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WhatsApp Image 2021 01 28 at 23.23.29 1MARIANA PATRÍCIO FERNANDES
Professora adjunta do Departamento de Ciência da Literatura

No domingo de manhã, antes de ficar completamente consciente, acordei pensando na polêmica, que acompanhei de longe e que se destacou na minha vigília de imagens confusas em meio à tempestade de notícias que desabam sobre as nossas cabeças nos últimos tempos. O famoso youtuber Felipe Neto fez um tuíte criticando o ensino de Literatura no Ensino Médio.
Dentro de uma corrente na rede social que se chama “crie uma treta literária e saia”, Neto postou que Machado de Assis e Álvares de Azevedo não são para adolescentes e que seria errado forçá-los à leitura nas escolas. Forçar qualquer coisa que seja nunca pode dar certo, mas por que é que o youtuber acha que esses autores não são para adolescentes?
WhatsApp Image 2021 01 28 at 23.23.29A voz do Felipe Neto tem sido uma constante aqui em casa durante essa infinita quarentena. No seu canal de YouTube, ele joga online um jogo chamado Minecraft no qual, pelo que entendi, a ideia é construir um mundo onde tudo é quadrado: cachorro quadrado, nuvem quadrada, imagine algo e será quadrado. Nesse mundo idílico, uns zumbis de cabeça quadrada também aparecem de vez em quando, não se entende bem porquê, já que a paisagem parece pacífica.
Enquanto joga, ao mesmo tempo em que destrói zumbis e passeia com seu simpático cachorrinho quadrado, ele vai comentando sobre a atualidade , fala muito em dinheiro, ficar rico e etc, critica o Bolsonaro.
O que chama a atenção no Minecraft é sua estranheza. Não há o menor desejo de se conectar com a realidade. Não cessa de me espantar o fascínio das crianças por esse universo pixelado. E essa estranheza é certamente o que faz o jogo interessante.
Parece que o youtuber conseguiu a proeza de capitalizar criando uma comunidade de pequeninos que compartilham do fascínio por esse mundo estranho, não só do universo quadrado, mas também esse dos adultos, da política, da economia, da grana.
Durante a pandemia, então, a solidão das crianças pôde encontrar uma fuga nesse outro mundo compartilhado, capitaneado pelo Peter Pan milionário, que ensina como é viver nesse mundo louco, ao mesmo tempo em que joga Minecraft.
É notável que, nesses tempos turbulentos, Felipe Neto consiga criar esse canal entrelaçando jogo, reflexão e entretenimento. Entretanto, penso que existem várias maneiras de aprender a viver na estranheza muitas vezes violenta do mundo, e a literatura certamente também é uma delas.
Há, na minha opinião, uma leitura equivocada de que a escola ou qualquer conteúdo dedicado aos jovens precisa ensinar às crianças e adolescentes questões da realidade, como se a realidade fosse algo mensurável, unitário e imutável
Às vezes, esse desejo de concretude faz alusão a uma interpretação do método Paulo Freire que também não concordo.
O que estamos vendo, mais do que nunca, é que aprender a lidar com a realidade é aprender a lidar com o que ela tem de bizarro, de estrangeiro, reconhecer a alteridade da qual, inclusive, somos parte. Apropriar-se das palavras e ligá-las ao cotidiano significa disputar a alienação da própria vida produzida por esse mundo mercadoria onde os objetos e os sentidos que circulam não são menos estranhos que as palavras.
Aprender a ler e a escrever é também poder estar nesse mundo de coisas estrangeiras, em que somos todos estranhos diante de uma norma que, para incluir alguns, precisa excluir a imensa maioria.
Fala-se mal do ensino de literatura e história na escola, mas a verdade é que ele me salvou e acredito que a muita gente, quando a solidão profunda de se sentir uma criança /jovem deslocada em um mundo onde tudo parece hostil podia ser enfrentada abrindo um livro. Como um portal pra longe dali. Pra mim, quanto mais longe no tempo, melhor. Aprendi com Oscar Wilde que era possível odiar as pessoas que amávamos e, com Machado de Assis, que era possível amar as pessoas que odiamos. Foi uma virada e tanto e imagino que minha adolescência teria sido muito pior sem eles, com as quais me sentia acompanhada diante do profundo sentimento de desajuste.
Verdade que José de Alencar sempre foi meio bizarro, mas também de maneiras tortas ensinou muito sobre o modo esquizofrênico de amar do homem branco rico brasileiro, com argumentos insanos como “não estamos preparados para acabar com a escravidão”, explicitando todo o sentimento de superioridade de uma elite que acha que os “de baixo” nunca estão devidamente preparados para serem livres. Como seria ser jovem e não entender onde estamos, em que chão pisamos, e percorrer outras trilhas?
É também com o livro que muitos adolescentes podem formar suas próprias comunidades, quando não se encaixam nem se sentem pertencentes às hegemônicas, encontrar seus pares ainda que distantes no espaço-tempo, seu estilo, e começarem a construir seu próprio caminho. Se a escola não está lá para abrir essa possibilidade, quase certamente ninguém estará, em um mundo cada vez mais dominado pelo impulso de dominação e pelo horror ao pensamento crítico.
É verdade que, com a ânsia de preparação para o ENEM e o desejo de resultados rápidos, muitas escolas não fazem isso. Não foi com a escola, mas com a minha mãe e minha avó, que aprendi que era normal ser estranho e a lidar com isso, apesar de ter tido excelentes professoras e professores de história e literatura que encontravam suas brechas para nos fazer pensar.
Agora voltamos ao problema que o tuíte do youtuber levanta sem revelar. A escola tem muitos problemas, e a maioria deles não começa com ela, mas com a sociedade brutalmente desigual e violenta em que vivemos, que inclusive desvaloriza o ensino e o professor. Em um mundo em que a desigualdade é a norma, a escola muitas vezes reforça os fossos que o estruturam, preocupada menos com a vida dos estudantes e mais com a manutenção do status quo. Não só a literatura, mas todas as disciplinas são embaladas e cronometradas de acordo com a necessidade de passar nos exames.
É, no entanto, justamente nesse mundo em que o óbvio é silenciado, a desigualdade naturalizada, que a literatura desponta como um dos canais (evidentemente não o único) que pode fazer circular as vozes e os sentidos que são abafados nessa ordem das coisas. Saber que existem outros modos de pensar, de escrever, de viver, de amar, em outras dimensões do espaço-tempo é coisa de adolescente, sim. Um pouco da sofrência de Álvares de Azevedo pode ajudar a pôr em questão o que diante desse mundo tão bruto andamos chamando de amor. A ironia machadiana é quase tão importante para viver no Brasil como a vacina contra a Covid-19.
Será que, no fundo, Felipe Neto tem medo de que ao encontrarem outros modos de fuga, ele perca seus jovens seguidores e seu lugar de a única voz que compreende a juventude nesse mundo insano? Ou será que com a força e a abrangência de sua voz nos colocou para pensar em como anda nosso sistema de ensino? Talvez seja preciso mais que um tuíte para sabermos.
E uma última pergunta: se Machado de Assis estivesse vivo, como daria vida a esses personagens cada vez mais presentes em nossos cotidianos, os influenciadores da internet, sempre cheios de certezas contundentes sobre todos os assuntos? Provavelmente, a essa altura já estariam todos devidamente encaminhados à Casa Verde de Itaguaí. No fim das contas, o que a literatura pode fazer em um país de tendências autoritárias tão fortes é manter aberto o benefício da dúvida, ajudar a fazer passar o ar onde anda quase impossível respirar.

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