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Além dos sucessivos recordes de desmatamento na Amazônia ou de liberação de armas de fogo, entre outras destruições, o governo Bolsonaro alcançou mais uma marca difícil de ser batida: em três anos de mandato, liberou mais de 1.500 novos agrotóxicos no Brasil. Dez por semana, em média. Mas pode piorar. Na semana passada, a Câmara aprovou, por 301 votos a favor e 150 contra, o projeto de lei (PL) 6.299/02, que tramita desde 2002 no Congresso e que altera a legislação sobre o tema no Brasil, revogando a Lei dos Agrotóxicos (Lei 7.802/89). Chamado de “Lei do Alimento Mais Seguro” pela bancada ruralista e pelo agronegócio, o projeto foi batizado pelos críticos como “PL do Veneno”, e ainda terá de passar pelo crivo do Senado, onde deverá sofrer forte resistência.

Entre outras mudanças, o PL 6.299 exclui do processo decisório para aprovação de novos agrotóxicos o Ministério da Saúde, o Ibama e a Anvisa, concentrando a decisão no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Os demais órgãos podem emitir pareceres nos processos de aprovação, mas não têm mais poder de veto. “Esses pareceres podem ser ignorados. Fazer análise, mas sem poder de veto? A centralização da aprovação no Mapa, excluindo as áreas de Saúde e Meio Ambiente, mostra que os interesses econômicos devem prevalecer. Com todo o respeito, é colocar a raposa para tomar conta do galinheiro”, compara o toxicologista e epidemiologista ambiental Armando Meyer, doutor em Saúde Pública e professor do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ.

CRÍTICAS SEVERAS
O Brasil encerrou 2021 com 562 agrotóxicos liberados, o maior número da série histórica iniciada em 2000 pelo Mapa. A escalada se acentuou a partir de 2016, nos governos Temer e Bolsonaro. Para o deputado estadual Carlos Minc (PSB-RJ), ex-ministro do Meio Ambiente (MMA), o PL 6.299 abre precedentes para que essa escalada avance ainda mais. “É um retrocesso terrível. O governo Bolsonaro liberou mais de 1.500 agrotóxicos, a maior parte dos quais proibida ou com fortes restrições na Europa e nos Estados Unidos. Estamos importando venenos que são rejeitados lá fora, virando uma lata de lixo químico. Estão desovando aqui o que não podem vender lá”, avalia Minc.

O ex-ministro do Meio Ambiente lembra que, de 2008 a 2010, quando esteve à frente da pasta, conseguiu banir 19 agrotóxicos do mercado nacional, em parceria com o então ministro da Saúde, José Gomes Temporão. A duras penas. “Eram princípios ativos que já tinham sérias restrições ou estavam proibidos na Europa, e para os quais tínhamos substitutivos eficazes e viáveis economicamente. Foi uma guerra. Para cada processo, setores da bancada ruralista ou das empresas químicas entravam com ações contra os analistas do Ibama e do MMA que atestavam que esses princípios ativos eram prejudiciais”, recorda o ex-ministro.

A concentração de poderes nas mãos do Mapa é também criticada pelo doutor em Ciências Biológicas João Paulo Machado Torres, professor do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho (IBCCF/UFRJ): “A mudança é péssima”, diz. Ele chama a atenção para outra alteração prevista no projeto, segundo a qual também fica só por conta do Mapa a reanálise do registro de produtos, e apenas quando solicitada por organização internacional. “É um claro retrocesso”, define o professor. Foi por meio de solicitações de reanálise que a Anvisa proibiu (em parecer conjunto com a Fiocruz), em 2020, o uso do paraquate, agrotóxico associado à doença de Parkinson e até então largamente usado na cultura da soja.

RISCOS À SAÚDE
O PL 6.299 tem outras alterações preocupantes. Ele prevê que a vedação da importação e produção de agrotóxicos se restrinja ao termo generalista de “riscos inaceitáveis”. A legislação atual define a proibição para agrotóxicos que tenham características teratogênicas, carcinogênicas, mutagênicas e causem distúrbios hormonais e danos ao aparelho reprodutor. “O projeto permite que venenos considerados medianamente cancerígenos possam ser licenciados. É o poço mais profundo do obscurantismo e da agressão à saúde. E também introduz quase um autolicenciamento, porque se o produto não for aprovado em tantos dias está previamente aprovado até ordem em contrário”, critica o ex-ministro Carlos Minc.

