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WhatsApp Image 2021 01 28 at 23.02.57Foto: Alessandro CostaELEONORA ZILLER
Presidente da AdUFRJ, professora da Faculdade de Letras da UFRJ

Uma vez perguntaram ao Roberto Schwarz qual seria para ele o significado de “periferia”, por conta de seu livro Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. Ele respondeu de modo muito sintético algo como: país periférico é aquele que não engendra o seu próprio futuro. Não tenho certeza se a frase foi exatamente assim, mas lembro que na época me provocou certa irritação. Já não estávamos mais na década de 1990, quando o livro fora publicado, mas em pleno século XXI, com os promissores anos do governo do PT acenando para um novo posicionamento internacional do Brasil no concerto das nações, com as grandes articulações com os países do BRICS e o sonho de uma nova ordem mundial. Entretanto, a partir de 2013, com as revelações do Snowden sobre os programas secretos de vigilância dos EUA, e tudo que ocorreu a partir de 2016, a fala de Schwarz voltava a me instigar.
A eleição de Bolsonaro na esteira de Trump e Steve Bannon deu contornos ainda mais dramáticos ao que passamos a viver no Brasil. O bordão de sua campanha presidencial, “vamos acabar com tudo isso que está aí”, vem sendo cumprido à risca, num acelerado processo de destruição sistemática da nação, sem paralelo na história do país. A condição de subalternidade da política externa brasileira nunca esteve tão evidente, com a exposição orgulhosa de nossa condição periférica, ou pior, de província, colônia ou mesmo de quintal dos EUA, pelo arremedo de chanceler, o sr. Ernesto Araújo. O compasso de espera que se formou para a eleição do Biden deixou a sensação ainda mais forte de que o nosso futuro continua sendo jogado alhures.
Em recente artigo na edição 1162 do Jornal da Adufrj, Josué Medeiros ressaltou que a derrota eleitoral de Trump não significava a derrota política do trumpismo, e que ela, por si só também não tem força para resolver o imbróglio que estamos metidos por aqui com o bolsonarismo, e nisso estamos de acordo. Mas é inegável que, desde a posse do Biden, o barco do presidente furou e está entrando água. Para atravessar a tempestade e evitar o naufrágio, o vice-presidente já anunciou que é necessário jogar alguma carga ao mar, e ao que parece, o primeiro a ser lançado será Ernesto Araújo (isso se Mourão não estiver se arriscando numa articulação para jogar a carga mais pesada ao mar, ou seja, o capitão). Os conglomerados da mídia também acirram suas campanhas e é previsível que, se o governo conseguir emplacar Arthur Lira na presidência da Câmara, tenhamos mais homens ao mar. O fiel escudeiro da Saúde poderá ter também sua cabeça entregue para que o centrão ocupe seu lugar no restauro da embarcação.
Então, num primeiro olhar, é possível que Bolsonaro possa restaurar o seu governo? Bom, ele ainda tem alguma popularidade e tem a chave do cofre, embora esta não seja uma operação fácil. Ocorrendo o pior cenário, que é a vitória de Arthur Lira, e uma recomposição do governo numa reforma ministerial que acalme a voracidade do centrão por cargos e verbas, ainda haveria a possibilidade de impeachment? Para aqueles que possuem um mínimo de consciência democrática e compromisso com a sociedade, esse governo é uma excrescência que ultrapassou há tempos todos os limites aceitáveis. Mas, ao que parece, ele não ultrapassou a linha principal que o mantém no cargo: a defesa do laissez-faire para a concentração de renda e a manutenção da impopular agenda neoliberal no Congresso. Se ele mantiver o avanço privatista, faz o serviço sujo e libera alguns candidatos de levantar bandeiras eleitoralmente inconvenientes em 2022. Mas para esses candidatos, para que o plano desse certo, seria preciso deixar que o presidente sangrasse até ser inviabilizado como candidato à reeleição, o que parece ser hoje um risco muito grande.
Apesar de termos muita convicção sobre a necessidade do impeachment, ainda temos muitos empecilhos pela frente. Como confrontar os exércitos de robôs que sedimentam o consenso ultraconservador e mantêm viva a circulação de fake news que destilam ódio, desinformação e confundem a população? Como enfrentar o poderio crescente das milícias e dos pastores nas comunidades? Como organizar protestos e dar forma à nossa insatisfação sem provocar grandes aglomerações? Há caminhos e precisamos descobrí-los. A combinação de inépcia e perversidade do governo no enfrentamento à pandemia é única no mundo. O que ocorreu em Manaus é matéria mais do que suficiente para caracterizar a responsabilidade do governo federal diante de tantas mortes, além de ser um alerta muito plausível do risco que todos corremos com um governo como esse. Mas parece que a campanha lava-jatista deixou marcas indeléveis em nossa cultura, fazendo com que a compra do leite condensado tenha efeitos mais devastadores na base bolsonarista do que as mortes evitáveis por falta de oxigênio hospitalar.
A carreata do dia 23 apontou alguns caminhos. As frentes que hoje reúnem as centrais sindicais, confederações, federações, sindicatos e os movimentos sociais ainda podem render um movimento da maior significação nesse momento. Cresce o entendimento de que é necessária a construção de grandes bandeiras nacionais propositivas, que sejam percebidas pela população como a possibilidade de reversão da fragilidade e da miserabilidade a que todos vão sendo constrangidos a vivenciar. Vacina já, universal e gratuita, e a volta do auxílio emergencial são fundamentais nesse momento, pois vão além das bandeiras corporativas de cada categoria profissional. Cabe a nós a responsabilidade de encarnarmos essa grande tarefa de unidade, dar forma e cor a ela, de ponta a ponta nesse imenso país. Ainda que não tenhamos todas as cartas nas mãos e que parte do jogo esteja sendo jogado sem a gente.

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