Por Renan Fernandes
Fernando Pessoa versou sobre saudades em uma quadrinha que dizia “Saudades, só portugueses / Conseguem senti-las bem. / Porque têm essa palavra / Para dizer que as têm”. Nas últimas semanas, a comunidade acadêmica da Faculdade de Letras mostrou que também possui, preza e pratica a palavra exaltada pelo poeta. Professores, alunos e técnicos choraram a perda de três docentes: Leticia Rebollo Couto, de Letras Espanholas, e Clécio Quesado e Luci Ruas de Literatura Portuguesa. Ao Jornal da AdUFRJ, amigos, familiares e colegas de trabalho comentaram o legado deixado pelos colegas que se encantaram em poesia e deixaram saudades.
Luci Ruas 1948-2024
A professora Luci Ruas partiu deixando um legado de valorização da sala de aula. Docente afetuosa e acolhedora, era conhecida por sua relação próxima com alunos e orientandos. “Luci é um exemplo de professora. Se preocupava mais com a construção do coletivo, do espaço da sala de aula e da universidade, do que com a própria carreira”, recorda a professora Monica Fagundes, amiga, ex-aluna e colega de departamento.
Monica lembra com detalhes do primeiro encontro com Luci. Nos corredores da Faculdade de Letras, entre uma aula e outra, a professora abordou a então jovem estudante no início da pós-graduação e uma colega. “Vocês não me conhecem, mas eu conheço vocês. Sei que são ótimas alunas e pesquisadoras”, disse Ruas. “Ficamos assustadas, mas ela se apresentou, disse que outros professores comentaram com ela e foi muito gentil, como sempre era”, lembrou Fagundes.
A paixão pelo magistério acompanhou Luci durante toda a vida, desde o início no ensino básico, como professora do Instituto de Educação, até a transição para o ensino superior. A professora Cleonice Berardinelli, orientadora na pós-graduação, foi a responsável por convidar Ruas para dar aulas de Literatura Portuguesa na UFRJ. “Luci era uma pesquisadora de muito destaque, mas era, sobretudo, uma professora. Amava estar em sala de aula”, disse Fagundes.
No setor de Literatura Portuguesa, Luci dava aula de todos os cursos, mas não escondia sua predileção pela narrativa. No mestrado e no doutorado pesquisou a obra do romancista e ensaísta Vergílio Ferreira. A pesquisa acompanhou toda sua trajetória acadêmica até a conferência para chegar ao degrau mais alto da carreira como professora titular, em 2022. Escolheu o romance “Na tua face”, um de seus preferidos, para a apresentação.
A docente continuava ativa na pesquisa e presente na universidade. Recentemente, Luci deu os primeiros passos na pesquisa sobre a poética de Irene Lisboa. Na última troca de mensagens com a professora Monica Fagundes, brincou: “E lá vou eu pela poesia, quem diria”.
“O repertório da Luci era vastíssimo. Ultimamente, vinha trabalhando com um autor do século XXI chamado Afonso Cruz. Como gostava muito de dar aula, estava sempre em contato com a obra de outros autores e isso se refletia na pesquisa dela”, contou a professora.
Ruas foi coordenadora da Cátedra Jorge de Sena para estudos literários luso-afro-brasileiros e fundou na Faculdade de Letras, ao lado das professoras Glória Pondé e Francisca Nóbrega, o curso de especialização em Literatura Infantil e Juvenil nos anos 1980. Foi a primeira pós-graduação lato sensu na área no Brasil a olhar para a literatura infantil além do ensino, estudando e desenvolvendo teoria e crítica. Mesmo após a aposentadoria, a docente continuou como coordenadora do curso e ministrando uma disciplina.
As trajetórias de Ruas e da técnica administrativa aposentada, Georgina Martins, se cruzaram algumas vezes na UFRJ. Georgina foi aluna de Luci na graduação, em 1980, e no curso de especialização, em 1991. Depois, trabalharam juntas durante muitos anos. “Ela era uma professora muito dedicada e generosa, que acreditava e defendia o ensino público com unhas e dentes”. Martins exaltou o legado da professora para a UFRJ e para o campo das Letras. “Além de toda a contribuição para a literatura infantil e para a literatura portuguesa, fica o exemplo de como ela se comportava em sala de aula”, contou. “O carinho com os alunos, o entusiasmo de transformar cada aula em uma aula inspiradora. Esse é o maior legado que um professor pode deixar”.
