Renan Fernandes
"Alguém certamente havia caluniado Josef K., pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum”. As primeiras linhas de “O Processo”, de Franz Kafka, apresentam o prelúdio de uma narrativa marcada pelo absurdo. O livro, que completa 100 anos da primeira publicação em 2025, arrasta o leitor para o cenário desconfortável da angústia e incerteza do protagonista, acusado de um crime que não sabe qual.
Apesar de saber quem é seu acusador, o professor Leonardo Fuks, da Escola de Música da UFRJ, se vê em uma situação kafkiana. “Estou sendo processado por cumprir meu dever como servidor público, ao comunicar fortes indícios de irregularidades em um livro de minha área”, revelou o docente.
O músico e engenheiro foi condenado em segunda instância, no Tribunal de Justiça de São Paulo, a pagar mais de R$ 60 mil por danos morais ao professor titular Florivaldo Menezes Filho, da Unesp, em um processo que instituições de acústica consideram conter inúmeras irregularidades. O docente alega já ter desembolsado mais de R$ 65 mil em honorários e gastos judiciais.
A defesa, que teve negado o pedido de mudança de competência da comarca de São Paulo para o Rio de Janeiro, alega inexistência de dano moral frente ao exercício regular de um direito e contesta a falta de apreciação dos pareceres técnicos de oito especialistas nas decisões judiciais. Agora, o docente luta para que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) aceite o seu recurso especial. O processo, de livre acesso na justiça de São Paulo, já conta com mais de mil páginas. As informações desta reportagem foram obtidas diretamente no processo.
O caso teve origem em 2004, quando Fuks foi convidado pela FAPESP a resenhar o livro “A Acústica Musical em Palavras e Sons”, de Florivaldo Menezes, livro financiado pela própria Fundação. Especialista em acústica, o docente identificou similaridades gritantes entre a obra do pesquisador brasileiro e o livro de referência “The Musician’s Guide to Acoustics”, dos autores britânicos Murray Campbell e Clive Greated.
A análise de Fuks identificou o uso de cerca de 80 imagens do livro original na obra de Menezes sem autorizações prévias e sem o devido crédito. Além destas imagens, outras 20 figuras, de dois outros livros clássicos –“Musical Acoustics”, de Donald Hall e “The Physics and Psychophysics of Music, de Juan Roederer – também foram usadas sem comprovadas autorizações.
O professor também apontou cerca de 70 parágrafos ou frases consideradas traduções diretas ou transcrições semelhantes de explicações e exemplos encontrados no livro dos autores britânicos.
O editor-chefe da Revista Pesquisa FAPESP, Neldson Marcolin, comunicou a Fuks que o livro seria retirado do mercado mediante acordo entre a Editora Ateliê e a diretoria científica da FAPESP em decorrência das graves observações feitas na resenha. Também acrescentou que se Florivaldo Menezes fizesse outra edição, corrigida quanto aos aspectos apontados, o professor Fuks seria convidado para fazer nova resenha.
A Editora Ateliê fez um acordo com a Oxford University Press (OUP), editora responsável pelo livro britânico, para o uso de 60 imagens retiradas da obra original, mediante o pagamento de 1.200 libras esterlinas, pois as outras 20 imagens pertenciam a outros autores. E estas autorizações só se aplicavam à primeira edição a ser corrigida, em 2004, conforme a própria OUP informou.
Em 2012 Fuks foi convidado a compor a equipe de assessores científicos da FAPESP, na área de acústica musical, e atuou na função de consultor e parecerista de projetos por 12 anos.
Em 2017, o docente tomou conhecimento da publicação de uma segunda edição do livro, publicada em 2014. Fuks identificou que a nova edição era praticamente idêntica à primeira e encaminhou uma comunicação sigilosa de indícios de fraude e plágio ao Programa de Boas Práticas da FAPESP. A comunicação gerou um parecer interno, anônimo, da Fundação que apontou indícios de fraude.
A denúncia provocou uma sindicância na Unesp contra Menezes, conduzida por três colegas de departamento, que concluiu pela inexistência de fraude e, portanto, pela inocência do músico. A defesa de Fuks contesta o resultado da sindicância que usou diretamente trechos das respostas de Florivaldo no relatório final. Em 2021, Menezes entrou com o processo por danos morais contra o professor Leonardo Fuks.
PARECERES
A familiaridade com a obra de Campbell é também fruto da ligação acadêmica entre Fuks e o físico escocês. O professor escocês foi o membro principal da banca de doutorado do professor da UFRJ no Royal Institute of Technology de Estocolmo, em 1999. O docente da Universidade de Edimburgo foi um dos oito pareceristas que confirmaram indícios de plágio no livro de Menezes.
