Foto: Fernando Souza"Para mim é uma honra poder aqui estar, e eu começo realmente o meu discurso agradecendo a todos esses movimentos, o movimento negro, o movimento das mulheres, o movimento da favela, o movimento da juventude, o movimento das crianças, o movimento dos sem casa, dos sem teto, dos sem estudo. Esses movimentos dos quais acredito que eu tenha, não representado como um todo, mas tendo um compromisso com todos e com tudo aquilo que nós precisamos”.
“Eu queria dizer para vocês o que eu já falei com o Bonitão ali (o marido Antônio Pitanga), que a gente está recebendo muita homenagem, porque é todo dia um troféu de alguma coisa. Aí é sinal de que a gente está no meio para fazer ainda muita coisa, ou nós estamos chegando na hora da partida. O carinho e a manifestação de vocês, isso me comove muito, e ver a presença de amigos e amigas, aqueles que são militantes de causas, outros que não são militantes de causas, mas têm projetos para essa nação, que defendem os direitos humanos, eu quero agradecer a cada um”.
“Eu estou tremendo ao receber esse canudo de doutora Honoris Causa. Se o negócio é me fazer chorar de felicidade e de agradecimento, saibam que já chorei bastante antes para me acalmar e tentar fazer o discurso aqui, e não sei se conseguirei segurar o meu choro, pois dentro do meu coração esse chororô mais parece uma correnteza de memórias, que vai lavando a alma e molhando tudo, o rosto, o gesto e até o papel em que estão as palavras que escolhi para abraçar vocês”.
“Gente, com essa homenagem eu estou me sentindo e ficando ainda mais metida. Eu já nasci metida. Metida enxerida, diziam uns, metida sabida, diziam outros, metida a querer viver e existir, diziam todos, os outros pobres, pretos, periféricos, que como eu saíram do planeta fome, denunciado pela voz importante de Elza Soares, uma mulher de carne negra que se recusou a ser a carne mais barata do mercado”.
“Eu fui metida no mundo das vidas e das lutas desde a barriga de minha mãe, indo com ela grávida para o serviço. Minha mãe, uma mulher autodidata, uma obrigação para quem é pobre, foi uma líder religiosa e comunitária que não tinha roupa para a ignorância e para o conformismo. E ela logo me fez saber a lição número um, necessária e realista, que eu vim a um mundo que já tinha seus donos e que eu havia de me meter mais cedo ou mais tarde com esses donos e suas razões discriminatórias de corpo e classe de gênero, de orientação sexual, de origem social, de inscrição religiosa”.
“Para ajudar em casa, para poder ter uma casa, o jeito era aprender a ser atirada e sair me metendo onde não era chamada. E assim tentava abrir no braço e com a persistência alguma fresta para buscar existir até os dias seguintes. Sobreviver ou sobreviver, eis a nossa questão. Para quem teve que nascer sabendo que eu queria muito mais, o jeito era aprender a ter coragem para ser entrona e tentar construir da dificuldade e com muitos obstáculos algum sim, ainda que provisório. Afinal, o destrato, a humilhação, a exclusão já estavam ali esperando por nós no asfalto”.
“Mais que uma prova escrita, o esculacho, o olhar censor, a violência corretiva já nos condenava antecipadamente à reprovação. Sair se metendo na própria vida, tomando-a de volta, para nós, era o aprendizado muito indispensável de nossa grande revolução pela liberdade e pela igualdade. Uma revolução muitas vezes silenciosa, como prática de luta, uma revolução muitas vezes silenciada pela repressão”.
“Antes de ser uma consciência política, ser abusada, metida e entrona era uma necessidade existencial que precisava questionar diante do prato de comida, da falta de luz, de água e de escola, das políticas do mais e do mesmo que mudam para ficar igual, desigualando ainda mais os que já estavam desiguais. A pedagogia que a gente tinha era essa, ir se metendo, favela dentro e asfalto afora, com a cara e a coragem, com o corpo e a alma, a vida e os sonhos adiados. E assim eu aprendi a ir ficando cada vez mais entrona, aprendi a ir me metendo desde criança, me metendo para sobreviver, me metendo para existir, me metendo para aprender e sobreviver, existir e resistir. É um saber construído por vários corpos, pelas diversas mãos e pelas inúmeras cabeças dos periféricos e subalternos que fazem de seu dia a dia uma grande luta”.