Leticia Rebollo Couto 1968-2024
Uma virtude da professora Leticia Rebollo Couto era rapidamente notada por todos os estudantes e colegas de trabalho que atravessavam seu caminho na UFRJ: a habilidade em conectar pessoas.
Leticia foi uma semeadora de ideias. Viajava com frequência para seminários e congressos por todo o mundo e retornava repleta de novidades para compartilhar e fomentar a pesquisa de alunos e orientandos. Quando gostava de um livro, comprava vários exemplares para presentear e difundir o conhecimento.
A professora Sonia Reis, diretora da Faculdade de Letras, recordou o caráter incentivador de Leticia. “Ela não deixava ninguém desistir. Pesquisava bibliografia, comprava livros para ajudar. Era fundamental para ajudar os estudantes a lidar com as angústias, com o medo”. A docente não esquece a frase que Leticia repetia como apoio aos alunos. “Cuidado com o medo, porque o medo consome os seus ideais”, lembra.
A escolha da linha de pesquisa em fonética estava alinhada com seus ideais de inclusão. “Leticia sempre foi engajada na proteção das minorias, na luta pela equidade racial e entre os gêneros. Dentro da academia, ela sempre esteve à frente dessas lutas e foi pioneira no seu campo de pesquisa”, disse a professora Reis.
A docente investigava a política linguística e os impactos no ensino do espanhol como língua estrangeira. “Ela defendia a variação dentro do espanhol, que não deve existir um padrão de referência. Muitas vezes, a língua falada na Espanha é usada como referência e todas as outras variantes são observadas a partir do que falta para ser igual. Ela era absolutamente contrária a isso”, afirmou o professor francês Albert Rilliard, marido de Leticia.
“A realidade não é um destino, é um desafio”. O ensinamento de Eduardo Galeano era um norte para as ações da professora. Durante a crise recente de falta de pagamento aos trabalhadores terceirizados da unidade, Leticia brigou pela defesa dos direitos trabalhistas e participou de campanhas de arrecadação para minimizar as dificuldades. Estava nas trincheiras também por melhores condições para os alunos mais vulneráveis, chegando a oferecer café da manhã para alguns de seus estudantes.
A professora também trabalhou em pré-vestibulares sociais e com a integração de imigrantes de língua espanhola. “Ela não apenas se envolvia, mas levava também os alunos da faculdade para as escolas públicas e para o trabalho com os imigrantes como forma de desenvolver uma consciência política e social”, revelou o professor Miguel Mateo.
Natural de Barcelona, Mateo estava a caminho da Universidade de Brasília até ser acolhido por Leticia, que o convenceu a fazer o concurso para a UFRJ. “A chegada num novo país para um imigrante é sempre muito difícil. Albert e Leticia abriram a porta de casa para mim e me acolheram nesse momento. Nunca me esquecerei disso”.
Leticia foi coordenadora da pós-graduação em Letras Neolatinas e trabalhou para elevar o programa ao conceito seis da Capes, que atesta a excelência internacional. “Ela teve uma dedicação enorme durante a pandemia para conseguir isso. Essa classificação trouxe muito mais bolsas e investimento no programa”, revelou Rilliard.
A professora se desdobrava em várias dentro da Faculdade de Letras. Foi coordenadora da graduação em português/espanhol, atuava junto ao Complexo de Formação de Professores e estava à frente do Núcleo Docente Estruturante, que trata da gestão acadêmica dos cursos de graduação. “Leticia estava sempre presente na faculdade. Entendia profundamente o significado de ser servidora pública. Quando tivemos problemas com a formação de bancas recentemente, foi a primeira pessoa para quem liguei em busca de ajuda”, rememorou a professora Sonia. “É uma pessoa insubstituível”.
