“A UFRJ foi uma das últimas universidades a aderir às cotas raciais. Num primeiro momento, ainda havia resistências, e também incompreensões. A academia se dividiu, houve manifestações contrárias e favoráveis. Ficou, durante um tempo, introjetada a questão meritocrática”, lembra Denise Góes, servidora que coordena a Câmara de Políticas Raciais. Para ela, o aumento de pessoas pretas e pardas na universidade ajudou a fazer crescer a consciência, de maneira geral, da importância da população afrodescendente ocupar espaços institucionais. “A entrada de um jovem ou pessoa mais velha, negra, modifica e altera o status quo. O fato de estar pisando na universidade é muito importante, tem uma qualidade espetacular”, acredita.
Denise é uma das pessoas empenhadas em tornar o acesso pelas cotas justo, sem fraudes. Na experiência com as Comissões de Heteroidentificação, ela reconhece que ainda existem caminhos a serem buscados para aperfeiçoar a entrada de estudantes negros. “O caminho a percorrer é fazer da lei um instrumento que garanta a vaga, e das comissões um instrumento para o sujeito de direito. A autodeclaração continua sendo importante. É preciso que as políticas de assistência estudantil sejam aprofundadas. É uma dicotomia permitir o acesso e ceifar a assistência estudantil”, afirma a servidora. “A UFRJ, como maior da América Latina, tem que criar um plano B para garantir a expansão e aprofundamento das políticas de permanência. Senão é como ficar com sede no deserto”, completa.
DIVERSIDADE
O secretário geral da Associação de Pós-Graduandos (APG) e docente do CAp-UFRJ, Jorge Marçal, é um dos muitos beneficiados pela Lei de Cotas. “Fui de uma das primeiras turmas de cotas na Biologia. Entrei em 2015.1, e peguei o começo dessa discussão na universidade, o início da formação dos coletivos de estudantes negros”, conta. “Me marcou muito estar na universidade no início desta experiência, porque as pessoas ainda estavam se adaptando, algumas discussões ainda estavam tomando força e eu pude participar dessas movimentações formando o coletivo de estudantes negros e negras da Biologia, que promovia eventos e fez parte do início da discussão das Comissões de Heteroidentificação”, completa.
Para Jorge Marçal, racismo institucional não é algo que se relaciona somente ao contexto interno das instituições, mas ao modo como as instituições respondem aos desafios que estão postos, de maneira geral, na sociedade. “O contexto político em que aprovamos as cotas raciais era outro, em relação ao que estamos agora. É um contexto de desmonte das universidades públicas e da assistência estudantil”, lembra. Jorge acredita que o reconhecimento institucional das pessoas pretas e pardas ainda precisa aumentar. “Nos conselhos superiores, ainda é uma presença negra muito tímida. Nas categorias docentes, essa representatividade ainda é menor. É uma discussão para se enfrentar com mais veemência”, reflete.
Na coordenação da APG, Jorge vê desafios no que considera o último reduto da universidade em que não se tem, de maneira institucionalizada para todos os programas da pós, as cotas raciais. “Temos que garantir que a Lei de Cotas continue existindo na reavaliação que será feita no ano que vem. A universidade precisa tomar isso como uma pauta sua, não só do movimento negro, dos coletivos”, considera. Em 2022, quando a lei completa dez anos, o Congresso Nacional vai rediscutir a legislação. Para ele, os dados do levantamento do G1 são cristalinos, e mostram o quanto a universidade mudou. “Havia também aquela preocupação com a redução da excelência da universidade, e isso não se concretizou. Os cotistas, de maneira geral, têm um desempenho melhor que os não cotistas”, diz. “Os dados mostram que as cotas são positivas para a universidade, e retirá-las seria um balde de água fria”, completa.
Prestes a se formar em Publicidade e Propaganda pela Escola de Comunicação, Nicolle Araújo sentiu o impacto da Lei de Cotas apenas quando ingressou na universidade, em 2017. “Antes de fazer pré-vestibular e pensar em entrar na faculdade, não entendia muito bem a importância das cotas. Não sabia o real peso disso tudo. Depois que entrei, hoje, quase me formando, consigo sentir a importância das cotas serem inseridas no processo de admissão”, conta. “Por mais que eu tenha tido uma educação bem estruturada, tive o privilégio de estudar em colégios públicos muito bons, consigo ver que se não tivesse usado a cota, talvez não conseguisse entrar”, afirma. Nicolle reconhece que a mudança nas salas de aula é perceptível, mas acha que ainda há muito a ser melhorado. “Houve um aumento de diversidade, tanto no quesito renda como na raça, na universidade como um todo. Porém vejo muitas pessoas que usam o benefício de maneira errada, fraudadores, o que ainda dificulta a entrada de pessoas que realmente têm esse direito”, acredita.
O professor Vantuil Pereira, diretor do NEPP-DH e um dos idealizadores do Coletivo de Docentes Negros e Negras da UFRJ, também sente o impacto das cotas na sala de aula. Quando começou a lecionar na universidade, em 2010, havia apenas três alunos negros na matéria que ministrava no curso de Relações Internacionais. Hoje, a realidade é outra. “Há uma combinação das cotas com o Sisu e o Reuni. É um movimento que aconteceu todo junto e levou ao crescente aumento de alunos. Em termos de professores, também está acontecendo, mas em menor proporção. Uma coisa que percebo é que há um grande numero de professores negros na universidade por conta do Reuni. Se agora temos cerca de 15% de professores negros, é por conta do Reuni, gente que saiu da pós-graduação entre 2005 e 2008, em um contexto de formação anterior às cotas. E agora temos essa feliz combinação, quando comparamos com o número de alunos”, diz.