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Estudar, entender e valorizar os processos científicos é cada vez mais necessário. Com esse propósito aconteceu o último CineAdUFRJ, no dia 29, para debater o tema “Negacionismo da Vacina”, a partir de três filmes que abordam, de diferentes perspectivas, alguns desdobramentos dessa pauta tão relevante para os dias de hoje. Os filmes selecionados foram: “Sonhos Tropicais”, de André Sturm (2001), “Contágio”, de Steven Soderbergh (2011), e “Vaxxed”, de Andrew Wakefield (2016). Com cerca de 20 participantes, o cineclube contou com a presença da epidemiologista Lígia Bahia, professora da Faculdade de Medicina da UFRJ, da historiadora Eliza Vianna, do Instituto Federal de Alagoas (IFAL), e de Francisco Carbone, crítico do site Cenas de Cinema, para debater as obras.
A professora Lígia Bahia traçou um paralelo entre os posicionamentos de cada filme, e chamou a atenção para a necessidade de se levar o conhecimento médico ao debate público com propriedade. “As vacinas têm efeitos adversos, com certeza têm. Então os princípios das vacinas têm que ser debatidos com a população”, afirmou. Por isso, como médica, ela se atentou a esclarecer especificamente alguns pontos do filme “Vaxxed”, documentário controverso que defende a ligação da vacina “tríplice viral” com o autismo. “Não há nenhuma comprovação científica da ligação entre as vacinas e o autismo. O que também não quer dizer que as vacinas não tenham efeitos colaterais”.
Segundo a epidemiologista, realmente existe um aumento no número de crianças autistas nos últimos anos, mas ainda não há uma explicação clara para esse fenômeno. “É um número que aumentou, mas em todos os países do mundo. Então não há uma explicação cultural para isso, e as buscas por essa resposta continuam”, disse. Ainda assim, a professora ressaltou que o documentário exerce um papel relevante, pois fomenta discussões necessárias para que a população tenha cada vez mais segurança no desenvolvimento científico, como a questão das contradições na indústria farmacêutica. “Com a covid-19 nós avançamos nesse debate, pois se estabeleceu essa noção de que a vacina é um bem público, e não pode simplesmente ter o preço que a indústria farmacêutica quer”, lembrou Lígia.
Eliza Vianna, professora do IFAL, enfatizou que a Ciência e a Medicina compõem a nossa sociedade, e não existem à parte dela. “Por isso é importante que a gente dessacralize a Ciência e entenda os inúmeros aspectos contidos na produção do conhecimento médico-científico, como essas contradições da indústria farmacêutica”, comentou. A partir do filme brasileiro “Sonhos Tropicais”, que aborda a figura de Oswaldo Cruz de forma heróica, Eliza reforçou que o médico não precisa ser visto como um “salvador” para que seja devidamente valorizado. “No atual contexto de vacinação, algumas pessoas têm falado da ‘fé na Ciência’. Mas eu não acho que se trate de fé na Ciência, e sim confiança no trabalho do cientista”, destacou.
Reposicionar o lugar da Ciência diz respeito também a entender efetivamente o que se enquadra como “negacionismo”, ou seja, negação da Ciência. “O que o documentário ‘Vaxxed’ faz não é negacionismo, é uma falsa simetria. Ele pega aleatoriamente alguns elementos do senso comum e os joga juntos para construir uma narrativa intencionada”, apontou Eliza. A professora evidenciou que o crescimento do discurso antivacina, especialmente nos Estados Unidos e na Europa, se deve muito ao contexto histórico, em que toda a compreensão de coletividade está ruindo. “Desde os anos 1980 vem sendo construída uma narrativa neoliberal, de que as pessoas precisam ter e ser a sua própria empresa. Assim, elas também passam a querer decidir sobre a saúde dos seus filhos”, disse. Segundo ela, a vacinação precisa ser vista como uma questão coletiva, e não apenas uma escolha individual.
O crítico Francisco Carbone avalia que “Contágio”, apesar de ter muitos personagens, é um filme carregado de estereótipos, que não consegue retratar com fidelidade e abrangência a questão da pandemia. “É um filme muito inocente, quase irresponsável. Ele diminui falas, contextos e sequer dá nome a alguns personagens asiáticos, jogando tudo dentro de um esquema de romantização”, afirmou. Para ele, o brasileiro “Sonhos Tropicais” conversa melhor com o momento atual. “Apesar de ser bem quadrado na sua construção biográfica, me surpreendi com a capacidade do filme de provocar um olhar particular para muitas coisas que ecoam hoje em dia”, acrescentou. Perguntado sobre o papel do crítico de cinema no combate ao negacionismo, Francisco ressaltou que os textos naturalmente devem debater as questões do mundo em que estão inseridos. “A minha perspectiva antinegacionista naturalmente entra em pauta como reflexão nas críticas cinematográficas que eu escrevo”, finalizou.

