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TATIANA ROQUE ENTREVISTA THOMAS PIKETTY

WhatsApp Image 2020 12 18 at 10.49.27“Em muitas nações, inclusive no Brasil, se diz que é preciso esperar o país ficar mais rico para possibilitar a redução das desigualdades. Na verdade, é exatamente o contrário”, explicou o economista francês Thomas Piketty, no evento de encerramento do centenário da UFRJ, na quarta-feira (9). A live foi transmitida pelo canal do Youtube do Fórum de Ciência e Cultura, e mais de 400 pessoas assistiram à palestra ao vivo.
Aos 49 anos de idade e um best-seller mundial — “O Capital no século XXI”, com mais de um milhão de exemplares vendidos em todo o planeta — Piketty acaba de lançar Capital e Ideologia, em que analisa a história das desigualdades. A participação do economista no evento da UFRJ foi gravada anteriormente no formato de entrevista, sob a condução da professora Tatiana Roque, coordenadora do Fórum, e ex-presidente da AdUFRJ.
Para Tatiana, o evento mostrou que a desigualdade é a questão mais urgente da sociedade brasileira. “A universidade precisa dar uma resposta para isso. A UFRJ mostrou essa face no enfrentamento da covid-19, e também neste evento, em que a discussão se deu muito em torno da renda básica”, contou.
“A renda básica segurou um pouco a situação dos mais pobres durante a pandemia. A gente queria conversar com um grande pensador desse momento atual, e alguém que pensasse a desigualdade. Era para ele ter vindo presencialmente ao Brasil, mas por causa da pandemia não deu”, contou Tatiana.
Confira a entrevista:

TATIANA ROQUE: No seu livro ‘Capital e Ideologia’, o senhor analisa as séries históricas de preferências eleitorais de diversos países, e gostaria de estender a reflexão para o caso do Brasil. Tivemos eleições este ano e, novamente, a esquerda não se saiu muito bem. Observa-se uma nítida preferência eleitoral pela direita entre os trabalhadores informais. Isso explica, aliás, a dificuldade para administrar a pandemia, e as pesquisas indicam claramente uma preferência pela esquerda ou pela direita de acordo com este critério da formalidade do trabalho. Diante disso, poderíamos dizer que é preciso estimular o crescimento e a geração de emprego formal, mas isso nunca funcionou aqui de forma estável, como na Europa. Será que para nós não seria o caso de construir uma nova filosofia de proteção social, incluindo a renda básica, que não precisa estar vinculado ao emprego formal?
THOMAS PIKETTY: Primeiro, quero dizer que, quando proponho que a renda básica seja depositada no contracheque, é apenas para as pessoas que possuem contracheque. Não proponho que seja aplicado sistematicamente a 100% da população. Quando existe a relação salarial, penso que em vez de a renda básica ser paga por uma administração pública de seguro social, ou seja, por um pagador diferente do empregador principal, me parece preferível aumentar o salário pago no contracheque. Na imensa maioria dos casos, as contribuições sociais e os tributos pagos pelo trabalhador são maiores do que a renda básica que irá complementar o salário.
Também penso que a relação salarial deve ser preservada enquanto objetivo importante, mas, ao mesmo tempo, concordo plenamente: é preciso atender todos os trabalhadores informais, todos aqueles que estão fora da relação salarial e acho que foi um erro historicamente gravíssimo da esquerda em geral focar muito no ‘salariato’ como única forma possível de organização do trabalho. Essa visão única e completamente focada no salário prejudicou muito a esquerda historicamente em todos os países, e eu não compartilho dessa visão. Por isso procuro valorizar a propriedade privada, inclusive a pequena propriedade, com compartilhamento do poder entre os trabalhadores e todas as partes interessadas na empresa. Essa valorização da pequena propriedade privada e, depois, do trabalhador independente, me parece muito relevante para renovar o software socialista ou social-democrata, para chegar a uma visão diferente. Não podemos desistir de puxar o setor informal para uma maior formalidade no futuro, mas concordo que, até lá, precisamos nos adaptar às situações das pessoas tais como existem, e propor soluções de renda básica e transferência de renda que não foque apenas nos trabalhadores do setor formal.

Como sabe, temos um problema eleitoral no Brasil. Bolsonaro foi eleito e tem o apoio expressivo de pessoas que não estão entre os mais pobres, mas que são relativamente pobres. A sua análise de esquerda, que chama de “brâmane” — um adjetivo interessante aliás — separa os votos das classes populares dos votos dos diplomados. No Brasil, a situação é um pouco mais complexa, porque temos os mais pobres que preferiam o PT e o Lula, e temos essa camada intermediária que pode ser chamada de classe média, mas que é relativamente pobre e que, penso eu, também é um pouco esquecida pela esquerda. Essa pode ser uma forma de entender os fenômenos eleitorais dos últimos tempos, que fortalecem a extrema-direita?
O que percebi, analisando os dados que pude ler, é que a passagem do PT pelo poder permitiu ampliar o seu apoio eleitoral nas camadas mais pobres, o que não era historicamente o caso do seu primeiro eleitorado, voltado para classes de trabalhadores formais, urbanos, e não necessariamente com um alto nível educativo, embora houvesse grupos desse tipo, mas que não eram os mais pobres na geografia social do Brasil. O PT foi conquistando esse apoio, em parte, graças às politicas implementadas. Foi se constituindo uma coalizão relativamente popular, através dessas politicas, que tiveram suas limitações, como a falta de reformas tributárias estruturais, de reformas da propriedade, mas, obviamente, vai muito além disso.
Sempre procuro insistir que parte da esquerda, os partidos social-democratas, socialistas, trabalhistas, renunciem de lutar por uma transformação econômica, por uma passagem para outro sistema econômico. Essa recusa em colocar a agenda de outro sistema econômico para a redução das desigualdades, esse comedimento excessivo, contribuiu para abrir o caminho para narrativas de direita autoritária, nacionalista e identitária.
Quando você repete o discurso de que não se pode ser muito ousado quanto à redistribuição da propriedade e redução das desigualdades sociais, contribui para uma narrativa de que o Estado não pode muito, que só existe uma politica econômica possível, e também contribui para focar o debate politico nessas questões de identidade e de segurança. Há uma demanda por segurança e um discurso do tipo Bolsonaro ou Trump, autoritário e xenófobo que, infelizmente, tem certa força.

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