A Ciência incomoda o autoritarismo. A prova mais recente é a ação movida pelo Partido Novo junto ao Tribunal de Contas da União (TCU) contra o Laboratório de Estudos de Internet e Redes Sociais (NetLab), da UFRJ. O partido acusa o NetLab de receber verba pública para “defender o governo Lula”. Criado em 2013, o laboratório se tornou referência nos estudos sobre desinformação e tem sido importante ator na desarticulação de notícias falsas nas redes sociais veiculadas por perfis de extrema direita. O grupo também estuda os efeitos dessas fake news na sociedade brasileira. Outro eixo de suas pesquisas demonstra como as grandes empresas de tecnologia se associam e lucram com a desinformação.
O Partido Novo questiona especificamente um convênio firmado em 2023 com o Ministério da Justiça e o Ministério das Mulheres, no valor de R$2,3 milhões. A pesquisa investiga a “indústria da desinformação e seu impacto nas relações de consumo do Brasil”.
O que o Partido Novo faz tem nome. A prática é conhecida como lawfare (guerra jurídica). O termo representa o uso do Direito como arma de ataque e tem sido largamente usado nos Estados Unidos. Por lá, a extrema direita conseguiu fechar as portas de laboratórios que também investigavam o fenômeno da desinformação pelos altos custos dos processos.
A denúncia do Novo foi acatada pelo ministro do TCU, Augusto Nardes. De biografia questionável, ele determinou o envio de dados e depoimentos de pesquisadores vinculados ao laboratório. Rose Marie Santini, professora associada da Escola de Comunicação e diretora do NetLab, é uma das investigadas pelo TCU. Nesta entrevista, ela explica o que está em jogo.
Jornal da AdUFRJ - O NetLab é reconhecido por suas pesquisas e análises sobre os impactos das fake news. Acha que esse é o motivo dos ataques que vem recebendo?
Rose Marie Santini - Certamente. O que está em questão é que esses estudos têm incomodado muito a estratégia de governar da extrema direita. Eles entendem que os atrapalhamos e por isso entraram com essa estratégia de “lawfare”. Houve tantos processos nos Estados Unidos, que alguns laboratórios que desempenhavam pesquisas semelhantes às nossas fecharam. O de Stanford, por exemplo, foi um que encerrou suas atividades. O laboratório também era liderado por uma mulher. Os pesquisadores americanos estavam censurados e com medo. A gente passa por todo o procedimento científico, com avaliação do nosso trabalho por pares, mas eles não têm apreço pela Ciência. Isto não é diferente do que já aconteceu em outros momentos da História, quando a Ciência questionava os poderes absolutos, o funcionamento do universo, e se tornou alvo de ataques.
Como o NetLab recebeu a notícia da abertura de investigação pelo TCU?
Nós ficamos muito assustados porque eles dizem que colocamos pessoas para trabalhar em eleição. O que é uma completa inverdade. Eles estão questionando o mérito do projeto e querem politizar o nosso trabalho. Nós estamos sendo perseguidos mesmo, inclusive aumentamos as nossas medidas de segurança. Vivemos esse cenário de censura do trabalho dos pesquisadores e ameaças à liberdade de cátedra.Nós somos acadêmicos. Somos um grupo de pesquisa ligado à pós-graduação. Os alunos estão com medo, não querem aparecer, fecharam seus perfis nas redes sociais. Nesse momento em que precisamos estimular os alunos a falar, escrever artigos, a aparecer, essa situação os deixa paralisados.
A senhora e os demais pesquisadores já foram ouvidos pelo TCU?
Ainda não. Estamos aguardando a fase de apresentar as informações para a Corte e sua área técnica.
O Novo afirma que o grupo de pesquisa realizou estudos enviesados com dinheiro público. Como a senhora responde a este tipo de acusação?
É uma completa falácia. Nosso estudo é técnico. A gente lida com dados, com Big Data. Esses estudos são avaliados por pares. Setenta por cento do nosso financiamento é via filantropia privada. Há um duplo interesse. De um lado, um grupo político que quer dizer que tudo é opinião. Por outro lado, as big techs dizem que nós não temos dados para realizar esses estudos. Tudo isso para não desvelar os danos sociais que essas big techs causam e que esses grupos políticos implementam. A desinformação é parte do negócio. Fica claro que esse é um modelo de governar. Eles querem manipular sem que ninguém conte a estratégia de comunicação deles. Nós não vamos ceder. Temos autonomia universitária e liberdade de cátedra. Aceitar isso é dizer que a política pode definir a pesquisa. O que está em questão é o que vamos fazer diante dessas tentativas de censura aos pesquisadores que estão sendo perseguidos e ameaçados – inclusive fisicamente.
