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lessaUm professor único, adorado pelos alunos. O reitor que recuperou a institucionalidade da UFRJ após uma intervenção do MEC. O homem elegante, que seduzia pela palavra. O colecionador compulsivo que divertia a família. Mas, acima de tudo, um apaixonado pelo Brasil e sua gente. Estas eram algumas das características de Carlos Francisco Theodoro Machado Ribeiro de Lessa, emérito da universidade que nos deixou no dia 5, vítima do novo coronavírus, aos 83 anos.
    Vice-reitor da UFRJ, Carlos Frederico Leão Rocha se recorda de Lessa como um brasileiro que dava valor à nação. “Era um traço constitutivo da personalidade dele”, afirma. “O que ele fazia no curso era uma coisa única: misturava elementos da cultura brasileira com elementos da economia”, diz.  Não à toa, as aulas e palestras do mestre eram disputadas pelos estudantes que, com muita frequência, o escolhiam patrono ou paraninfo.
No período em que assumiu a reitoria (2002-2003), Lessa criou o bloco de carnaval da UFRJ, o Minerva Assanhada. O atual vice-reitor atribui a iniciativa ao amor pela cultura nacional. “Ele entendia o samba como um elemento essencial da cultura brasileira e que, portanto, devia se expressar dentro da universidade”.
Mas nem só de samba viveu a gestão. Pró-reitor de Pessoal daquela reitoria, o professor Luiz Afonso Mariz considera o antigo chefe o responsável pela retomada institucional da UFRJ. Lessa ficou à frente da instituição logo em seguida à reitoria de José Henrique Vilhena (1998-2002), um interventor nomeado pelo MEC.
Um dos primeiros atos da administração foi derrubar uma porta de aço que Vilhena havia instalado na entrada do gabinete da reitoria para afastar os opositores. “Qual foi o significado disso? É que não poderia mais ser assim. As pessoas precisam ter acesso ao poder central”, observa Luiz Afonso.
O ex-pró-reitor também chama atenção para o extraordinário poder de persuasão do saudoso amigo. Sozinho, Lessa convenceu o Conselho Universitário a ceder dez vagas de concurso, raríssimas naquela época, para a Faculdade Nacional de Direito, que atravessava uma enorme crise institucional. “Tenho certeza de que o passo mais importante para o renascimento da faculdade foi dado por Lessa naquele momento”.
A sedução pela palavra também era exercitada no convívio com os mais próximos. Certa vez, conta Luiz Afonso, Lessa lhe disse que poderia ser o “chanceler da UFRJ”.  Mas completou em seguida: “Falta-lhe uma gravata”. Era a senha para dizer como seus pró-reitores deveriam se vestir. “Nós andávamos de camisa social. Mas, a partir de então, passamos a usar gravatas”, lembra, divertido. “Ele andava impecavelmente vestido”.
As gravatas e os suspensórios apontavam para um lado menos conhecido do ex-reitor: o de colecionador compulsivo. Quem conta é o filho Rodrigo Lessa: “Você abria o armário e parecia o arco-íris. Eram gravatas de todas as tonalidades. E tudo separado, das monocromáticas às com bolinhas”.
O pai também era um colecionador de arte chinesa. Mas o excesso de peças espalhadas pela casa se tornou motivo de broncas da esposa. Para disfarçar as compras, Rodrigo revela que o pai usava os amigos, que levavam “presentes”.  Entre selos, pedras, aves e até moluscos, Carlos Lessa transformava o cotidiano da família.  “Acho que era a maneira de esvaziar a cabeça. Funcionava como uma terapia para ele”.
Rodrigo reforça o lado do pai apaixonado pelo Brasil. Esta teria sido uma das razões que o levaram a escrever o livro “O Rio de Todos os Brasis”. “A hipótese era que o Rio explicava o Brasil”. Rodrigo acrescenta que a obra será reeditada este ano pelo Instituto Pereira Passos.
“Mas ele descobre depois que Minas Gerais explica o Brasil, por causa do ouro que ficou no país”. Segundo Rodrigo, a história estava sendo desenvolvida em um livro que o pai não chegou a concluir.
A professora emérita Maria da Conceição Tavares, colega do ex-reitor desde 1957, registra que “Carlos Francisco era um grande brasileiro e apaixonado pelo seu povo”. Uma paixão que, segundo o professor Fábio Sá Earp, justificaria a abrupta saída de Lessa da reitoria da UFRJ, no início de 2003, para a presidência do BNDES. “Ele tinha um espírito público muito grande. Lessa entendia que presidir o BNDES teria um impacto nacional”.
E transformar o Brasil pela política econômica sempre foi seu desejo maior. “Ele tinha esta mensagem: a história é produto da vontade humana e a política econômica é por onde esta vontade se expressa”.
O livro “Introdução à Economia: uma abordagem estruturalista”, escrito com Antonio Barros de Castro e publicado em 1979 — um sucesso de vendas —, já carregava este conceito. “Hoje, os livros de introdução à economia são mais sofisticados, mas, naquela época, não havia nenhum livro que desse uma visão global da economia como aquele”, afirma Fábio.
O professor do Instituto de Economia demonstra com um exemplo simples como Lessa estava à frente do seu tempo. Antes de ser presidente do BNDES, o ex-reitor foi diretor do banco na década de 80. “Os primeiros financiamentos em economia ambiental foram conduzidos pelo Lessa. Foi a primeira pessoa a financiar usinas de lixo”, diz Fábio. “As pessoas achavam que ele era maluco. A questão ecológica levada a sério é uma herança que nos deixou”, completa.

