Renan Fernandes
A sala 1 da Estação NET de Botafogo ficou pequena para tanta gente. Mais de 250 pessoas assistiram à sessão que celebrou os 25 anos do filme “Notícias de uma guerra particular”, de João Moreira Salles e Kátia Lund, em evento organizado pela Universidade da Cidadania (UC), na terça-feira (dia 1º). O órgão é vinculado ao Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ.
Era a estreia do “Cine Cidadania”. O público teve a oportunidade de ver — e, no caso de muitos, rever — o documentário que retrata o cotidiano dos traficantes e moradores da favela Santa Marta no fim dos anos 1990. Em seguida, houve um debate com o cineasta João Moreira Salles, o antropólogo e cientista político Luiz Eduardo Soares e Itamar Silva, líder comunitário local e um dos entrevistados do filme.
Salles revelou que não assistia ao filme há pelo menos 15 anos. O diretor e produtor de cinema falou sobre sua relação com o gênero documentário. “Me interesso muito pela natureza do documento. Os arquivos são vivos. Dizem algo no momento e outra coisa diferente, quando o tempo passa”.
Para o cineasta, o filme confirma a premissa. “‘Notícias’ nasceu como um documento contemporâneo do Rio de Janeiro da década de 1990, se tornou um documento histórico, voltou a ser atual e, agora, voltou a ser um documento sobre o passado”.
A relação entre o crime organizado e a política foi o ponto central da mudança. “No filme, o crime não se mistura ao Estado. Hoje, o crime tem seus candidatos, elege seus representantes para criar leis”, concluiu.
Já Luiz Eduardo Soares, coordenador da Cátedra Patrícia Acioli do Colégio Brasileiro de Altos Estudos da UFRJ, brincou ao contrapor a visão de Salles. “Vou discordar do João pela primeira vez na vida. O filme é de uma atualidade absurda. Está presente nele o cansaço com a repetição e o vazio provocados pela brutalidade e a falta de resultados da política de segurança pública”, argumentou.
REAÇÃO
A professora Cristina Motta, do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, saiu do cinema com uma mistura de sentimentos. “Senti uma angústia durante o filme. Era muito jovem naquela época e não tinha a dimensão de tudo isso que acontecia. Os relatos causam dor, mas a conscientização é muito importante e fico feliz de ter visto essa sala cheia”, completou. “Como professora, acredito que a gente pode transformar essa situação. Eventos como esse são fundamentais para levar o debate às novas gerações”.
Diretora da Universidade da Cidadania, a professora Eleonora Ziller comemorou o sucesso do Cine Cidadania. “A ideia é levar cinema, arte, cultura, política e reflexão para diversos territórios do Rio de Janeiro. É um papel fundamental na luta pela preservação da democracia, que se faz na garantia dos espaços públicos, na rua e no cotidiano das pessoas”, afirmou.
ENTREVISTA I JOÃO MOREIRA SALLES
“HÁ A DIMENSÃO DO AFETO, DA ESPERANÇA, DA COLETIVIDADE”
João Moreira Salles é jornalista, diretor, produtor e roteirista de cinema. Fundou com seu irmão e também cineasta Walter Salles a produtora VideoFilmes, inicialmente voltada para a realização de documentários e programas para a televisão.
Jornal da Adufrj - Você disse que não assistia ao filme há 15 ou 20 anos. Mudaria algo no filme hoje?
O “Notícias” deflagrou um processo que passou pelo “Ônibus 174”, “Cidade de Deus” e tantos outros. Acho que esse cinema é politicamente problemático porque transforma esses territórios em territórios unicamente de violência. Se eu fizesse o “Notícias” hoje, incluiria essa dimensão que já estava lá e ficou de fora. Há a dimensão do afeto, da esperança, da coletividade. O Morro Dona Marta não é só o lugar onde coisas ruins acontecem. Mas eu não faria um novo filme porque não sou eu que preciso fazer esse filme. Aliás, esses filmes já existem. Por exemplo, “Marte Um” é um filme excepcional que não poderia ser feito por mim porque tem essa perspectiva de entender essa sociabilidade desse lugar onde eu nunca vivi e não conheço. Isso está ligado às políticas sociais. Assim como temos hoje intelectuais no debate público que vieram da favela, temos criadores e cineastas que passaram pela universidade e agora estão fazendo seus filmes com uma perspectiva que não pode ser a minha.
Como foi a relação com o traficante Marcinho VP?
A Kátia Lund — codiretora do filme — produziu o clipe do Michael Jackson e por isso estabeleceu uma conexão com a comunidade e o Márcio. Ele estava foragido em Belo Horizonte, fui até lá pelo contato dela e ele me autorizou a filmar. Meses depois de terminar as filmagens do filme, eu estava trabalhando em um documentário sobre futebol. O Paulo César Caju estava me dando uma volta, dizia que ia aparecer e não aparecia. Eu estava em Copacabana esperando por ele quando recebi um telefonema do Márcio que me disse: “Vem aqui filmar porque vão me prender”. Pegamos o carro e fomos para lá na hora. Acho que ele me chamou por pensar que ter uma equipe de filmagem o protegeria.
ENTREVISTA I ITAMAR SILVA, LÍDER COMUNITÁRIO
“É PERCEPTÍVEL COMO OS JOVENS VÃO CRESCENDO”
Itamar Silva é líder comunitário no Morro Dona Marta e personagem em “Notícias de uma guerra particular”.
Qual a sensação que você teve ao assistir ao “Notícias” hoje?
Esse filme me tira dos meus poucos momentos de ilusão. Por vezes, acho que tudo está indo muito bem, que a gente avançou, que temos mais jovens na universidade, jovens qualificados, mas o filme mostra que a estrutura da sociedade e a polícia que opera esse braço do Estado que chega na favela não atende nossos anseios. Temos uma polícia que cada vez mais toma partido dependendo da ocasião e da territorialidade. E pior: existe uma tensão maior entre os grupos do tráfico de drogas que disputam o controle do território e que está muito mais violento. A consolidação da milícia na estrutura do Estado nos vinte anos anos corroi por dentro nossa democracia. Hoje, está muito clara a incapacidade da nossa sociedade de enfrentar essa situação. É nítida a incompetência em criar mecanismos de controle sobre essas forças que estão atuando no estado do Rio de Janeiro.
Como está a situação da juventude do Santa Marta em comparação à época do lançamento do filme?
As cotas foram um elemento efetivo de transformação em territórios de pobreza. No Santa Marta, muitos jovens estão concluindo o ensino médio e caminhando em direção à universidade. Tenho um trabalho no Grupo ECO, que atua na comunidade, e é perceptível como os jovens vão crescendo, ganhando perspectivas. Os sonhos se ampliam e a busca por efetivar os desejos e vontades se concretiza. É importante ressaltar isso para não falarmos apenas das dificuldades e deixar o desânimo nos abater.