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PASSAPORTE DE VACINAS: VERSÃO NOVA PARA VELHAS PRÁTICAS DE SAÚDE PÚBLICA?

WhatsApp Image 2021 10 29 at 09.40.561LIGIA BAHIA
Professora do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ

À medida que a pandemia de covid-19 entra em sua próxima fase, o fervor para retornar à normalidade e a comprovação da eficácia das vacinas intensificaram o debate sobre o chamado “passaporte de vacina” - certificações de vacinação que permitem reduzir restrições de saúde pública para seus portadores. O governo Biden, o governo britânico e a União Europeia estão atualmente considerando sua viabilidade; Austrália, Dinamarca e Suécia se comprometeram com a implementação; e Israel, que lidera o mundo em vacinação per capita, está emitindo “passes verdes” para residentes vacinados. Embora a elegibilidade para viagens tenha sido o foco principal até agora, algum uso de passaportes para regular o acesso a reuniões sociais e recreativas, locais de trabalho ou escolas parece iminente.  Os passes verdes de Israel, por exemplo, permitem a entrada em locais restritos, como hotéis, academias, restaurantes, teatros e locais de música, e o “excelsior Pass” de Nova York franqueia o acesso a teatros, estádios e grandes eventos.  
O fundamento lógico da certificação de vacina é que as restrições à saúde pública, limitadoras de atividades consideradas socialmente valiosas (em termos econômicos e culturais), devem ser adaptadas a um risco verificável. Em geral, essa adaptação não é controversa. Ninguém discute sobre o progresso obtido com exigências de certificação de vacinas para matrícula no ensino fundamental. Entretanto, o uso de passaportes de vacina contra a covid-19 tem sido objeto de controvérsias. O debate sobre o tema está atravessado por concepções contraditórias e uma gama de argumentos concorrentes.
Sinteticamente podem ser elencados cinco questionamentos sobre a pertinência da exigência do passaporte vacinal contra a covid-19: 1) seria  moralmente questionável, em função da oferta mundial de vacinas permanecer desigual, privilegiar as pessoas que tiveram a sorte de antecipar suas coberturas vacinais; 2) ainda que haja abundância de vacinas, as taxas de vacinação entre minorias raciais, étnicas e segmentos populacionais de baixa renda provavelmente serão mais baixas; 3) a extensão da proteção conferida pela vacinação, particularmente contra novas variantes, bem como o potencial de transmissão viral de vacinados ainda estão sendo estudados; 4) privilegiar os vacinados pode penalizar adultos e crianças dependentes de familiares com objeções à vacinação; 5) está sendo elaborada pela OMS, mas ainda não existe uma abordagem única para certificação da vacinação.
Em sentido oposto, acredito que tais objeções não justificam a proibição de todo e qualquer uso da certificação de vacinas. O acesso às vacinas está aumentando rapidamente, houve esforços para alcançar populações vulneráveis. Consequências negativas para quem recusou a vacinação são justas, especialmente quando atitudes individuais ameaçam a coletividade. Embora seja necessária uma melhor compreensão da natureza e do grau de imunidade que as vacinas disponíveis conferem, é evidente que o risco — especialmente para doenças graves — é drasticamente reduzido. E uma certificação confiável e acurada é relevante, mas não deve postergar a adoção de uma política imediata e sensata.
Contudo, não se trata apenas de decidir entre extremos — tornar obrigatória ou proibir a certificação. Dois elementos são fundamentais à calibragem da exigência do passaporte: quem exige a comprovação da vacinação e a natureza das atividades que serão acessíveis. Quando instituições governamentais condicionam a participação em atividades essenciais, como trabalho ou educação, a certificação funciona essencialmente como um programa de vacinação obrigatório. O conceito de “passaporte” se aplica mais direta e obviamente a viagens, onde as políticas para estabelecer padrões para a documentação requerem acordos entre governos e empresas envolvidas com transporte de passageiros. Já houve tempo em que mostrar a cicatriz vacinal da imunização contra a varíola era requerida para o ingresso em trens.
Quando se trata de eventos e locais sociais privados, o controle governamental pode se tornar menos potente. Bares, restaurantes, academias de ginástica, entre outros, não podem confundir o uso de certificação de vacinas com barreiras de entrada por discriminação ilegal. Similarmente, as regulamentações governamentais são imprescindíveis para que normas privadas estimulem a vacinação e assegurem direitos para aqueles cujas vacinas não são recomendadas.
Os dois anos de experiência sob pandemia nos ensinaram que haverá alterações nas normas de exigência de certificação da vacina. Determinar por quanto tempo as vacinas funcionam e a proteção contra as novas variantes será fundamental. Mas essas incertezas não são motivos para bloquear orientações que ampliem as perspectivas de assegurar a proteção da saúde pública com o retorno à vida pré-pandêmica.

 

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