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WhatsApp Image 2021 07 02 at 22.35.03ANDRESSA ZUMPANO/ARTICULAÇÃO DAS PASTORAIS DO CAMPOMais de 500 anos de luta ameaçados por uma decisão. O projeto de lei 490/2007, aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, incita um retrocesso aos tempos de colônia na política indigenista brasileira. Desde a chegada dos europeus à América, os povos indígenas resistem às constantes tentativas de apropriação das terras que tradicionalmente ocupam. O direito desses povos à terra foi reafirmado no artigo 231 da Constituição Federal de 1988, momento marcado pelo ato do líder indígena Ailton Krenak, que pintou seu rosto com a tinta preta do jenipapo enquanto discursava no plenário da Assembleia Nacional Constituinte. Agora, o possível encaminhamento do PL 490 põe em risco os já escassos direitos territoriais então conquistados pelos povos originários do país.
“O PL 490 responde apenas a interesses imediatos, daqueles que se consideram prejudicados pela demarcação das terras indígenas e querem a todo preço modificar essas normas”, comenta João Pacheco, professor do Departamento de Antropologia do Museu Nacional da UFRJ. A proposta foi apresentada em 2007 no Congresso, e recusada na época pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara. Retomado pela CCJ, o projeto foi aprovado por 40 votos contra 21, no último dia 23. Na ocasião, o presidente da Câmara, Arthur Lira, atrasou em três horas o início da sessão no plenário para que a discussão na Comissão não fosse suspensa. “Isso transparece a pressa com que está sendo encaminhado todo esse processo, que reflete os interesses do agronegócio”, destaca João.
Segundo ele, o projeto propicia que empresas privadas, como mineradoras, possam fazer acordos para usufruir dessas terras indígenas. “Esses espaços estarão ainda mais fragilizados perante aqueles que são totalmente contrários aos interesses indígenas”, aponta. Mesmo as terras indígenas já demarcadas são alvos recorrentes de invasões, a exemplo do território Yanomami entre os estados do Amazonas e de Roraima, onde se estima a presença de mais de 20 mil garimpeiros. “A terra é uma parte fundamental para assegurar a vida social e cultural dos povos indígenas, mas ela exige também ações de proteção dessas áreas, para impedir a invasão por parte de pessoas em busca de recursos”, completa o professor. O PL modificaria tanto os processos de reconhecimento e demarcação, quanto a forma do usufruto e da gestão dessas terras. No entanto, as populações que podem ser diretamente impactadas pela lei ainda não foram ouvidas pelas comissões.
“Esse projeto faz parte de um conjunto imenso de proposições, que busca revisar e reduzir as garantias adquiridas pelos povos indígenas no que diz respeito ao direito à terra”, explica Oiara Bonilla, professora de Antropologia e Etnologia Indígena da UFF. Ela ressalta que o PL, que contém mais de onze propostas apensadas, propõem modificar uma cláusula pétrea através da votação de uma lei ordinária no Congresso. “O interesse é modificar o artigo 231 sob o pretexto de regulamentá-lo. É um ato inconstitucional, que se utiliza de uma ficção jurídica da bancada ruralista, o marco temporal”, diz.

PRESENÇA IMEMORIAL
O conceito de “marco temporal” surgiu no julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) do caso Raposa Serra do Sol, terra indígena localizada ao norte de Roraima entre os municípios de Pacaraima, Normandia e Uiramutã. “O marco temporal defende que as populações indígenas só teriam direito às terras que reivindicam se já estivessem nessa terra no dia da promulgação da Constituição. Ou seja, elas têm que provar que já ocupavam essa terra, ou batalhavam judicialmente por ela, em 5 de outubro de 1988”, conta Oiara.
Além da presença imemorial dos povos indígenas no território brasileiro, muito anterior ao Estado, há diversas contradições no argumento do marco temporal. “Se você decreta que uma terra é indígena só pela ocupação dela no momento da promulgação da Constituição, você exclui populações que foram deslocadas ou invisibilizadas historicamente”, lembra a antropóloga. Isso afetaria também todos os povos que não têm registros da sua presença no território em 1988, ou da luta travada naquela época. “Antes de 1988, os povos indígenas estavam sob tutela, então não podiam processar o Estado. E eram populações muito silenciadas, o que torna muito difícil encontrar provas materiais desses conflitos. Exigir essas provas agora é algo muito perverso”, critica.
Em 2013, a maioria dos ministros do STF apontou que a tese do marco temporal não deveria ser aplicada automaticamente em outros casos. Apesar disso, no governo Temer, a Advocacia-Geral da União (AGU) emitiu o Parecer 001/2017, vinculando a decisão como válida para todos os outros casos. O Ministério Público Federal (MPF) estima que 27 processos de demarcação estão parados desde então. Contudo, em maio deste ano, o ministro Edson Fachin deferiu uma medida cautelar, que suspendeu os efeitos do Parecer de 2017. A medida cautelar é um procedimento usado pelo Judiciário para prevenir, conservar ou defender direitos.
Outro ponto que o Projeto de Lei contém é a flexibilização da política indigenista com relação aos povos isolados, ou de recente contato. “O Brasil é um exemplo na política de não contato, que foi sendo construída ao longo dos últimos 30 anos. É uma política que procura proteger as populações isoladas sem estabelecer contato com elas”, afirma Oiara. Ela ressalta o acúmulo de experiências obtido ao longo dos anos até se chegar à realização dessa política como ela é feita hoje. “Esse PL propõe modificar isso, dando direito ao Estado de contatar essas populações por motivos de saúde pública, para implementação de políticas públicas”.

AÇÃO NO STF
Os povos indígenas agora aguardam pela votação no Supremo do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, que discute a reintegração de posse obtida pelo governo de Santa Catarina, que quer expulsar o povo Xokleng de uma área reivindicada pelo estado. Em 2019, o STF reconheceu por unanimidade a repercussão geral do julgamento, o que significa que a decisão que for tomada servirá como referência para todos os casos envolvendo terras indígenas no Brasil. Dessa forma, a Suprema Corte poderá garantir uma solução judicial comum para os conflitos em torno das demarcações. O ministro Fachin, que é relator do processo de repercussão geral, suspendeu até o final da pandemia de covid-19 todos processos judiciais que poderiam resultar em despejos ou na anulação de demarcações de terras indígenas.
Marcado para o dia 30 de junho, o julgamento do RE 1.017.365 precisou ser adiado. “Outros processos tiveram prioridade na sessão, mas o presidente do STF, ministro Luiz Fux, disse que este processo de repercussão geral retornará à pauta em agosto”, informou Luiz Eloy Terena, assessor jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), em vídeo pelo Instagram. O advogado indígena é um dos autores da carta “Levante Pela Terra”, entregue pela APIB no dia 22 de junho ao ministro Luiz Fux, que aponta a inconstitucionalidade do PL 490. “Seguimos juntos na mobilização contra o marco temporal, reafirmando o direito originário dos povos indígenas aos seus territórios tradicionais”, declarou Eloy Terena.
No momento, o PL 490 aguarda votação no plenário da Câmara, que também deve ocorrer em agosto, após o recesso do Congresso Nacional. Enquanto isso, a luta é protagonizada por indígenas dentro e fora do parlamento. Joenia Wapichana (Rede-RR), primeira deputada federal indígena no Brasil, é a principal representante dos povos originários na política. Simultaneamente, indígenas de diferentes povos realizam manifestações diárias em frente ao Congresso e em todo o país. No dia 22, véspera da aprovação do PL pela CCJ, a Polícia Militar de Brasília reprimiu violentamente um dos atos, deixando mais de dez feridos.

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