 

WhatsApp Image 2022 08 08 at 19.22.26 1Professor Goffredo Telles Junior - Foto: FOLHAPRESS/FOLHAPRESS“Nos recusamos, de uma vez por todas, a aceitar a falsificação de conceitos. Para nós a ditadura se chama ditadura, e a democracia se chama democracia. Os governantes que dão o nome de democracia à ditadura nunca nos enganaram e não nos enganarão. Nós saberemos que eles estarão atirando, sobre os ombros do povo, um manto de irrisão”.
O parágrafo acima é de uma atualidade acachapante, mas data de 1977 e integra a Carta aos Brasileiros. Trata-se de um documento histórico que marcou o processo de redemocratização e ajudou a fragilizar a ditadura militar, àquela altura comandada pelo general Ernesto Geisel.
Lida em 8 de agosto de 1977 no pátio da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, a carta nasceu da indignação de juristas com os rumos da ditadura que, quatro meses antes, baixava o chamado Pacote de Abril, fechava o Congresso e restringia ainda mais as parcas liberdades civis.
Destemido, de paletó, camisa branca e abotoaduras, o orador chamou a tortura de tortura e defendeu a democracia. Era o professor Goffredo da Silva Telles Junior. Tinha 62 anos e, com a voz pausada e solene, num pequeno palco improvisado, saiu das Arcadas uspianas e entrou para História.
A Carta de 4.096 palavras provocou a ira dos militares. Documentos revelam que a repressão chegou a monitorar o docente depois do discurso. Ele não era um revolucionário. Muito pelo contrário. Chegou a apoiar o golpe de 64, mas aos poucos foi se decepcionando com a sanha dos militares em continuar no poder.
Quando veio o Pacote de Abril, restringindo a liberdade de expressão e criando os senadores biônicos, Goffredo e os colegas aproveitaram a efeméride do aniversário de 150 anos dos cursos jurídicos no Brasil para criticar o regime e acordar o país para a importância da retomada das liberdades democráticas.
Goffredo era muito respeitado. Idolatrado pelos estudantes — mesmo por aqueles que reprovava —, desfrutava da amizade de Villa-Lobos, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Lasar Segall e Tarsila do Amaral. Dava aulas de Filosofia do Direito e Teoria Geral do Estado.
“O Direito não nasce das cabeças dos deputados, das cabeças dos senadores. O Direito é como o amor, nasce do coração dos homens”, dizia aos alunos que, muitas vezes, aplaudiam o mestre no final das aulas, no famoso Largo de São Francisco, no Centro de São Paulo.

WhatsApp Image 2022 07 30 at 15.07.58Isadora Camargo

“Historicamente, as universidades pouco ou nada se interessaram pela educação nas escolas”, disse o professor António Nóvoa, ex-reitor da Universidade de Lisboa, em conferência realizada no Colégio Brasileiro de Altos Estudos (CBAE) da UFRJ, na quarta-feira (27), sobre a formação de professores. O debate marcou a inauguração da Cátedra Anísio Teixeira do CBAE.
Nóvoa criticou o distanciamento das universidades públicas, em todo o mundo. “Nas últimas décadas, quando o produtivismo acadêmico tomou conta, nos voltamos por inteiro, quase obsessivamente, para a publicação científica”, disse. “Enquanto isso, reclamamos que os alunos não sabem nada, vieram mal preparados, não estão prontos para os nossos cursos. Um lamento inconsequente que não provoca qualquer mudança na relação entre a universidade e a educação básica”, completou.
Nóvoa, que é Doutor Honoris Causa da UFRJ, destacou a importância da nova cátedra para firmar o compromisso da universidade em outra direção. “Espero que, a partir dessa cátedra, seja possível iniciar, ou melhor, continuar um movimento de transformação na formação de professores no Brasil. As universidades públicas precisam assumir uma responsabilidade muito maior, e espero que a UFRJ, junto com outras universidades de referência, possa avançar esse movimento nacionalmente”, afirmou Nóvoa, que se tornou titular da cátedra.

ALIANÇAS ESTRATÉGICAS
Aprovada em edital no início deste ano, a Cátedra Anísio Teixeira contou com a assinatura de 15 programas de pós-graduação em educação e ensino da UFRJ. Anísio Spínola Teixeira (1900-1971) formou-se em Direito na UFRJ e fundou a Universidade do Distrito Federal (atual Uerj). Seu nome foi escolhido por sua atuação política e como educador na concepção de uma educação básica integral, pública e obrigatória no Brasil.
A proposta é, a partir da cátedra, promover um conjunto de ações, como seminários e eventos, e atuar na coordenação das redes de pesquisa, com a abertura de novas disciplinas. As iniciativas serão pensadas em conjunto com os programas de pós-graduação e com professores da rede pública, e ocorrerão ao longo deste segundo semestre de 2022.
Outro objetivo é articular os projetos da universidade com as redes nacionais e internacionais envolvidas na questão. “Essa cátedra tem uma importância muito grande, por ser capaz de realizar alianças estratégicas com outros programas, outras universidades que pensam a formação docente. Isso amplia o alcance de um programa tão relevante, que pode reverberar mudanças fundamentais para o ensino no futuro” saudou a professora Ana Célia Castro, docente do Instituto de Economia e diretora do CBAE.

EDUCAÇÃO DEMOCRÁTICA
A inauguração da cátedra também marcou o início de uma nova etapa para o Complexo de Formação de Professores (CFP), política institucional iniciada na UFRJ em 2016. No programa, a Faculdade de Educação e o Colégio de Aplicação trabalham de forma integrada, em articulação com escolas parceiras da rede pública, e atuam na formação inicial e continuada de docentes da educação básica. A nova cadeira assume o compromisso de abraçar as demandas do CFP.
“Afirmar a potência do CFP é afirmar a importância do papel da universidade pública na formação docente, o lugar da escola pública como espaço de educação dos futuros professores, a docência como profissão com saberes específicos, e a licenciatura como curso de identidade própria. Afirmar, ainda, a qualidade da educação laica e democrática, tornada pública para as novas gerações”, concluiu a professora Carmen Teresa Gabriel, da Faculdade de Educação e coordenadora do CFP.

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