“O saber da minha infância, da favela, vinha como uma ordem de cima, a disciplina aprendida era para aceitar e servir, ser criança era aprender a ter responsabilidades de adulto, ser treinada para fazer as vontades de quem mandava. De um lado, um manto branco como um lugar de fala e fé; de outro lado, uma obediência preta vista como um lugar de falha e vetada para a vida digna. O saber era para aprender a carregar mudança, trouxa de roupa, sacola de compras, tijolos, tábuas para o barraco, o que mais fosse preciso para garantir o sustento. O nosso saber não oferecia descanso, lazer ou prazer da reflexão, o saber era mais um peso para carregar, porque a gente não podia faltar às aulas da própria vida, da nossa própria condição de sobrevivência”.
“O peso do conhecimento para a mulherada preta como eu, era o peso da lata d’água na cabeça, morro acima, era a saca de cimento para subir paredes, era o braço doído e as pernas cansadas de tanto descer e subir favela para trabalhar na casa dos outros, e ainda ter energia para seguir dando conta na nossa casa. O peso do conhecimento foi aprender a engolir o “é assim mesmo”, sem deixar de lutar contra o destino que nos impune. E assim eu fui me metendo nos serviços para fazer a venda girar, para fazer a minha vida viver, lavando, cozinhando, criando filhos, levando água, virando laje, carregando o mundo na cabeça como se fosse a minha sina”.
“Mas era a sina, era o saber doído, tão lúcido, que me ensinava a insistir em ficar viva. Eu fui seguindo ainda mais metida, porque na favela não se nasce a passeio, se nasce para o serviço. Antes da gente ser sujeito de direito, a gente era sujeito ao direito dos outros, das vontades, manias e cismas da amplitude do assalto. Antes de virar gente, a gente virava ajudante. E foi ajudando, ouvindo e servindo, que eu fui aprendendo. Nem sempre com a escola, mas com a lição diária da vida. Com dificuldade para tirar um diploma, mas com os certificados da faculdade da vida. Sem estante de livros em casa, mas com memória para manter tudo certinho na cabeça. Um mundo onde eu seria muda, quieta, dobrada, mas eu fui ficando mais sabida e mais abusada. Na barra, na fé, na força das vendas. Na favela, saber é necessário”.
“A gente aprendia a se virar, a resolver, a não levar problema para casa. A gente aprendia a carregar junto com o fardo a dignidade de primeiro afirmar para o mundo que a gente era gente. Para depois brigar um pouco mais para ser reconhecida como cidadã. Preconceito? Nem dava tempo de nomear, porque logo vinha um outro para machucar um pouco mais a ferida já aberta. O racismo não tira folga, discrimina cada passo nosso pela vida. De segundo para segundo. Tínhamos é que sair tirando de letra e metendo bronca com o que tínhamos decidido existir como pretos e favelados. Violência era só mais uma chibata diária que a gente tinha que se desviar ou disfarçar, aprendendo a saber servir para depois poder saber existir como luta”.
“A gente teve de conhecer de cor e salteado a tabuada da sujeição. E a gente manobrava para romper com a invisibilidade, a diferença e o esquecimento. Não havia tempo para sonhar com uma cidadania abstrata. A dor da perda não podia parar porque para quem restou vivo lá em casa o bujão de gás tinha acabado, o gato de luz foi derrubado, a roupa precisava ser passada para pagar as despesas e os estômagos pediam comida. Por essa urgência da vida digna, fui entrando em tudo o que era canto, sim. Na igreja, na rua, na associação, no palanque, precisávamos estar juntas e misturadas para seguir em frente”.
“Fui então me metendo na política. Política do saber escutar, do saber lutar, do saber dar atenção. Política de tanto saber vivido no mutirão comunitário que nos ensinou o que é a coletividade e a sua força transformadora. Política de quem sabe e não se esquece do valor do vizinho, da comadre e do parente. Política de quem só vira o dia porque sabe que alguém ajudou a empurrar. Ser metida na favela era levar pito e aprender com ele. Era escutar quando o silêncio mandava calar. Era falar quando o “sim, senhor” tentava emudecer”.
“Fui sim me metendo com os braços incansáveis para o serviço com a boca para as palavras. Palavra dita, palavra cantada, palavra acolhedora, palavra de muitas beneditas que hoje podem estar aqui nesta universidade como testemunhos da equidade promovida pela política de cotas”.
“A cada passo dessa minha metideza persistente eu fui levando a favela comigo. A gente não tem como sair para brigar pela nossa cidadania e deixar a favela dentro do barraco. A mulher escondida atrás da porta e a negritude trancada no armário. Nas ideias, no gesto, na coragem, lá e aí, a preta, a favelada, a mulher”.