O Lessa de todos os Brasis!

Eleonora Ziller
Presidente da AdUFRJ

Todos nós temos muitas histórias para contar do professor Carlos Lessa. Do economista, do amigo, do mestre, do político... em qualquer chave, ele será sempre visto como o grande humanista, culto, inteligente e generoso. Tive a sorte de ser representante no Conselho Universitário quando ele conseguiu dar forma e voz à mobilização da UFRJ contra nomeação do Vilhena pelo então ministro Paulo Renato. Naqueles tempos, o bom mesmo era chegar antes da sessão começar para ouví-lo um pouco mais, pois estava sempre entre os primeiros a chegar, e em torno dele nos reuníamos para aprender alguma coisa de extraordinário sobre o Rio de Janeiro, o Brasil do século XIX, a política nacional, a vida cultural, enfim, um Midas da inteligência, porque tudo que ele tocava se tornava atraente e interessante.
Alguns temas eram recorrentes, mas nada era tão divertido quanto a sua metáfora do restaurante a quilo, do sushi com feijão e farofa, para falar da nossa peculiar formação cultural. E sua insistência na necessidade de a universidade brasileira pensar os problemas brasileiros, investigá-los, e de ser capaz de propor soluções para sociedade, era uma pregação cotidiana. Mais de uma vez o vi reclamar dos sistemas de pontuação da CAPES e a supervalorização da publicação em inglês e em periódicos estrangeiros. Nada a ver com algum tipo de nacionalismo rasteiro ou populista. A questão ali era a afirmação da necessidade de produzirmos conhecimento de alta complexidade sobre a nossa realidade e de encontrarmos em nossa língua a expressão máxima para expressá-lo. Era dessa forma que se mantinha remando contra a maré do senso comum, atacando a tecnocracia subalternizada e cobrando um posicionamento institucional de ampla responsabilidade. Como ele nos faz falta hoje!
Depois, como Reitor, apesar do curto período de sua gestão, buscou movimentar as estruturas tão estanques e pouco articuladas da universidade. Ele queria reunir a pesquisa através de problemas comuns, de grupos que de modo interdisciplinar pensassem proposições concretas para o Estado do Rio de Janeiro. Assim nasceu por exemplo, o programa UFRJ-Mar, reunindo inicialmente mais de 70 pesquisadores das mais diversas áreas para atuarem de forma solidária e articulada em torno dos problemas da costa fluminense e de suas baías. Era uma forma de atravessar as barreiras disciplinares e os muros departamentais, mobilizando a universidade em direção à vida nacional, se debruçando sobre questões necessárias e urgentes, criando redes de solidariedade para a produção do conhecimento.    
Apesar de economista, sua visão ampla e interessada o fazia bem-vindo em qualquer fórum que se dedicasse a pensar a complexidade da formação social brasileira. Foi assim que o convidamos para participar de um evento em homenagem aos 40 anos da publicação do livro Formação da literatura brasileira, clássico da crítica literária de Antonio Candido. E sua intervenção confirmou o lugar e a importância desse livro, para figurar entre os mais importantes do século XX para a interpretação do país. Lembro como se fosse hoje a forma entusiasmada com que comentou o livro e como seu olhar nos ajudou a sair das leituras tão conhecidas no âmbito da crítica literária.    
Enfim, o professor Carlos Lessa era um desses grandes nomes que representam o que de melhor a nossa centenária universidade produziu. Ele figura em lugar de destaque naquele panteão de intelectuais em que concordar ou discordar de suas posições é o que menos importa. Ninguém permanecia o mesmo ao conviver com ele, e isso sim era o que contava.
Hoje não será a sua obra que nos faltará, pois ela está por aí, publicada, lida, criticada. Muitos são os economistas que honram o seu legado intelectual. O que sentiremos muita falta é desse seu amor incondicional pelo que somos e pelo que representamos como nação. Hoje estamos aviltados, desfigurados, destroçados e ridicularizados no cenário internacional. Que seu exemplo frutifique, que tenhamos força para derrotar o pior governo de nossa história e possamos voltar ao círculo virtuoso de construção nacional. Obrigada, Lessa, por tudo!

 

 

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