facebook 19
twitter 19
andes3
 

filiados

WhatsApp Image 2021 05 21 at 22.45.38No dia 3 de maio, a repressão da polícia israelense a uma manifestação de apoio a famílias palestinas despejadas de suas casas no bairro de Sheikh Jarrah, em Jerusalém Oriental, deu início a mais um conflito armado na longa jornada de embates entre árabes e judeus no Oriente Médio. O rastilho de pólvora rapidamente se espalhou, com novos protestos reprimidos na Mesquita de Al-Aqsa, na Cidade Velha de Jerusalém, um local sagrado para o Islã, durante o período do Ramadã, o mais importante para os muçulmanos, este ano celebrado entre 13 de abril e 12 de maio.
Até o cessar-fogo que entrou em vigor nesta sexta-feira (21), o conflito deixou 232 palestinos mortos na Faixa de Gaza, sendo 65 crianças, e 12 mortos em Israel, entre eles duas crianças. A complexidade de um embate tão antigo quanto recorrente deixa mais dúvidas do que certezas em relação ao futuro. O Jornal da AdUFRJ traz duas visões sobre o conflito. Direto de Tel Aviv, em Israel, o jornalista Daniel Hippertt fala sob a perspectiva de quem vive em território israelense. E a advogada Havana Marinho, estudiosa da causa palestina, aborda o cotidiano dos habitantes da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. Em comum, ambos ainda acalantam o sonho de paz na região.

Além da disparidade no número de vítimas, o conflito encerrado pelo cessar-fogo desta sexta-feira (21) evidenciou duas realidades bem distintas. Do lado de Israel, um dos exércitos mais poderosos do mundo e uma política de ocupação de territórios cada vez mais violenta. Do lado da Palestina, violações cotidianas de direitos da população — extensivas até aos árabes-israelenses que vivem em Jerusalém Oriental e têm cidadania, como as famílias despejadas de Sheikh Jarrah. Os dois relatos que o Jornal da AdUFRJ passa a descrever mostram o desequilíbrio entre essas duas realidades.
“A sirene ecoou. Pela primeira vez na minha vida, eu estava sendo avisado de que mísseis estavam vindo em minha direção: não foi uma grande estreia, devo confessar. Há uma força crua e quase indescritível que te leva completamente neste tipo de momento... A frequência cardíaca aumenta, a adrenalina atinge o seu pico, os olhos estão bem abertos, tudo parece se mover em câmera lenta, direto de algum filme Matrix. O próximo passo é esquecer: quem você é, o que estava fazendo, falando, pensando, possivelmente por estar ansioso. No final, tudo se resume ao instinto de sobrevivência e à emoção de chegar, o mais rápido e ordenadamente possível, ao lugar seguro mais próximo”.
WhatsApp Image 2021 05 22 at 10.48.49DanielO relato é do jornalista brasileiro Daniel Hippertt, de 28 anos, e foi postado em seu blog (https://danielhippertt.medium.com/) em 15 de maio. Naquele sábado, um ataque israelense transformou em escombros o edifício onde ficavam os escritórios da agência de notícias norte-americana Associated Press e da emissora catari Al Jazeera na Faixa de Gaza, enclave palestino de 41 quilômetros de extensão por de seis a 12 de largura junto ao Mar Mediterrâneo, onde dois milhões de palestinos vivem isolados por terra, mar e ar por Israel.
O “lugar seguro” ao qual Daniel se referiu é um “quarto do pânico” dentro do apartamento que divide com outros sete jovens em Tel Aviv, em Israel. A sirene abre um protocolo de segurança em que os habitantes da cidade litorânea, próxima à Faixa de Gaza, devem se proteger em abrigos pré-definidos, enquanto o Domo de Ferro, sistema antimísseis de Israel, é acionado para interceptar os foguetes lançados de Gaza pelo Hamas, grupo islâmico que comanda o enclave. “Assim que trancamos a porta, só ouvíamos as bombas explodindo lá fora. Você não sabe quão perto ela está de você, qual o seu poder destrutivo. Moro numa república com mais sete rapazes, um deles não estava em casa. Todos naquele quarto tinham entre 23 e 28 anos e ficamos olhando uns para os outros como se fôssemos sete meninos”, recorda Daniel.

