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508598963 1140477521459335 6747645686447448355 nFotos: Fernando SouzaA noite de 17 de junho foi marcada pela emoção. Doutora em Literatura Dramática pela UFRJ e ex-professora substituta da Escola de Comunicação, a deputada estadual Dani Balbi lançou a peça “Mãe, Preta, Reincidente” em que conta a saga de uma mulher que perde seus filhos para a violência de Estado. O evento, com direito a sessão de autógrafos e leitura dramatizada da obra – por ninguém menos que a atriz Zezé Motta – , foi realizado na Livraria da Travessa, no Leblon. O espaço tradicionalmente associado à elite cultural carioca se transformou em uma potente roda de conversa sobre literatura, dor, luto, luta e esperança.
Presidenta da AdUFRJ, a professora Mayra Goulart prestigiou o evento e elogiou a autora. “Para nós é um orgulho ter uma colega e parlamentar do gabarito da Dani Balbi. Extremamente comprometida com os direitos humanos, com as garantias fundamentais, com uma sociedade democrática, com a educação”, elenca. “Em tempos de polarização política, a peça da Dani ganha ainda mais importância porque denuncia que a morte da população negra e pobre desse país é projeto político da extrema direita”, defende. “Tenho certeza de que toda a UFRJ está muito feliz vendo essa realização”.
O evento contou com a participação de mães de vítimas da violência do Estado, como Mônica Cunha, ex-vereadora que transformou o luto pelo filho Rafael, assassinado há 18 anos pela polícia, em luta por justiça e direitos humanos. Ela escreveu o prefácio do livro. “O luto não pode nos paralisar. A peça é uma forma de justiça simbólica, que resgata e perpetua a memória dos filhos perdidos para o genocídio da juventude negra”, disse, na abertura do evento. A peça dá visibilidade para histórias como a de Mônica, rompe o silêncio sobre essas dores e impõe a escuta afetiva.508012681 1140477524792668 939430023102671969 n
Figura especial na plateia, a advogada Marinete Silva, mãe da vereadora Marielle Franco, acompanhou o evento emocionada. “Falar da luta dessas mulheres é extremamente necessário. Não dá para imaginar o que é a dor de uma mãe que perde um filho. Eu convivo com essa dor. Mas ver que essa dor está retratada numa peça é motivo de felicidade, porque dá visibilidade, mostra que não estamos sós”, acredita dona Marinete, que faz parte da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ. “A Dani é uma parceira da nossa luta. Vida longa ao projeto. Vida longa à Dani”.
Professora titular da Faculdade de Letras, Beatriz Rezende era só orgulho. “Viver um momento como esse dá sentido à nossa vida. Quando a gente chega já perto do final, como eu estou, e vejo esses filhotes brilhando, é maravilhoso”, disse. “A Dani é um caso muito excepcional. Fui sua professora e ela sempre foi ótima aluna. Os sentimentos da noite são orgulho e felicidade por ser docente da UFRJ”.
Além da veterana Zezé Motta, as jovens atrizes Ayanna Dias e Alice Morena deram voz à protagonista da trama. “Fico muito honrada quando percebo que mulheres negras mais jovens falam que fui uma inspiração. Falo isso com muita humildade, mas com muito orgulho porque quando eu ouço isso o que vem à mente é que toda a luta valeu à pena”, acredita Zezé Motta. “Enquanto a palavra desigualdade existir no mundo, nós temos que continuar lutando e o livro da Dani vai nesse sentido”.

DEPOIMENTO

“Escolhi lutar para não morrer”

