LUCAS acolhe a filha no leito da maternidade, onde fez o pré-natal - Fotos: Arquivo pessoalRespeito, acolhimento, cuidado. Assim, Lucas Morais, de 27 anos, resume os principais sentimentos que encontrou e compartilhou na Maternidade Escola da UFRJ e no Sistema Único de Saúde. Homem trans, ele realizou o sonho de dar à luz sua primeira filha, Cecília, no dia 12 de dezembro.
Lucas foi o primeiro assistido do programa Transgesta, que busca acompanhar pais gestantes ao longo do pré-natal, parto e pós-parto. Os pacientes são cuidados por uma junta médica multidisciplinar que inclui Obstetrícia, Psicologia, Psiquiatria, Endocrinologia, Nutrologia, entre outras especialidades. “Fui muito bem assistido, com uma junta de profissionais muito qualificados, que me trataram com extrema atenção e respeito”, recorda-se.
Ele conta que a paternidade sempre esteve em seu horizonte, mas o desejo era de adotar, por conta do receio de encarar uma gravidez e o possível preconceito. “Eu pensava em adotar porque não me via gestante. Na minha cabeça, só seria pai desta forma. Quando conheci meu companheiro, a vontade começou a surgir ao brincar com os filhos dele”, conta Lucas. “Começamos a conversar sobre o assunto e a vontade de gestar ficou mais forte”, lembra. “Parei de tomar os hormônios e tentamos algumas vezes, sem sucesso. Então, eu desisti. No dia em que eu retomaria as aplicações hormonais, descobri a gravidez”.
O susto inicial gerou uma avalanche de dúvidas, mas ele resolveu enfrentar os medos e ir ao posto de saúde mais próximo de sua casa, no Santo Cristo. “Cheguei lá e pedi um exame de Beta-HCG (que identifica o hormônio ligado à gravidez no sangue), porque queria confirmar o teste que havia feito em casa. Pela minha aparência masculinizada, a pessoa não compreendeu e me encaminhou para tomar uma vacina BCG”, lembra Lucas. O mal-entendido foi logo desfeito e ele foi encaminhado ao exame correto. “Foi o único incidente deste tipo no posto do SUS”, garante. “Até hoje a equipe de lá me acompanha e à minha filha, nas vacinas, inclusive”, revela. “Todas as enfermeiras são apaixonadas pela Cecília”.EQUIPE Jair Braga, no centro, fez parte do grupo que realizou o partoDo posto, Lucas foi encaminhado para a Maternidade Escola para realizar ultrassonografias de rotina, pois sua condição de saúde — ele é asmático e utiliza remédios para controlar as crises — exigia um acompanhamento mais intenso do feto. “Minha gestação foi complicada por conta dos remédios e pelo meu trabalho muito intenso”, justifica. “Após a segunda ultra, o dr. Jair (Braga, diretor médico da Maternidade Escola) me telefonou, apresentou a proposta e me perguntou se eu aceitaria ser o primeiro atendido no projeto. Fiquei muito feliz por poder contribuir com essa política pública. Fui muito acolhido”.
Ter sido preparado emocionalmente e psicologicamente para a gestação e para as mudanças que aconteceriam no seu corpo foi um fator fundamental, segundo Lucas. “A minha barba caiu inteira, a minha voz afinou um pouco, o meu corpo passou a ter mais curvas. Mas eu me preparei tanto para isso que essas questões não me incomodam hoje”, avalia. “Sem dúvidas, devo isso ao apoio que se iniciou ainda no posto de saúde”.
PROJETO INOVADOR
O Transgesta é pioneiro no Brasil na atenção especializada a gestantes identificados como transgêneros, travestis, intersexos e não-binários. A primeira maternidade a receber o programa foi a Climério de Oliveira, ligada à Universidade Federal da Bahia. Como a Maternidade Escola, a MCO-UFBA é administrada pela Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), que importou a iniciativa para o Rio de Janeiro. Sete homens já foram atendidos na maternidade baiana desde 2021. Eles deram à luz nove bebês.
Já a ME-UFRJ iniciou o acompanhamento do seu segundo paciente, que preferiu não conversar com a reportagem. Para o diretor médico da maternidade, Jair Braga, especialista em Medicina Fetal e coordenador do Transgesta, participar da iniciativa é uma rica experiência profissional e pessoal. “É um processo de aprendizado não só para o paciente, mas para todos nós. Toda a equipe foi treinada para o acolhimento desse paciente, para que ele pudesse se sentir o mais à vontade possível, sem olhares atravessados, sem ser tratado com preconceito”, avalia. “Cada profissional tem sua importância nesse processo. Todos nós saímos melhores desse projeto, com lições de respeito e de empatia”.
A ME concentra o atendimento especializado para o público de todo o estado do Rio de Janeiro. A regulação, para o médico, é um importante fator que garante o direcionamento da política pública. “Concentrar esses atendimentos e estar oficialmente regulados para receber estes pacientes é um fator de orgulho e pode ter um impacto social muito positivo”, acredita. “Essas pessoas sofrem preconceito, têm seus bebês de forma não direcionada e a ideia é fazer esse acolhimento e acompanhamento o mais humanizadamente possível”.
Ele lembra com carinho do primeiro paciente. “Eu me sinto muito orgulhoso de ter feito parte da equipe do parto. Foi um momento muito emocionante quando promovemos o contato pele a pele do Lucas com a sua bebê e ele decidiu amamentar ainda na sala da cesariana”, recorda o médico. “Houve um atendimento multiprofissional desse paciente. Queremos que mais pessoas tenham essa experiência direcionada”.
O professor Joffre Amim, superintendente-executivo da Ebserh na Maternidade Escola, celebra a iniciativa. “A maternidade, desde sua constituição, assume projetos que se relacionam a transformações sociais e/ou quando essas modificações elevam riscos para uma gestação”, afirma. “Há 15 anos, por exemplo, temos o ambulatório para gestantes pós-bariátricas, que é também uma mudança de perfil social. A sociedade está em evolução e precisamos acompanhar essas mudanças”.
VALE A PENA
Se depender do Lucas, em breve mais um bebê nascerá pelo projeto Transgesta. “Penso em ter mais filhos, dar um irmão ou uma irmã para a Cecília até os meus 30 anos”, planeja. “E com certeza será na Maternidade Escola. A equipe é, de fato, maravilhosa”.
Ele deixa um conselho a outros homens que desejam gestar, mas ainda têm medo do preconceito. “A gestação não é fácil, mas siga sua vontade sempre. Nós, homens trans, temos muitas portas fechadas. Precisamos arrombar essas portas, exigir respeito. É o mínimo que todo ser humano merece”, afirma. “Se for tratado com transfobia, denuncie. Não deixe que tirem seu sonho. A gestação é a coisa mais maravilhosa que o nosso corpo pode nos proporcionar. A gente tem esse privilégio de poder gerar uma vida. No final, tudo vale a pena”.