O professor Armando Meyer estuda há anos os efeitos dos agrotóxicos sobre a saúde humana e faz alertas importantes. “Os seres humanos guardam diversas similaridades biológicas com os organismos que são alvos dessas substâncias, como os insetos. A dose que usamos para matar os insetos não vai nos matar. Mas, gradativamente e continuamente, vai causando alterações nos processos biológicos que nós temos em comum com os insetos. Um exemplo é o sistema nervoso. Todos os inseticidas matam os insetos através da desregulação de uma via bioquímica qualquer do sistema nervoso central deles. Os seres humanos também têm essas vias. Então, essas substâncias atuam sobre o sistema nervoso central dos seres humanos, causando danos muito importantes”.

Meyer fez vários estudos relacionando o uso de agrotóxicos no Brasil e a mortalidade por câncer. “Existe uma relação estatística significativa entre esse uso e o aumento do risco da mortalidade por diversos tipos de câncer. É bastante preocupante do ponto de vista da saúde pública”, adverte.

Já em 2018, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SPBC) ressaltava os malefícios à saúde embutidos no PL 6.299. “A SBPC se manifestou firmemente contra a aprovação desse PL, posição que sustenta até hoje”, recorda o físico Ildeu de Castro Moreira, professor do Instituto de Física da UFRJ e presidente da SBPC à ocasião. Na carta por ele assinada em em 22 de maio de 2018, a SBPC destacou alguns dos malefícios: “Dentre os efeitos sobre a saúde humana associados à exposição aos agrotóxicos, os mais preocupantes são as intoxicações crônicas, caracterizadas por infertilidade, impotência, abortos, malformações, neurotoxicidade, manifestadas através de distúrbios cognitivos e comportamentais, e quadros de neuropatia e desregulação hormonal”.

PRESSÃO NO SENADO
Se o PL do Veneno passou como um trator pela Câmara, o mesmo não se pode prever para o Senado. Além de um maior equilíbrio de forças entre a base do governo e a oposição, a pressão da sociedade civil sobre o Senado deverá ser bem mais forte do que foi na Câmara. O presidente da Casa, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), já afirmou que o trâmite da proposta não terá “nenhuma especificidade”.

Vários senadores de oposição já se manifestaram contra o PL. A senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA) classificou-o como “nocivo ao meio ambiente, à saúde e à economia brasileira”. Em suas redes sociais, o senador Fabiano Contarato (PT-ES) fez duras críticas: “Somos contra essa tragédia do pacote do veneno. Está em risco a saúde de quem consome os produtos intoxicados por esses venenos, e os recursos naturais ficam extremamente contaminados — da terra à água”, postou. Na mesma linha se manifestou a senadora Zenaide Maia (Pros-RN): “Além de envenenar alimentos, poluir o solo e contaminar a água, as multinacionais que enriquecem com a venda de agrotóxicos ainda são premiadas, no Brasil, com generosas isenções de impostos! É isso o que queremos para o nosso país?”, questionou.

A SBPC se prepara para uma ofensiva no Senado, de acordo com Luciana Barbosa, coordenadora do Grupo de Trabalho de Meio Ambiente da entidade e pesquisadora do Departamento de Fitotecnia e Ciências Ambientais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). “A SBPC vai se manifestar com um parecer do grupo de trabalho de Meio Ambiente, levantando os pontos negativos do PL, que são muitos. O risco da liberação desses agrotóxicos é grande. Alguns têm substâncias associadas à incidência de alguns tipos de câncer, ou a distúrbios reprodutivos e hormonais, e vários são proibidos na União Europeia. Essa liberação crescente de agrotóxicos não me parece justificável ou racional”, avalia Luciana.

Uma das primeiras resistências no Senado virá da Comissão de Meio Ambiente, presidida pelo senador Jaques Wagner (PT-BA). Segundo ele, o PL “será um desastre para o Brasil, do ponto de vista ambiental e também econômico”. Wagner é autor do PL 3.668/21, que trata da pesquisa, experimentação e incentivos à produção de bioinsumos para agricultura — oriundos de substâncias de natureza vegetal, animal, microbiana e mineral, e destinados ao uso na produção, no armazenamento ou no beneficiamento de produtos agrícolas e florestais. São uma alternativa ao uso dos agrotóxicos, termo que, aliás, o PL 6.299 propõe alterar para “pesticidas e produtos de controle ambiental e afins”. Pelo tanto de retrocesso que representa, o PL bem poderia defender a manutenção do termo agrotóxico, ou sugerir outro, tão simples quanto adequado: veneno.

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