MÔNICA CUNHA
ex-vereadora, mãe de Rafael e fundadora do Movimento Moleque

WhatsApp Image 2025 06 27 at 14.02.55Quando a Dani me pediu para escrever o prefácio, eu tomei um susto com o título ‘Mãe, preta’. Perguntei: ‘O livro é sobre mim?’ e ela me disse: ‘Sobre você e diversas outras que vivem o que está retratado aqui todos os dias’. Somos a maioria de mães negras, de mulheres negras, de tias negras, mas também somos a maioria sem direitos. Somos a maioria que ainda não tem moradia digna, que é invisibilizada, silenciada. Nós não temos remuneração digna. Somos ainda as que fazem filas enormes no sistema carcerário desse país, no sistema de medidas socioeducativas. E somos nós que estamos enterrando os nossos filhos, os nossos maridos, os nossos homens pretos.
A gente não está aqui fazendo uma luta, uma militância, porque só nós, mulheres negras, temos que chegar lá. Nós fazemos a luta por um povo. Todos nós temos que chegar juntos a espaços de decisão. Ter direito à vida, antes de qualquer coisa. Precisamos ter o direito de parir e os nossos filhos continuarem vivos. Temos que esperançar. Temos que ter direito a ter expectativa. Muitas jovens mulheres negras, quando acessam espaços antes a elas negados, não querem ser mães. Tudo bem não querer ser mãe por opção, mas elas não querem ser mãe por medo. Não querem ser mãe porque não querem perder o filho numa maternidade, por negligência. Não querem perder o filho numa creche. Não querem perder o filho assassinado. Isso é muito triste. É nos tirar o direito de sermos mães.
Estarmos aqui, numa livraria no Leblon, num dos lugares mais ricos do estado do Rio de Janeiro, é de uma importância incrível. Ver mulheres negras representadas nesse espaço é maravilhoso. As mulheres negras que estavam aqui eram atrizes, escritoras, professoras, doutoras, parlamentares. Mulheres que romperam o ciclo e que dizem que não aceitaremos mais esse racismo sobre as nossas vidas, sobre os nossos corpos, sobre a nossa história.
Eu sou uma mulher que vivo do luto à luta diariamente, porque o meu luto não pode me paralisar. Ele tem que ser impulsionador para que eu continue combatendo o racismo e não para me matar. Eu escolhi lutar para não morrer e ressignifico a minha dor todos os dias, por mais que o Estado não me permita. Quando mata o Herus (Guimarães Mendes, de 24 anos, assassinado pelo BOPE durante uma festa junina, no Morro Santo Amaro), por exemplo, cada mãe revive a sua dor. Cada mãe não vê o Herus, vê o seu próprio filho. Então, a nossa dor é revisitada a todo momento. Isso gera um adoecimento muito grande entre nós. Muitas já morreram, infartaram. Não aguentaram. Eu sei que não verei, mas minhas netas vão ver que não vão nascer outras mulheres negras para chorarem pela perda. Elas nascerão para o sucesso, para a expectativa, para desfilar por espaços como este.

ENTREVISTA I Dani Balbi

Cria da UFRJ, Dani Balbi também é roteirista premiada. A autora integra uma geração de mulheres que aliam produção acadêmica, ativismo político e criação artística. É a ficção que nasce da urgência social. A autora concedeu entrevista exclusiva ao Jornal da AdUFRJ. Confira a seguir.

Jornal da AdURJ: Como está se sentindo nessa noite de celebração?
Dani Balbi
– Estou muito feliz. Eu acho que faço parte de uma leva – que felizmente nos últimos anos tem se mostrado mais vigorosa e contínua – de alunos que se formaram na Faculdade de Letras da UFRJ e encontraram o caminho para utilizar, sem mecanicismo e sem utilitarismo, os estudos do percurso acadêmico na empreitada ficcional. Eu me sinto especialmente encorajada por esses meus amigos, camaradas que eu admiro, colegas de faculdade que vêm marcando a literatura contemporânea. Estou muito feliz de fazer parte desse movimento coletivo.

E como foi escolher a atriz Zezé Mota para essa leitura dramatizada?
A Zezé se destacou quando construiu o Cidan (Centro de Informação e Documentação do Artista Negro, fundado em 1984) que reunia diversos artistas de diferentes ramos. Além disso, é a maior atriz viva brasileira. Ela tem muito a dizer sobre esse movimento e sobre o movimento muito específico de autores negros da literatura e da literatura dramática. Então, fico muito orgulhosa de tê-la nesse projeto.

Era um sonho se tornar escritora? Tem outros lançamentos no futuro próximo?
Eu entrei na Faculdade de Letras para dar vazão à minha escrita. Eu sou roteirista. Tenho um roteiro de longa já premiado (o docudrama ‘Azangulê: o levante’ , de 2021). Estou construindo o roteiro da vida da Dona Ivone Lara e estou trabalhando também numa adaptação de uma das últimas obras premiadas do Vianinha, o ‘Papa Highirte’. Estou também pensando em dar consequência a outras empreitadas da literatura e do romance. Então, já era um plano, uma experimentação que vem se tornando realidade.

O que você falaria hoje para a Dani de 10/15 anos atrás, que é o retrato de boa parcela de estudantes da UFRJ?
Eu diria para a Dani continuar acreditando no sonho, na ficção como método, como propósito, como inspiração, como intuição – por que não? Diria para seguir no seu percurso de estudo, porque tudo isso levaria essa mulher, que na época era uma menina muito confusa, a um lugar de realização.

A temática da peça envolve questões de gênero, raça, violência de Estado, desigualdade. Você classificaria sua obra como uma homenagem, uma crítica social, um manifesto político ou tem um pouco de cada coisa?
Classificaria a minha obra como crítica social, manifesto político. É um manifesto contra a continuidade dessa política de morticínio, que hoje a gente conceituou de necropolítica, que vem sendo empreendida desde o governo de Sérgio Cabral com toques de crueldade cada vez mais expressados. Política essa que, infelizmente, toma a oficialidade da segurança pública do Rio de Janeiro.

O título é bastante forte. “Reincidente” é uma palavra geralmente associada a pessoas que voltam a cometer atos infracionais. Mas me parece que você rompe com esse significado. É uma resposta àqueles que classificam mães periféricas como “fábricas de marginais”, como disse o então governador Sérgio Cabral, em 2007?
É curioso você chamar atenção para essa parte do título. O termo ‘reincidente’ é usado justamente como provocação. Na leitura da obra fica explícito que quem reincide criminalmente não é a mãe, mas é o sistema de Justiça que comete duas violações, dois assassinatos que pesam sobre ela. Então, sim, a obra toma partido das mães vítimas de violência policial. É uma crítica muito contundente a esse sistema.