ROTINA DE VIOLAÇÕES
Se o Domo de Ferro consegue interceptar, em média, 90% dos foguetes lançados pelo Hamas em direção a Tel Aviv, os mísseis disparados por Israel contra Gaza parecem acertar 100% nos alvos. Pelo menos 450 prédios foram destruídos ou seriamente danificados no enclave nos últimos dias. Mesmo após o cessar-fogo, a rotina de palestinos sendo desalojados de suas casas vai prosseguir, como parte da política de expansão das colônias israelenses nos territórios ocupados. Em 11 de janeiro deste ano, o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, ordenou a construção de 800 moradias para colonos na Cisjordânia. Uma realidade que a advogada Havana Marinho conhece bem. Em 2015, ela concluiu seu doutorado em Economia Política Internacional na UFRJ com a tese “Ocupação israelense na Palestina: colonialidade, geopolítica e violação de direitos”. Como parte da pesquisa, ela passou 25 dias no campo de refugiados de Aida, em Belém, na Cisjordânia.
WhatsApp Image 2021 05 22 at 10.48.49 1Havana“Entrevistei muita gente, inclusive estudiosos judeus que não são sionistas e que têm uma visão crítica em relação à ocupação militar de Israel na Palestina. Meu olhar foi na perspectiva da violação de direitos e, nesses territórios ocupados, há regras do Direito Internacional que Israel nunca cumpriu. Uma delas é que, quando você ocupa um território, não pode levar população do seu país para lá. E é isso que acontece há muito tempo com o avanço das colônias de Israel”, afirma Havana, de 39 anos, pesquisadora do Laboratório de Direitos Humanos da UFRJ (LADIH/UFRJ) e integrante da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ. Havana, que também é jornalista, tentou entrar na Faixa de Gaza, mas não obteve autorização. “Na Cisjordânia, me apresentei como uma peregrina, não podia falar nada sobre a minha pesquisa porque Israel faz um cerceamento de conteúdo. Eles tentam dominar a narrativa de acordo com a perspectiva deles, então qualquer pessoa que tenha como objetivo pesquisar a Palestina para trazer uma outra visão enfrenta dificuldades”.
O despejo de famílias em Jerusalém Oriental, que vem ganhando contornos de guerra civil, é uma realidade cotidiana nos territórios ocupados, segundo a advogada e pesquisadora. “Eu vi isso em Belém. Israel promove as conhecidas demolições para fazer novos assentamentos e, se você não sair de casa, ela é demolida com tudo o que tem dentro”, diz ela, que conseguiu fotografar uma dessas demolições. Teve de arquivar as fotos em um cartão de memória e despachá-lo dentro de um livro, de navio, para o Brasil. “Antes do embarque da volta, se você esteve nos territórios ocupados, o Serviço de Imigração de Israel vasculha tudo, faz um interrogatório, é muito arriscado”.
Daniel tem a perfeita noção de que está do lado mais seguro do confronto. “A sirene, o medo dos foguetes sobre Tel Aviv, isso foi uma situação atípica. Eu preciso ter a noção dos meus privilégios, porque isso acontece diariamente em muitos lugares e eu posso imaginar o nível de terror. Aqui nós temos um Domo de Ferro que intercepta os mísseis e um quarto de pânico onde eu posso me abrigar”, diz ele, que está em Israel por conta de um programa destinado a jovens judeus latino-americanos, por meio do qual faz cursos e trabalha em uma start-up da área de Educação.
O jornalista carioca tem uma rotina normal em Tel Aviv. “Se o Brasil foi o país que pior lidou com a pandemia, Israel foi o oposto. Hoje, eu trabalho sem máscara e posso andar na rua sem ela, que só é requisitada em transportes públicos. Cheguei em 6 de abril, fiz um teste no aeroporto e passei por uma quarentena obrigatória. Já tomei as duas doses da vacina e tenho um green passport, que me dá acesso a qualquer lugar”, conta ele, que não imaginava a eclosão de um conflito um mês depois da sua chegada.
“Tel Aviv é um dos principais alvos, mas é também um dos locais mais seguros de Israel. Há sete anos não havia aqui a necessidade de usar os abrigos antimísseis. É traumático, claro. Estou num grupo de 90 latino-americanos e cada um reage de um jeito. Tem gente que acusa o golpe, não consegue sair de casa. Eu tentei seguir com a vida. Ontem eu fui à praia, saí para jantar”, relata Daniel.

SONHO DE PAZ
A vida normal nos territórios ocupados é bem diferente. Segundo Havana, a segregação dos palestinos é crescente. “Participei de alguns protestos semanais, que são feitos em povoados e vilarejos palestinos todas as sextas-feiras há 30, 40 anos, para denunciar a ocupação. Alguns são lúdicos, outros são mais diretos e esses são reprimidos com violência. Em um desses protestos, com crianças e idosos, os soldados israelenses primeiro usaram gás lacrimogênio para dispersar as pessoas. Depois vieram com balas de borracha e, por fim, com munição letal. A repressão é constante”, diz a advogada.
Havana tratou dessas violações de direitos em sua tese, e acredita que elas não vão cessar. “O controle de Israel impõe essa rotina de violência. Na Cisjordânia, para você se deslocar, há vários checkpoints. Se um palestino mora em Belém e quer visitar alguém em Nablus, no norte do território, tem que passar por vários checkpoints nos quais pode ou não ser autorizado a passar. Em geral, não passa. Em Hebron, onde estive, a ocupação dos colonos se dá dentro da cidade. Algumas outras cidades palestinas têm colônias ao redor, há um certo distanciamento. Mas em Hebron há famílias palestinas vivendo ao lado de famílias de colonos, e elas andam em calçadas opostas na rua. Essa segregação se dá no dia a dia. Nas colônias, há água filtrada 24 horas por dia. Na Cisjordânia, você sabe de longe se uma casa é palestina porque ela tem no telhado um tanque para armazenamento de água, porque o abastecimento não é regular”, relata.
Mesmo descrentes quanto a uma solução que ponha fim aos conflitos entre israelenses e palestinos, Daniel e Havana ainda nutrem a esperança de paz na região. “Eu gostaria que os direitos dos palestinos fossem reconhecidos, com um Estado-nação palestino. Adoraria que todo e qualquer extremismo ou fanatismo religioso fosse abolido, seja de que vertente for. A intolerância é o principal problema. Sonho com um mundo onde as pessoas percebam que há mais coisas em comum do que diferenças”, defende Daniel. “Se a gente não se alimentar de esperança, o que fazer? Eu alimento sim, mas não será fácil. As ondas de violência vão e voltam, até o próximo cessar-fogo, mas a expansão das colônias é contínua. Um cessar-fogo só acaba com o conflito militar aos olhos do mundo. Mas a degradação diária dos palestinos continua. E longe dos olhos do mundo”, lamenta Havana.

Topo