“Agradeço ao professor por chamar minha atenção em 2004 para um livro didático em português que parecia reproduzir sem reconhecimento partes importantes do livro escrito por mim e meu colega”, diz o parecer do pesquisador anexado ao processo.
O alegado uso de paráfrases por Menezes para discutir temas semelhantes aos abordados por Campbell e Greated foi analisado minuciosamente por especialistas. O professor Ricardo Musafir, chefe do Setor de Acústica, Vibrações e Dinâmica do Programa de Engenharia Mecânica da Coppe, fez uma análise minuciosa dos trechos destacados por Fuks na denúncia. “O material novo introduzido por Florivaldo Menezes nos parágrafos examinados não chega a 25% do texto”, destacou Musafir em seu parecer. “Esse tipo de ‘tradução comentada’ configura, no mínimo, uma má prática acadêmica, porque os comentários inseridos não mudam o fato de que o texto base é de Campbell e Greated”, concluiu.
O professor Roberto Tenenbaum, da UFSM, autor de livros sobre acústica, mecânica e processamento de sinais, com projeção internacional na área editorial, destacou a importância da produção de livros em português sobre o assunto, mas lamentou a oportunidade perdida por Menezes. “Ao avançar na leitura do texto do livro em português, o que se verificou é que estaria mais próximo de uma tradução do original do que propriamente uma nova obra”, afirmou. “Seria mais prudente e intelectualmente honroso se o autor tivesse realizado simplesmente a tradução do texto original dos professores Campbell e Greated”, concluiu.
Sérgio Freire Garcia, professor de sonologia da Escola de Música da UFMG, chegou à conclusão semelhante em seu parecer. “Um exame, mesmo pouco aprofundado, revela um grande número de exemplos com notável similaridade de escrita. Não é possível atribuir tal fato à mera coincidência”, apontou.
Garcia ainda destacou algumas diretrizes da Comissão de Integridade na Atividade de Pesquisa do CNPq. “Toda citação in verbis de outro autor deve ser colocada entre aspas. Quando se resume um texto alheio, o autor deve procurar reproduzir o significado exato das ideias ou fatos apresentados pelo autor original, que deve ser citado. O autor deve dar crédito também aos autores que primeiro relataram a observação ou ideia que está sendo apresentada”
Em 2023, um parecer da Comissão de Ética da UFRJ tratou da obrigação de denunciar atos ilícitos e das salvaguardas ao denunciante. “Nenhum servidor poderá ser responsabilizado civil, penal ou administrativamente por dar ciência à autoridade superior [...] para apuração de informação concernente à prática de crimes ou improbidade de que tenha conhecimento”, diz o parecer da comissão presidida pela professora Bianca Graziela da Silva, da Faculdade de Letras, com base na Lei 8.112/90.
“Assim, entende-se que o servidor público desempenha um papel crucial na sociedade e precisa agir em conformidade com as obrigações morais e éticas sempre que puder perceber a possibilidade de detectar qualquer irregularidade. Seu compromisso transcende a mera execução de tarefas profissionais, estendendo-se ao compromisso intrínseco de salvaguardar os princípios fundamentais que regem a administração pública”, define o parecer.
REPERCUSSÃO
O processo provocou a mobilização de entidades nacionais e internacionais. A Sociedade Francesa de Acústica (SFA), uma das principais organizações do mundo na área, emitiu documento assinado pelo presidente Jean-Dominique Polack, professor de Acústica da Universidade Sorbonne. “A SFA espera que a Justiça brasileira reconheça as fortes semelhanças entre as duas obras e que, portanto, as declarações do Prof. Leonardo Fuks não sejam difamatórias”, diz a nota.
Em 2024, a Sociedade Brasileira de Acústica (Sobrac) já havia saído em defesa da ética e do parecer de Fuks. “A Sobrac aguarda um julgamento justo, uma vez que o processo contém decisões sobre a inexistência de indícios de fraude, proferidas sem a realização de uma perícia técnica oficial, contrastando com a opinião de reconhecidos especialistas em acústica”.
OUTRO LADO
O professor Florivaldo Menezes Filho respondeu ao contato da reportagem por meio do advogado que o representa no processo. Menezes alega que a inexistência de plágio em sua obra está respaldada pela gerente do setor de direitos autorais da Oxford University Press, editora do livro original britânico.
A carta-resposta destaca trecho da decisão em primeira instância do juiz Danilo Fadel de Castro: “Não se compreende que tenham acorrido aborrecimentos, mas verdadeiros transtornos, que turbaram a paz e a dignidade do autor”, diz a sentença.
Em segunda instância, Florivaldo Menezes apontou a decisão unânime dos três desembargadores. “Evidentes os transtornos e dissabores causados ao autor, que teve sua idoneidade questionada”, revela trecho do acórdão judicial.
Artigo
Foto: Fernando KozuLEONARDO FUKS, PhD
Escola de Música
da UFRJ
Ética numa hora dessas?
