Uma nova e promissora droga pode revolucionar o tratamento da obesidade. Batizada de SANA (da sigla em inglês salicylate-based nitroalkene), ela é um derivado do salicilato, composto químico com propriedades analgésicas e anti-inflamatórias que é a base de medicamentos como a aspirina (ácido acetilsalicílico). A utilização dessa nova arma contra a obesidade — que não afeta o apetite e nem atua no sistema nervoso central, como a maioria dos fármacos disponíveis no mercado — foi descrita em artigo publicado em junho na revista Nature Metabolism, e é o foco de uma pesquisa internacional que conta com a participação da UFRJ.
Conduzido originalmente para o desenvolvimento de uma droga com ação anti-inflamatória pelo Instituto Pasteur de Montevidéu, o estudo iniciado em 2016 sob a coordenação do professor Carlos Escande, verificou a eficácia da SANA no combate à obesidade. A partir de 2019, o grupo agregou pesquisadores da UFRJ, da USP e da Unicamp para avaliar o processo da termogênese, pelo qual o corpo produz calor, aumenta o gasto energético e, consequentemente, a queima de calorias. Nessa avaliação foi fundamental a participação da equipe da professora Juliana Camacho, que atua com pesquisa básica no Programa de Bioquímica e Biofísica Celular do Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis (IBqM/UFRJ).EQUIPE Juliana (cabelos longos) e seus alunos Leonardo Lai de Souza e Marina Chichierchio atuam na pesquisa internacional - Foto: Acervo pessoal
“Entramos com nossa experiência no estudo das mitocôndrias, acumulada ao longo de anos no IBqM, onde fiz meu doutorado, estudando o mecanismo da proteína desacopladora. Fiz pós-doutorado com o professor Carlos Escande nos Estados Unidos, ele me apresentou o estudo com a SANA e nos engajamos na pesquisa, trazendo também pesquisadores da Unicamp e da USP. E verificamos que a droga age só no tecido adiposo, preservando outros tecidos, como o cardíaco e o muscular”, conta a professora Juliana Camacho.
PRIMEIRA DA CLASSE
As descobertas da equipe mostraram que a SANA atua especificamente no tecido adiposo e é capaz de ativar a termogênese por um mecanismo não convencional, podendo ser nomeada como uma “first-in-class”, a primeira de uma nova classe de drogas contra a obesidade. Como acentuou a professora Juliana Camacho, não há ação da droga no sistema nervoso central ou no sistema digestivo, nem efeito sobre o apetite. Um caminho diverso de medicamentos convencionais, como a semaglutida, princípio ativo do Ozempic e do Wegovy, por exemplo, usados para a diabetes 2 e a obesidade.
“A maioria dos medicamentos que temos hoje contra a obesidade afeta os neurônios que controlam a saciedade. E a droga que estamos pesquisando não mexe com a parte neurológica e não controla a saciedade. Ele opera por outro mecanismo, o de ativar a termogênese. Algumas drogas já fazem isso, mas elas dissipam a energia de nosso organismo em forma de calor, e assim os tecidos não formam ATP (conhecida como moeda energética, a ATP é uma molécula essencial para diversas atividades celulares). Algumas dessas drogas são até proibidas, pois podem levar à morte. Com a SANA não há perda de ATP”, explica a pesquisadora do IBqM.
Na pesquisa pré-clínica, feita com camundongos, o estudo mostrou uma redução significativa de peso nos animais. Mas não pelo caminho clássico da termogênese. Além da perda de peso, registrada mesmo em roedores submetidos a dietas ricas em gorduras, a SANA melhorou a sensibilidade à insulina e reduziu o acúmulo de gordura no fígado dos animais.
Já na fase 1 de testes clínicos com humanos, feita nos Estados Unidos, a pesquisa foi aprovada em termos de segurança e confirmou perda de peso similar à de medicamentos em uso contra a obesidade. “Vamos iniciar agora a fase 2, com um grupo maior de pacientes. Em média, os estudos de fase 2 e 3 duram de 4 a 6 anos. Temos até que ter uma produção da droga em maior escala. É uma droga promissora, mas temos que aguardar ainda a conclusão da fase clínica, inclusive para estudos de associação com outras drogas. Há indicações de que a pessoa, depois de algum tempo, pode voltar a ganhar peso com medicamentos como o Ozempic (injeção usada contra a obesidade). Mas será que associando a SANA ao Ozempic não teríamos um melhor efeito? São muitas possibilidades”, acredita Juliana.
NOVOS HORIZONTES
A pesquisadora do IBqM faz questão de enaltecer o trabalho de seus alunos de mestrado e doutorado Marina Chichierchio, Leonardo Lai de Souza e Gabriele Barbosa no estudo. “Graças à dedicação dessa equipe conseguimos avançar bastante, e vamos avançar mais”, destaca. Ela diz também que o modelo de pesquisa coordenado pelo professor uruguaio Carlos Escande tem grande potencial para ser replicado na América do Sul: “Foi criada uma empresa, a Eolo Pharma, vinculada ao Instituto Pasteur, para captar recursos para a pesquisa. É um modelo muito interessante, financiando pesquisa básica e desenvolvimento, juntando ciência e inovação”.
Juliana acredita que a pesquisa possa abrir novas possibilidades de tratamento não só para a obesidade. “A SANA também se insere no contexto do envelhecimento populacional. A síndrome metabólica é um conjunto de doenças relacionadas ao envelhecimento, e uma das primeiras a aparecer é a obesidade, que pode levar à diabetes tipo 2, à arteriosclerose, com alto risco de infarto, e até ao Alzheimer. Estima-se que, em 2050, 40% da população brasileira sejam de idosos com mais de 60 anos. Isso com impacto muito forte no SUS, já que ao menos 70% dessas pessoas têm ao menos uma doença crônica. Então se você consegue tratar a obesidade, você reduz o risco de essas outras doenças aparecerem”.