Renan Fernandes
O historiador Luiz Antonio Simas citou uma metáfora de Guimarães Rosa para ilustrar o sincretismo religioso relatado no documentário “Santo Forte”, de Eduardo Coutinho. “Toda árvore oferece um pouco de sombra”, disse sobre a crença em diferentes ritos religiosos.
O filme foi o escolhido para a segunda edição do Cine Cidadania, evento organizado pela Universidade da Cidadania, órgão vinculado ao Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ. Depois da exibição, o historiador participou de um debate com a jornalista Nilza Valéria e o público presente ao Estação Net Botafogo na quarta-feira, 11.
“Santo Forte”, de 1999, trata das religiosidades do povo brasileiro e é considerado um marco do cinema documental do país. A linha narrativa da obra é construída a partir das experiências religiosas de moradores da favela Vila Parque da Cidade, localizada na Gávea.
A professora Eleonora Ziller, diretora da Universidade da Cidadania, comentou a curadoria das primeiras edições do projeto. “Temos um norte nesse início que é trabalhar com documentários potentes que tragam debates sobre o Brasil e que tenham ressonância contemporânea”.
Depois de exibir “Notícias de uma guerra particular” em outubro, a escolha pelo filme de Coutinho trouxe nova temática para o debate. “Na primeira edição, trabalhamos a violência urbana. Agora, debatemos sobre a religiosidade do nosso país, um cenário que está em transformação”, explicou a docente.
Dados mais recentes do IBGE mostram um aumento de 61,5% no número de evangélicos em relação ao Censo de 2010. Em 1980, eles representavam 6% da população brasileira. Hoje, um em cada três brasileiros adultos se identifica como evangélico. “É um crescimento muito grande. As tensões que estamos vivendo são resultado dessa mudança”, afirmou Nilza Valéria, coordenadora da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito.
A jornalista destacou o surgimento de uma nova religiosidade popular e apontou indícios do impacto dessa mudança na cultura popular. “Todo mundo já foi chamado de abençoado ao entrar num comércio, num Uber. Essa linguagem saiu do espaço religioso e ganhou espaço na vida cotidiana de toda a sociedade”, avaliou. “A religiosidade é o lugar de conforto e de encontro entre os mais pobres”, concluiu Nilza.
Para Simas, não é possível pensar as manifestações religiosas no Brasil sem pensar na construção de um pertencimento comunitário. “O exercício da religiosidade dá sentido à vida das pessoas na dimensão de redes de proteção social”, analisa. “A exclusão social é um projeto de Estado na maior parte do tempo”.
INTOLERÂNCIA
As entrevistas de Coutinho no documentário investigam a interação entre diferentes crenças na pequena comunidade da Zona Sul do Rio de Janeiro. Esse ponto foi destacado por Simas, pesquisador da religiosidade popular brasileira. “Minha experiência de criança com as práticas religiosas é muito inclusiva. Nos meus tempos de garoto em Nova Iguaçu, era comum o convívio entre práticas religiosas e esse convívio não era tensionado como acontece hoje”, recordou.
Alguns personagens do filme denominam-se católicos ao mesmo tempo em que frequentam terreiros de umbanda e candomblé. O historiador lembrou ritos das religiões de matriz africana que se misturavam com os templos católicos. “No candomblé, fazia parte das iniciações das iaôs a visita a sete igrejas. Era uma tradição que veio da Bahia”, conta.
No primeiro semestre de 2024, o Disque 100 – canal de denúncias do Ministério dos Direitos Humanos – registrou um aumento de 80% nas denúncias de intolerância religiosa quando comparado ao mesmo período do ano passado. Um salto de 681 denúncias em 2023 para 1.227 este ano, uma média de sete denúncias por dia.
“É uma pena que os tempos recentes da experiência brasileira tenham sido marcados pelo impacto da intolerância, do racismo religioso e pela apropriação da fé por um projeto político profundamente reacionário”, lamentou Simas. “Não existe um projeto de país melhor que não passe pelo reconhecimento do direito de cada um de lidar com o mistério da maneira que julgue mais adequada”, completou.
O DOM DA ESCUTA
A historiadora Dulce Pandolfi, assessora da UC, leu uma carta do cartunista Claudius Ceccon, produtor-executivo do filme, que não pôde estar presente por problemas de saúde. “Queria estar presente para contar como Coutinho, um agnóstico convicto, durante a filmagem dava discretamente comida para um santinho em sua sala”, brincou Claudius.
O quadrinista recordou os tempos do Centro de Criação de Imagem Popular (Cecip) junto de Coutinho, Ana Maria Machado e Paulo Freire, e a opção pelo uso do audiovisual como estratégia de comunicação popular.
Ceccon destacou a habilidade de escuta do cineasta para conseguir os relatos sinceros dos entrevistados. “Coutinho intuía que falar de religião deixava as pessoas mais à vontade. Era um mestre da escuta, compreendia o outro sem aderir, mas sem julgamentos de qualquer ordem”, concluiu.
Foi a capacidade de escuta do diretor que encantou Cristine Muggler, professora aposentada e consultora do Museu Nacional. “O filme é de uma sensibilidade incrível. A forma como Coutinho conversa e dá espaço para as pessoas falarem no filme é maravilhosa”, elogiou. emocionada.