Clécio Quesado 1945-2024
Em 1961, o jovem José Clécio Quesado deixou a pequena Missão Velha, no Cariri cearense, em direção ao Rio de Janeiro com uma mala de roupas e um conselho de seu pai. “Vá estudar, virar doutor, mas nunca esqueça de ajudar os outros”, recordou a filha mais velha de Clécio, Mirna Quesado, das histórias que o pai gostava de contar.
O primeiro passo da lição foi cumprido com excelência. O estudante dedicado, aluno de Afrânio Coutinho e Rocha Lima no Colégio Pedro II, ingressou no curso de Letras da Faculdade Nacional de Filosofia, em 1965. Logo após a graduação, em 1969, tornou-se professor da recém fundada Faculdade de Letras da UFRJ. Foi o início de uma trajetória de cinco décadas de dedicação ao ensino e à universidade.
A literatura portuguesa virou objeto de pesquisa no mestrado e no doutorado. Colegas lembram que a professora Cleonice Berardinelli, orientadora de Clécio, o considerava seu herdeiro intelectual quando o assunto era Fernando Pessoa.
Mesmo com o passar dos anos, a segunda parte do conselho de seu pai nunca foi esquecida. Em Xerém, onde encontrou refúgio desde os anos 1980, virou referência e ficou conhecido entre a comunidade como “o professor”. “Ele era uma pessoa que sabia dar valor às pessoas. Talvez sejam milhares de pessoas ajudadas pelo meu pai”, ponderou Mirna.
O professor João Baptista Vargens foi surpreendido pela quantidade de pessoas que foram ao velório homenagear e agradecer. “Um rapaz de Xerém apareceu chamando-o de segundo pai, porque ele socorreu a família depois que o patriarca foi embora. Sou amigo do Clécio há décadas e não sabia de nada disso”, afirmou.
Além das funções acadêmicas, o docente cumpriu um importante papel administrativo na universidade. Foi nomeado pelo professor Edwaldo Cafezeiro como diretor de assuntos administrativos durante o período de mudança da Faculdade de Letras da Avenida Chile para a Cidade Universitária, em 1985. “Foi um trabalho hercúleo durante aquele verão para preparar o prédio novo. Saímos de um prédio pequeno e tivemos que montar a estrutura num prédio muito maior”, lembrou o professor João Baptista. “O trabalho duro do Clécio foi fundamental para viabilizar a mudança”.
A vontade de transformar o mundo fez Clécio Quesado ser engajado no movimento estudantil e na luta sindical durante toda a sua vida. O professor era filiado à AdUFRJ desde a fundação, em 1979.
Levou para outras áreas de atuação o mesmo rigor e seriedade aplicados na vida acadêmica. Foi julgador de enredo do desfile de escolas de samba do Rio de Janeiro e se dedicou com afinco no estudo e na observação dos cortejos antes de distribuir as notas. O caráter inflexível quanto aos critérios de julgamento provocou uma saia justa após uma nota baixa para sua querida Portela. “O pessoal da velha guarda lá em Oswaldo Cruz ficou chateado. Ele explicou, disse que tinha que ser imparcial, mas a turma que é movida pela paixão não entendeu bem”, disse Vargens.
Entre amigos e familiares, o bom humor é um traço do professor que jamais será esquecido. Mirna relembra com carinho o último caso contado pelo pai. Certa vez, como representante estudantil, foi pedir o aval de Manuel Bandeira para a publicação de um livro de poesias dos estudantes. O poeta leu o soneto que Clécio escreveu para a namorada, que seria futura esposa, e julgou “bonito, mas parnasiano demais, meio antigo”. “Rimos muito dessa história. O Bandeira velhinho, já com seus 80 anos, mostrou para o menino de 20 e poucos que ele parecia fora de seu tempo”, contou entre risos .
