Uma pesquisa com “DNA 100% UFRJ” pode representar uma nova e promissora frente de combate às doenças neurodegenerativas, em especial a doença de Alzheimer. Liderada pela professora Flávia Gomes, do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB), o trabalho atesta a eficácia da ação de uma molécula — a LASSBio-1911, planejada, sintetizada e caracterizada pelo ICB — no controle da evolução da doença e também na reversão de danos, como a perda da memória. Os resultados dos testes, feitos em camundongos, foram descritos em artigo recentemente publicado no British Journal of Pharmacology.
De acordo com Flávia Gomes, o estudo tem como diferencial o foco nos astrócitos, células do sistema nervoso que têm formato de estrelas e são importantes na formação dos circuitos neuronais e na nutrição dos neurônios. “Nas doenças neurodegenerativas, temos o aparecimento de astrócitos neurotóxicos, ou seja, que são tóxicos para os circuitos neurais e para os neurônios, e astrócitos neuroprotetores, que ajudam a combater essas doenças. O composto LASSBio-1911 consegue converter astrócitos neurotóxicos em astrócitos neuroprotetores. O “empoderamento” desses astrócitos é um dos principais mecanismos da ação do composto. Isso traz uma mudança de paradigma, tornando os astrócitos como células-alvo no controle da doença de Alzheimer”.
AMPLITUDE
Dados do Ministério da Saúde indicam que o Brasil tem cerca de 1,2 milhão de pessoas que sofrem com a doença de Alzheimer. Em 4 de junho deste ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou o projeto de lei que cria a Política Nacional de Cuidado Integral às Pessoas com Doença de Alzheimer e outras demências, de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS). A nova lei estabelece prioridade no tratamento dessas enfermidades no âmbito do SUS e a notificação obrigatória de ocorrências da doença de Alzheimer e outras demências. Além disso, a lei prevê apoio a pesquisas para o tratamento dessas doenças.
Nesse contexto, o estudo da UFRJ ganha ainda mais amplitude. “O composto LASSBio-1911 pode ser base para fármacos que possam contornar os déficits cognitivos que são observados na doença”, aponta Flávia Gomes. Assinada por outros 11 pesquisadores — não só do ICB, mas também da Faculdade de Farmácia e do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho —, a pesquisa teve financiamento do Ministério da Saúde, da Faperj, do CNPq e dos institutos nacionais de Ciência e Tecnologia de Neurociência Translacional (INNT) e em Fármacos e Medicamentos (Inofar). A íntegra do trabalho pode ser acessada em https://bpspubs.onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/bph.16439
TRABALHO COLETIVO
Como em uma corrida de revezamento, os pesquisadores da UFRJ formaram uma cadeia de produção para alcançar os objetivos do estudo. O ponto de partida foi a “quimioteca” (biblioteca de moléculas) do Laboratório de Avaliação e Síntese de Substâncias Bioativas (LASSBio), mais especificamente a molécula LASSBio-1911, que pertence a uma classe de medicamentos antitumorais. Essa molécula foi planejada, sintetizada e caracterizada pelo grupo liderado pelo professor Carlos Alberto Manssour Fraga, falecido em 8 de maio passado, aos 59 anos. “O professor Manssour foi fundamental para o desenvolvimento dessa pesquisa”, atesta Flávia Gomes.
Até então, a molécula LASSBio-1911 se mostrara promissora para o tratamento de alguns tipos de cânceres, como o de próstata. “Essa molécula já era conhecida há uns oito anos, mas testada para controle de tumores. Alguns trabalhos mostraram que células com características parecidas com as dela seriam capazes de atuar no combate a doenças neurodegenerativas. E fomos nessa direção”, diz Flávia.
Com o bastão passado pela equipe do professor Manssour, o grupo coordenado por Flávia Gomes foi adiante. E com os astrócitos como alvos. Os resultados mostraram que a molécula LASSBio-1911 não só estancou a progressão da doença como também recuperou funções das células que se assemelham a estrelas. “Isso foi observado tanto in vitro quanto in vivo no modelo experimental da doença de Alzheimer. Importante lembrar que a maior parte dos fármacos para essa doença tem como alvo os neurônios e as sinapses, e não os astrócitos. E a grande maioria fracassou, até o momento, no controle da doença”.
TESTE DE MEMÓRIA
Um dos momentos marcantes do longo período de testes foi o ensaio de reconhecimento de objetos pelos camundongos. O professor Luan Diniz, também do ICB, recorda que esse ensaio animou toda a equipe. Os animais foram divididos em dois grupos: um normal e outro induzido com a patologia de Alzheimer. Ambos foram colocados em uma arena com dois objetos. “Os camundongos têm um instiunto natural exploratório, a tendência é que eles explorem os dois objetos. Ele fareja, se encosta. No dia seguinte, nós colocamos os animais nessa mesma arena e colocamos um objeto que eles já exploraram no dia anterior e um objeto novo. E os resultados foram supreendentes”, lembra o professor.
O animal normal, com sua memória preservada, lembrou do objeto antigo e usou mais tempo explorando o objeto novo. Já o roedor com a patologia de Alzheimer, com a memória efetada, não lembrou do objeto que explorou no dia anterior e usou o mesmo tempo explorando os dois objetos. “Nós quantificamos esse tempo. O animal com a patologia que nós tratamos com a molécula LASSBio-1911 recuperou a memória dele, reconheceu o objeto antigo e ficou mais tempo reconhecendo o objeto novo, como ocorre naturalmente com o animal normal”, comemora Luan Diniz.
PRÓXIMOS PASSOS
Como na hipotética corrida de revezamento, a equipe de Flávia Gomes já “devolveu o bastão” ao grupo que cuida da “quimioteca”. “A modelagem molecular leva em consideração a otimização dos compostos em estudo. A molécula que usamos nesse estudo não é exatamente a molécula que será usada nos próximos ensaios. A ideia agora é melhorar a estrutura dessa molécula, aprimorar sua capacidade de penetrar no sistema nervoso. A equipe já está trabalhando nisso. O passo seguinte é a validação biológica dessas moléculas. Muitos compostos que são desenhados no computador, quando testados em animais ou em culturas de células, não funcionam. O projeto vai caminhar nessa direção”, adianta Flávia Gomes.
A neurocientista revela que o principal foco do grupo é estudar não só as doenças neurodegenerativas, mas principalmente o processo de envelhecimento. “Como esses compostos podem agir minimizando o declínio cognitivo que acontece naturalmente em indivíduos idosos saudáveis? Isso é o que perseguimos, sempre tendo no horizonte que prevenir é melhor do que remediar. Temos modelos animais de envelhecimento para fazer esses testes, e vamos avançar”.
Os professores da UFRJ envolvidos na pesquisa são Luan Diniz, Pedro Murteira Pinheiro, Carlos Alberto Manssour Fraga e Flávia Alcantara Gomes, do Instituto de Ciências Biomédicas; Sérgio Ferreira, do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho; e Cláudia Figueiredo, da Faculdade de Farmácia.
Que desses estudos brotem novas esperanças.
O estudo demonstrou que em animais preparados como modelo para o estudo da Doença de Alzheimer houve um aumento de astrócitos neurotóxicos (em vermelho na imagem). No entanto, o tratamento desses animais com a molécula LASSBio-1911 promoveu a conversão desses astrócitos prejudiciais em neuroprotetores (em azul), abrindo uma potencial inovação terapêutica para a patologia