Estela Magalhães e Silvana Sá
A Lei de Cotas completa sua primeira década de existência na próxima segunda, dia 29. Ao longo de dez anos, foi responsável por ampliar o acesso de estudantes pobres, pretos, pardos e indígenas à graduação. A UFRJ aderiu ao sistema em 2013, depois de longo debate, e desde então viu o perfil de seus estudantes mudar. O número de alunos pretos e pardos cresceu 71% em seis anos. “A universidade hoje respira novos ares. A lei de cotas vem trazendo uma UFRJ mais diversa, plural e com mais representatividade”, analisa Denise Góes, coordenadora das Comissões de Heteroidentificação da Pró-reitoria de Graduação (PR-1).
A lei prevê que 50% das vagas sejam reservadas para estudantes que completaram o ensino médio em escolas públicas. Dentro deste grupo, 50% se aplicam a candidatos cuja renda familiar per capita seja de até 1,5 salário mínimo. A outra metade fica destinada a alunos de escolas públicas com renda superior a 1,5 salário mínimo. Nas duas faixas de renda são destinados percentuais para pretos, pardos e indígenas, de acordo com a proporção desses grupos étnicos no estado em que se localiza a instituição de ensino. Também há cotas para pessoas com deficiência. De acordo com o Censo 2010, o Rio de Janeiro tem 51,7% de sua população formada por pessoas negras e 0,1% por indígenas.
A própria lei prevê sua revisão após dez anos, ou seja, ainda em 2022. Uma das sugestões de Denise Góes é que haja mudanças no acesso de indígenas às vagas. “O indígena urbano vem sofrendo perdas em relação à reserva de vagas porque não está aldeado conforme preconiza a documentação que ele tem que apresentar no momento da matrícula”, conta. O candidato indígena precisa apresentar um certificado de aldeamento.
O momento eleitoral, para Denise, não é o mais propício à revisão de uma lei tão importante para o país. De acordo com a servidora, é necessário que as universidades se articulem para interferir na revisão da lei em outro momento. “Penso que as comissões de heteroidentificação têm que estar dentro dessa revisão com caráter obrigatório a todas as universidades”, opina.
Apesar da preocupação com um Parlamento conservador, com grande número de parlamentares contrários às cotas, o professor Vantuil Pereira, decano do Centro de Filosofia e Ciências Humanas, lembra que o momento eleitoral e o apoio da sociedade podem proteger a lei. “Há um sentimento na sociedade civil muito diferente de 2003. A opinião pública hoje é favorável às cotas e a repercussão de um eventual fim dessa lei pode ser muito ruim para os parlamentares num ano eleitoral”, analisa.
HETEROIDENTIFICAÇÃO
“Fico muito orgulhoso por ele, ter alguém na família cursando uma universidade traz muita alegria”, diz Vilmar Alves, que acompanhou o neto Jonathan Silvino no processo de heteroidentificação, no qual foi aprovado. O objetivo desta etapa é garantir o acesso de pessoas pretas e pardas às vagas reservadas e coibir fraudes.
Ingrid Nogueira também foi aprovada no processo e garantiu sua vaga em Arquitetura. “Não consigo nem descrever o que estou sentindo. Meus pais não completaram o ensino médio e sou a primeira da família a cursar uma universidade pública”, conta, emocionada.
“Nós analisamos o fenótipo dos candidatos, porque é ele que marca o racismo no Brasil”, explica Denise Góes. “Não se trata de simplesmente julgar quem é preto, quem é pardo e quem não é”, ela explica. “Para realizar a heteroidentificação é preciso entender o quanto o racismo massacrou um segmento da população e a trajetória da luta do movimento negro brasileiro na conquista dessas políticas públicas por igualdade de oportunidades”, analisa. Ela ainda destaca a importância da diversidade de raça, gênero e segmento social nas comissões, o que foi muito bem recebido pelos candidatos. “É bom ser avaliado por uma banca diversa e com pessoas que me representam”, diz Elias dos Santos, aprovado em Relações Internacionais.
“Não falamos mais em fraude desde 2020”, diz o professor Marcelo de Pádula, superintendente-geral de Graduação. “O processo de heteroidentificação admite os candidatos aptos e elimina os que não têm direito às cotas”, completa. Desde a implementação dessa política pela UFRJ, as fraudes foram anuladas e o número total de não aptos vem caindo a cada semestre. Em 2020.1, período de implementação do processo, 14% dos candidatos foram considerados não aptos para o uso das cotas e 21% não compareceram. Em 2022.1, foram identificados menos de 6% de candidatos não aptos, e o número de faltosos permaneceu por volta de 21%. Caso o candidato seja considerado não apto pela comissão, ele tem direito a solicitar outra banca, no mesmo dia, e recorrer da decisão. O candidato só é eliminado caso a comissão determine a não aptidão de forma unânime.
MUDANÇAS NA DOCÊNCIA
Embora o impacto das cotas seja mais sentido na graduação, a participação de pessoas pretas na pós-graduação e admitidas nos concursos docentes também aumentou ao longo dos anos. “Tanto a lei de 2012, quanto a lei de 2014 (que prevê cotas raciais para o Serviço Público), criaram condições para a renovação do corpo docente nas universidades e na própria UFRJ”, acredita Vantuil Pereira. “Isso, combinado ao Reuni (Programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais), que abriu a perspectiva do aumento de vagas docentes”, afirma. “Essas políticas associadas mudaram a composição do corpo docente, ainda que não da maneira desejada”, considera. “Saímos de um patamar de 8% de professores negros para 14%, que é mais ou menos o número que temos na UFRJ”.