A obra é ficcional, mas o tema é muito atual, sobretudo nas favelas do Rio de Janeiro. Algum caso em especial te inspirou nessa construção?
Não houve um caso particular, mas fui impulsionada pelo aumento dos casos de violência policial. Esses diversos casos me levaram e me deram elementos, de certa maneira, para ficcionar essa tragédia particular.

Qual a importância de trabalhar essa temática num espaço de cultura situado numa região tão rica da cidade, como o Leblon?
Em princípio, a escolha do local foi mais desinteressada, partindo apenas das parcerias da editora e dos espaços disponíveis. Depois, pensamos em cancelar, por conta da possível hostilidade temática. Por fim, decidimos manter justamente por conta da ocupação desse espaço por temáticas, narrativas e corpos que trazem a marca das violações do Estado. Que são atravessados pelo racismo, machismo, LGBTQIAP+fobia e, particularmente, lembrando um pouco o que foram as violações na época dos ‘rolezinhos’ que, inclusive, aconteceram no tempo da política de Segurança Pública de Sérgio Cabral e foram bastante reprimidos enquanto atos políticos.

Por fim, que recado você deseja passar para as mães que perderam seus filhos para a violência de Estado?
Quero dizer às mães que elas estão amparadas por mim, por camaradas. Dizer que existe uma força coletiva que passa pelo fortalecimento do campo popular e democrático, e que está nele, que entende como central a luta contra o genocídio contínuo. Quero dizer que a memória dos seus filhos e das suas dores, especialmente a sua luta, que nasce dessas violações, continua em nós, militantes de esquerda, por uma política de segurança alinhada aos direitos humanos fundamentais.

DEPOIMENTO

“Sensação de dever cumprido”

ELEONORA ZILLER
professora da Faculdade de Letras, orientadora de Dani Balbi

noraPara qualquer professor, ver a realização de um trabalho de tanto tempo é o nosso Prêmio Nobel. Começamos a trabalhar juntas quando ela estava no terceiro período da graduação. Depois, na Iniciação Científica. Seguimos para o mestrado, para o doutorado. Eu acompanhei a Dani numa trajetória extraordinária. A Dani tinha uma heterodoxia na hora de se apropriar das discussões dos textos literários que muitos professores achavam confuso, porque era muito pouco fechada nos modelos teóricos. Ela tinha conhecimento, mas escolhia aplicar de maneira diferente.
Desde o primeiro seminário que ela fez comigo, que era sobre Tristão e Isolda, ela me impressionou muito. Havia uma discussão sobre quem era a personagem Isolda e a Dani apresentou uma potência que parecia que a Isolda estava viva ali na minha frente. Ela estava no início da faculdade, com formação teórica muito inicial, mas ela tinha uma enorme potência criativa. Dali ela foi crescendo teoricamente, intelectualmente, fazendo um trabalho de muita complexidade e muita seriedade.
Ela aliou a trajetória acadêmica à vida política durante todo o tempo todo em que esteve na universidade. O que é uma marca dela até hoje. Foi representante dos estudantes, esteve no Centro Acadêmico, mas sempre cuidando de sua excelência acadêmica. Daquela geração, ela ganhou muita visibilidade e por um momento histórico muito particular. Fico imaginando (se seria possível) há 20 anos uma mulher trans, negra, alcançar a projeção que ela está alcançando e numa luta de poder falar sobre todos os temas e não ser circunscrita apenas aos temas de ser mulher, preta, trans, periférica. Então, eu a considero de uma potência extraordinária. Uma figura rara, que faz tudo isso com muito afeto e dedicação.
Ao vê-la, hoje, eu me sinto privilegiada. Sentimento de dever cumprido. Eu fiz muito pouco, mas é um pouco que é importante que todos os professores tenham essa consciência. É o abrir portas. A gente não precisa tutelar os alunos. A gente não precisa dizer para onde eles devem ir. Esse não é o nosso papel. O nosso papel é abrir a porta, é falar que o espaço é deles, é encorajar.
Essa foi uma relação de mão dupla. Eu acompanhei daquele Daniel que chegou à Faculdade de Letras até essa potência feminina que está colocada. Eu não tinha ideia da intimidade dos problemas, da violência cotidiana, da dureza, da coragem, do efeito doloroso da transição, da força da decisão interna. Com ela eu aprendi de mais. Do ponto de vista da relação entre professor e aluno, é a relação perfeita. Tudo aquilo que eu via como potencialidade desabrochou, e eu ajudei a desabrochar, mas ao mesmo tempo eu também cresci, me transformei em uma pessoa muito melhor.
Eu confesso que a preferia numa redoma, com uma bolsa de pós-doutorado, fazendo concurso, lendo, escrevendo. Sinto medo pela violência política, de gênero, mas ela tem um papel a cumprir. Não dá para abrir mão desse papel.

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