ARTIGO
Eleonora Ziller Camenietzki
Professora da Faculdade de Letras e ex-presidenta da AdUFRJ
Há 42 anos, em março de 1982, eu assisti às minhas primeiras aulas no curso de Bacharelado em Letras, Português e Literaturas de Língua Portuguesa. Desde lá, acompanho a vida da nossa Faculdade, às vezes um pouco mais distante, às vezes de modo muito próximo e intenso. Dos professores que me formaram, alguns permanecem em atividade, mas hoje são poucos. Ao mesmo tempo, começam a chegar às salas de aulas docentes que vi entrarem na faculdade como estudantes.
Há muita beleza nesse movimento. É preciso aprender a ser parte dele, e percebê-lo com leveza e alguma alegria. Penso que esse é um grande privilégio da nossa profissão, porque convivemos por muito tempo com quem nos formou, e vamos acompanhando aqueles que vão se formando com o nosso trabalho, mesmo que estejam em outras universidades.
O período em que ficamos afastados por conta da pandemia foi uma interrupção dolorosa desse processo, com muitas despedidas que não se realizaram plenamente, abraços que não sentimos, lágrimas que não foram compartilhadas. É uma delicada rede que se rompe, como se a passagem entre as gerações ficasse suspensa, aguardando que um fio tênue voltasse a construir a nossa teia de cantos e de luz.
Retomamos recentemente, ainda que de forma muito modificada, as nossas rotinas e as nossas chegadas e partidas. Mas ainda que seja esperado que tenhamos sempre um adeus a dar numa comunidade tão grande, a surpresa de perder alguém de modo repentino — alguém que está conosco pelos corredores, que encontramos no café —é sempre uma dor a mais.
Assim perdemos a Leticia Rebollo Couto: estava conosco num dia, e no outro já não estava mais. Cada um de nós tinha uma história para contar, algum momento em esteve com ela, alguma comissão, algum debate, e nos damos conta do quanto ela se dedicava, em tantas frentes, por tanto tempo. Nela estava tão presente o que poderíamos chamar de “nossa alma”, da nossa faculdade: alegria, compromisso institucional, rigor acadêmico, atenção política, participação generosa, vontade inabalável de fazer do mundo um lugar melhor para se viver...
E, em poucos dias, quando mal havíamos nos recuperado do susto de sua partida, o tão temido e-mail de pesar da direção da Faculdade nos é enviado com a notícia de que também Luci Ruas havia partido. Foi minha professora, e de tantos e tantas de nós. Estava já aposentada. Esperávamos o dia em que poderíamos retribuir tamanha dedicação com a entrega do título de professora Emérita da UFRJ.Foram décadas de trabalho ininterruptos, com aquela mesma “alma da Letras” que encontrávamos na Leticia. Quando me tornei professora, em 2006, ela estava por perto, com o carinho e a atenção de sempre, sem retórica, mas com a firmeza de seu exemplo, me lembrando que o exercício da docência implica sempre em um alto compromisso ético e político inseparáveis.
E, em poucos dias, perdíamos o Clécio Quesado, às vésperas de completar 80 anos, o que significa que perdemos também uma festa daquelas! Em 2016, ele havia recebido a Medalha Minerva de Honra ao Mérito, homenagem por tantos anos de dedicação intensa à UFRJ. E se insisto em falar nessa nossa “alma da Letras”, é porque no Clécio ela também estava inteira: alegria, compromisso institucional, rigor acadêmico, atenção política, participação generosa, vontade inabalável de fazer do mundo um lugar melhor para se viver...
O ano de 2024 havia começado com uma grande despedida, pois, em fevereiro, perdíamos o nosso amado Edwaldo Cafezeiro. Expressão maior de “nossa alma”, Café se foi aos 93 anos, mas bem que poderia ter ficado conosco até os 106, como CleoniceBerardinelli...
Enfim, um ano de muitas despedidas, e um novembro de luto prolongado.
Nós que aqui estamos ficamos com a responsabilidade de fazer com que essas trajetórias não tenham sido em vão. Que tenhamos a força e a alegria necessárias para que “nossa alma” sobreviva, cresça, ocupe corações e mentes das novas gerações, que se modifique, mas que não se esqueça nunca de onde veio. Vida longa para a Faculdade de Letras da UFRJ, porque precisamos muito dela para enfrentarmos o que se desenha para os próximos anos!