O partido questiona especificamente um convênio com o Ministério da Justiça. Qual foi o escopo desse projeto e quais resultados a pesquisa apontou?
Foram R$ 2 milhões do Ministério da Justiça e R$ 300 mil do Ministério das Mulheres. O nome do projeto é “Observatório da Indústria da Desinformação e seu Impacto nas Relações de Consumo no Brasil”. Nós mostramos o uso de perfis de políticos com serviços de publicidade para a realização de golpes e fraudes. As big techs são sócias disso porque ganham dinheiro com esse tipo de ação. São várias entidades vítimas desses golpes, que incluem imagens também de celebridades para lesar consumidores. Também fizemos o estudo com o Programa Desenrola Brasil. A gente mostrou que estelionatários utilizaram o programa para dar golpes, como se fosse uma negociação de dívida. Nós colocamos esse debate na agenda nacional, com a produção de mais de cem matérias na imprensa. Estamos mostrando que são necessárias medidas e políticas públicas para que esses consumidores deixem de ser lesados.
O que espera a partir deste episódio?
Espero uma coalizão da comunidade científica. É importante que a gente se mobilize enquanto universidade, porque atacar o NetLab é atacar a UFRJ, é atacar os pesquisadores. Nos Estados Unidos, as universidades que lidam com laboratórios de pesquisa como o nosso são privadas e ficou muito caro lidar com esse lawfare. Houve um cálculo financeiro mesmo. A gente precisa entender que a pesquisa de ponta tem que permanecer na universidade pública, que é a instituição que pode resistir a esse tipo de ataque. O Partido Novo acredita no fundamentalismo de mercado e está aliado às big techs, que são as grandes financiadoras deste discurso. Eles se aliam de maneira ideológica. Então, precisamos entender a missão da universidade pública especialmente nesse momento histórico e estar mais unidos. Faz parte do nosso trabalho essa luta incessante pela democracia e em defesa do nosso próprio trabalho. Precisamos pensar no que fazer para impedir esse tipo de perseguição.
Como vê o cenário nesse campo da desinformação para 2026?
Eu já estou preocupada com 2025. Já temos agora, em 2024, o Trump eleito. Ano que vem, um dono de big tech assume o governo. Haverá o debate sobre a regulamentação das redes, por exemplo. O debate sobre a manipulação e a desinformação, que prepara o que será 2026, já vai começar agora. Tudo isso é construído muito antes. A extrema direita está criando cultura, visão de mundo e isso leva tempo, não é do dia para a noite. Se não reagirmos, vai haver aqui uma versão piorada do que houve lá nos Estados Unidos.
É possível pensar em algum avanço em meio a tanto retrocesso?
Estamos num governo progressista, somos uma universidade pública e temos importância e inserção no debate social. Precisamos aproveitar o governo democrático que temos para criar soluções, para criar trincheiras e resistir. Essa é a nossa chance.
QUEM É AUGUSTO NARDES
A biografia de Augusto Nardes mostra que o ministro que abriu o processo contra o NetLab tem lado. E não é o da democracia. Administrador por formação, ele iniciou sua carreira política pelo Arena, como vereador, na ainda na década de 1970. Foi deputado estadual e federal até 2005 por siglas que substituíram o Arena e se fundiram até o atual Progressistas.
Assumiu como ministro do TCU em 2005, após pressão do então presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti. Em 2015, foi o relator da análise das contas presidenciais e rejeitou as contas de 2014 da presidente Dilma Rousseff. O veto deu o enredo necessário ao golpe contra a primeira mulher a presidir o Brasil.
Em 2022, Augusto Nardes teve áudios vazados em que demonstrava apoio aos atos antidemocráticos que pediam golpe militar no Brasil, após a derrota de Jair Bolsonaro. Com a repercussão, afirmou que gravou as mensagens “apressadamente” para um grupo de amigos e pediu licença médica.