FOGO NA CINEMATECA
O início do debate foi marcado pela triste notícia do incêndio em um galpão da Cinemateca Brasileira, na Zona Oeste de São Paulo. O galpão abrigava documentos relativos à administração do cinema brasileiro e algumas películas, mas ainda não se sabe a extensão dos danos e o que foi perdido no fogo. Segundo os bombeiros, o incêndio começou durante a manutenção do sistema de ar-condicionado no terceiro andar do galpão, justamente numa das salas do acervo histórico.
“É a chamada crônica da morte anunciada. Na mesma semana em que queimou uma placa do sistema do CNPq, acontece esse incêndio. A metáfora do “estamos queimando no inferno” nunca pareceu tão certa”, disse Eleonora Ziller, presidente da AdUFRJ, que participou do debate.
A tragédia vinha sendo anunciada pelo Ministério Público Federal (MPF) que, em julho do ano passado, ajuizou uma ação civil contra a União por conta dos impasses na gestão do espaço diante da “comprovada aceleração da degradação do acervo e do perigo real de incêndio”. Em audiência realizada no último dia 20, procuradores do MPF e representantes do Audiovisual alertaram o governo federal, responsável pela Cinemateca Brasileira, para o risco de incêndio. Nove dias depois, o fogo expõe o descaso do governo Bolsonaro com a cultura brasileira.

Para assistir e refletir - Os três filmes que serviram de pano de fundo para a edição “Negacionismo da Vacina” do cineclube foram:

1.  “CONTáGIO” (Steven Soderbergh, 2011)

WhatsApp Image 2021 07 31 at 10.07.372Contágio (EUA, 2011) retrata a epidemia de um vírus transmissível pelo ar, que mata os infectados em poucos dias. A rápida propagação incita uma sensação de urgência na comunidade médica mundial, que começa a busca pela cura do vírus e por controlar o pânico que se espalha com mais velocidade que a própria doença. Filmado em vários pontos do mundo, incluindo Hong Kong, São Francisco, Abu Dhabi, Londres e Genebra, o longa também acompanha personagens comuns, na luta por sobrevivência em meio à tragédia sanitária. A direção é de Steven Soderbergh e conta com um elenco formado por quatro vencedores do Oscar (Marion Cotillard, Matt Damon, Gwyneth Paltrow e Kate Winslet), além de três indicados (Laurence Fishburne, Jude Law e John Hawkes)

2.  “sonhos tropicais” (André Sturm, 2001)

WhatsApp Image 2021 07 31 at 10.07.371Primeiro longa-metragem de André Sturm, “Sonhos Tropicais” é um filme brasileiro de 2001 que aborda o contexto da primeira campanha de vacinação do Rio. Passado no início do século XX, o filme mostra a chegada ao Brasil do sanitarista Oswaldo Cruz, após anos de estudo na Europa, e da jovem Esther, polonesa prometida a se casar. Enquanto a jovem descobre que a proposta de casamento era uma farsa, o médico começa sua ascensão na Medicina. Baseado em livro de Moacyr Scliar, “Sonhos Tropicais” apresenta os esforços de Oswaldo Cruz para conter a epidemia da febre amarela e da peste bubônica, além de liderar a campanha de vacinação contra a varíola. A obrigatoriedade da vacina, entendida como uma medida de tortura, foi o estopim para os protestos da “Revolta da Vacina”, representados no filme.

3.  “vaxxed” (Andrew Wakefield, 2016)

WhatsApp Image 2021 07 31 at 10.07.36O documentário “Vaxxed: From Cover-Up to Catastrophe” defende o polêmico estudo que aponta uma ligação entre a vacina MMR (sarampo/caxumba/rubéola) e o autismo. O filme alega que o CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças), órgão governamental encarregado de proteger a saúde dos cidadãos estadunidenses, destruiu propositalmente dados que comprovariam a tese antivacina. Lançado em 2016, “Vaxxed” é dirigido por Andrew Wakefield, o ex-médico e ex-pesquisador que escreveu o artigo que deu origem à controvérsia. Publicado na revista médica britânica “The Lancet” em 1998, o estudo que estabelece uma suposta relação entre a vacina tríplice viral e o autismo foi reconhecido como fraudulento pela própria revista em 2010.

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