IGOR VIEIRA
Para pegar um saci, diz a lenda, é preciso levar uma peneira e uma garrafa com rolha a um redemoinho. Já no xadrez folclórico criado pela designer Ana Beatriz Oliveira, o objetivo é usar um exército de curupiras, boitatás, mulas sem cabeça e outros mitos para colocar em xeque o personagem de cachimbo, que encarna o rei.
As peças moldadas em resina que ilustram esta página fizeram parte do trabalho de conclusão de curso da ex-aluna de Desenho Industrial - projeto de produto, da Escola de Belas Artes. A proposta é ensinar a cultura popular nas escolas, além de estimular a cognição e o raciocínio nas crianças. “O folclore é lúdico. É ensinado até por vídeo, mas por contato físico é melhor. As pessoas aprendem por meios diferentes por terem inteligências diferentes”, afirma Ana Beatriz.
O jogo vem acompanhado de um livreto, em que a história de cada personagem é contada e relacionada com a peça de xadrez e seu movimento no tabuleiro. Um exemplo é o Boitatá que, em sua forma de tronco, acabou associado à Torre. Com dois pares de olhos para proteger as florestas, ele pode se movimentar em duas direções, assim como a peça do xadrez tradicional. Além do Boitatá, os personagens são: Mula sem Cabeça (cavalo), Curupira (peão), Boto Cor de Rosa (bispo), Cuca (rainha) e o rei Saci. É um aprendizado que percorre várias casas.
“O ensino atual não contempla todos os meios, como, por exemplo, aquele das crianças com déficit de atenção. O livreto com a história também é muito importante”, defende Ana Beatriz, que fez o projeto voltado para as escolas públicas.
A motivação para o trabalho final resultou de um conjunto de interesses de sua trajetória. “Quando criança, eu gostava de assistir ao Sítio do Picapau Amarelo. Na escola, fiz aula de xadrez e participei de campeonatos. Durante a pandemia, tive aula de modelagem 3D na UFRJ”, explica Ana. “Foi uma união de coisas que me interessavam, que têm propósito e sentido”.
O orientador do projeto, professor Hugo Backx, destaca o recorte social do tema.“Durante o TCC, orientei que trabalhássemos focados no ensino, principalmente em escola pública. Sabemos a dificuldade que elas têm de conseguir equipamento, livro, material”, afirma.
Backx também chama a atenção para o cuidado na elaboração do jogo. “O boto estava muito liso, no início”, exemplificou. “No design, temos uma preocupação com a coerência formal. Uma peça não poderia destoar da outra: uma ser muito detalhada; outra, muito simples”.
A preocupação de Ana Beatriz com o folclore e a cultura popular foi ressaltada pelo professor. “Muitas crianças conhecem os X-Men, nada contra, mas não conhecem Mauricio de Sousa, Ziraldo, nosso folclore”, afirma. “A cultura é um resgate. Se não mantivermos acesa, perdemos. A cultura e o conhecimento são amplos. Não pode haver ditadura. Não podem prevalecer uns sobre os outros”.
O professor Andriolli Costa, do curso de jornalismo da UERJ, pesquisa cultura popular e explica por que esse conhecimento não pode ser colocado em xeque. “Através da cultura popular, nós descobrimos a própria história do Brasil. Achamos que essas histórias são sobre monstros, mas são sobre nós. Investigando a história das tradições, falamos de racismo, misoginia, resistência”.
VIRALIZOU
O TCC foi defendido em março de 2022, mas o xadrez folclórico viralizou esta semana. Andriolli, ativo nas redes sociais, compartilhou as fotos do trabalho em suas postagens. Apenas no Twitter, o post teve 85 mil curtidas e quase 10 mil compartilhamentos. Nos 778 comentários, muitas pessoas se interessaram em comprar e elogiaram a ideia.
“Eu decidi criar um instagram para o jogo, o @xadrezfolclorico, porque muitas pessoas querem comprar, mas ainda vou demorar a começar a fazer as encomendas. Tem gente querendo para colecionar ou para dar de presente”, diz Ana Beatriz, admitindo que foi pega de surpresa. “Vejo como uma oportunidade de usar a parte dos lucros para escolas que não têm como comprar. Para escolas que têm condição, vou fazer um jogo com preço especial”. De fato, uma jogada de mestra.