Este é um relato da história de vida do autor, com fatos notórios e documentados. O processo mencionado é público, o que permite sua divulgação, sem incorrer em crime ou ilícito
A inteligência humana está sendo hoje confrontada com poderosas máquinas de “pesquisa”, cópia e reedição; um texto original pode ser baixado em segundos e, com um toque de tecla, parafraseado, isto é, reescrito com palavras totalmente diferentes. Ainda assim, é obrigatório que cada ideia e conceituação do autor original sejam devidamente creditadas.
Apesar das transformações nas bases tecnológicas da busca e manejo da produção intelectual, precisamos ensinar e demonstrar a nossos estudantes que os princípios éticos e legais permanecem. E não apenas aos estudantes.
Voltemos a 1999, quando uma recente dissertação de mestrado em música continha 46 páginas idênticas às minhas, defendidas em 1993 na COPPE-UFRJ. Apesar da fraude evidente, foram necessários mais de quatro anos para que a dissertação e o correspondente diploma fossem anulados. Reportagens na imprensa expunham repetidamente meu nome, como se fosse um problema pessoal, e não da comunidade acadêmica como um todo. Em entrevista à GloboNews, o então reitor da universidade envolvida, um professor de ética, afirmou: “Os critérios para aprovação de uma tese são muito rígidos e, por isso, o plágio é raro”; “Nenhum ser humano racional tentaria uma ação que, no caso da ciência, nunca teve resultado positivo.”
Tal demora de quatro anos, embora com decisão acertada, indicou que a academia não parecia suficientemente preparada para lidar, de forma expressa e resoluta, com questões de fraude acadêmica.
Em 2004, fui contratado por uma entidade de fomento à pesquisa para resenhar em sua revista um livro recém-lançado, em minha área de atuação. Ao analisá-lo, percebi que sua estrutura era praticamente idêntica à de um livro clássico estrangeiro: encontrei cerca de 70 passagens com traduções muito próximas do livro original, sem a devida citação. Sabemos que paráfrases não acompanhadas por referências caracterizam plágio. O livro também continha cerca de cem (100) figuras sem aparente autorização prévia, sendo 80 do mesmo livro, e 20 de dois outros livros. No Brasil, estas possíveis fraudes contrariam a Lei do Direito Autoral (Lei 9.610) e configuram crime (Artigo 184 do Código Penal), além de destruir a reputação de quem as cometa.
Anos depois, em 2017, já como assessor científico da mesma entidade de fomento, deparei-me com a segunda edição do livro, que aparentemente mantinha os mesmos problemas de 2004. Considerei realizar uma comunicação formal ao programa de boas práticas, em respeito ao seu código de ética, com instruções detalhadas de como proceder nestes casos.
Fiz a comunicação sigilosa em junho de 2017, por e-mail, ao órgão de denúncias, apresentando os indícios de fraude, para que procedessem conforme suas regras. No entanto, minha identidade foi revelada ao denunciado logo no início das apurações, sem minha autorização. Além disso, o parecer anônimo do assessor científico da fundação, que inclusive apontava diversos vestígios de plágio e opinava por uma investigação, expunha a minha identidade, configurando grave falha ética.
A investigação na universidade do denunciado foi conduzida por seus colegas de departamento, sem especialização no tema ou em integridade acadêmica, o que levanta dúvidas sobre conflito de interesses. Um destes colegas é também membro de projeto do próprio denunciado, projeto financiado pela mesma fundação. A diretoria da fundação aprovou o relatório e, só após mais de três anos, declarou a inocência do investigado. Isto subsidiou um processo de danos morais, que vem se arrastando por mais de quatro anos, acumulando mais de mil páginas, embora sem documentos ou testemunhos que comprovem qualquer comunicação pública, indevida, ou que tenha causado dano à imagem do denunciado.
O processo tornou públicos os documentos relevantes, inclusive aqueles das instituições envolvidas. Não houve perícia determinada, de ofício, pelo Juízo, tornando, a nosso ver, incabível a afirmação sobre ausência de fraude.
Apesar do assunto ter tomado proporções internacionais, com notícias citando meu nome, como se ainda se tratasse de algo pessoal, as instituições brasileiras parecem pouco motivadas a debater este caso.
Vale questionar se, após este quarto de século entre os eventos de 1999 e 2025, a academia, e mesmo a Justiça, amadureceram para tomar providências diante de indícios de fraude, sobretudo quando envolvem docentes universitários.
Se as decisões do tribunal estadual forem mantidas, criar-se-á um precedente perigoso, que desestimulará qualquer denúncia, comprometendo a integridade acadêmica e a proteção dos direitos autorais no Brasil.
Mantém-se minha fé na Justiça, e confio que as instâncias superiores irão reavaliar e corrigir a decisão judicial.