“Fui levando a minha gente no corpo, fui levando na alma a sabedoria das mulheres e das pretas que nunca podiam errar, porque errar para nós era cair no abismo. A pobreza negra não permite o erro. Quem vem de baixo sabe disso, sabe que não se pode perder a única oportunidade. E é por isso que a gente aprendeu a carregar o peso deste conhecimento dolorido que revela a mobilidade social negativa e que faz a gente andar uma casa, dar um passo para frente e cinco para trás”.
“Tive que aprender que favelada, preta e mulher tinha que nascer pronta. A gente precisava, obrigada pelas dificuldades, a nascer sabendo. A pedagogia do pobre e preto só admite o acerto. A fazer, o certo e o direito para sobrar, não andar para trás, ficar a meio caminho ou terminar morto num beco da comunidade. Com essa sabedoria toda aprendida nas ladeiras do Chapéu Mangueira, eu tinha clareza que nas batalhas da vida, antes de tudo, vinha a preta, depois a favelada e, por fim, a menina-mulher. Tudo isso antes de ser alguém, antes de ser cidadã. Foi no dia a dia na favela que eu primeiro descobri o que era ser preta para depois me tornar militante”.
“Primeiro virei doméstica, mãe, dona de casa, para depois me tornar uma trabalhadora. Primeiro tive que me descobrir mulher para depois poder ser uma feminista. Primeiro precisei me reconhecer como favelada para depois ir me tornando Benedita, preta, favelada e mulher”.
“Fiquei metida sim e agora, com esse título, estou mais metida ainda. Ser metida sim no trabalho dos outros, na vida dos outros, no mundo dos outros, primeiro para servir como trabalhadora doméstica e depois também para servir, mas, às nossas causas, à nossa dor. Foi assim que eu me meti nos movimentos de favela, de mulheres e de negros. Lutar por saneamento era primeiro lutar por um banho, por comida, por higiene e dignidade do povo que serve. Lutar por urbanização era primeiro lutar por condução, por luz, por rua, por teto para o povo que trabalha”.
“Política era a bica d’água, o mutirão, a laje virada e colocar a mulher nas associações de favela. Gente, minha paixão sempre seguiu viva pelo saber das coisas, para agir com compaixão pelos outros e com respeito aos seus saberes. Meu encantamento de aprendiz era para este saber que escuta, que observa, que guarda no corpo e na memória o que nem sempre está nos livros e nos registros. O saber que costura a esperança como a resistência”.
“Fui fazer faculdade para aprender, poder usar por dentro o código dos dominantes, para entender o idioma do poder. Eu já era uma poliglota da sobrevivência, falava o português do patrão, o léxico do racista, a linguagem da luta comunitária, mas precisava me alfabetizar na língua da academia, das intelectuais, das mulheres brancas preparadas. Era importante reconhecer suas qualidades e poder também usá-las a serviço da mulherada preta e favelada. Benedita se fez Benedita assim. Fez da dor, matéria-prima. Fez da escuta, o caminho. Fez da esperança, horizonte. Metida a aprender, a ensinar, a resistir, sabendo das coisas porque vivia tendo que dar um jeito com elas”.
“Como quem luta com o corpo e a alma, mas não esquece de agir com o coração. Com dureza e ternura, com garra e doçura, com tristeza às vezes, mas com esperança, alegre e com sorriso, no presente olhado para o melhor do futuro. Por isso, gente, o título de doutora Honoris Causa, concedido pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, a Universidade do Brasil, a universidade que nasceu de todos, é um título conferido a todos nós, a todas nós”.
“Esse título é da domética, que cuida como especialista em assistência social. É da manicure, que escuta mais que muito analista. É do motoboy, que conhece a cidade tanto quanto o urbanista. É da avó, que cura com folha. É da mãe, que ensina com gesto. É da religiosa, que ensina pela fé. É dos pretos e pretas, das vítimas das balas, das juventudes periféricas, da população LGBTQIA+. Esse título é dos empreendedores de seu próprio destino, que tiram de si mesmo as suas chances de melhoria. É dos que ainda vivem sem CPF e dos que moram longe, o céu ainda nega a sua dignidade”.
“Este título carrega muitos nomes, carrega os muitos silêncios de quem não pôde se sentar nos bancos da universidade, porque foram impedidos pelos servos da intolerância, da desigualdade e da exclusão. Esse título é a obra dos trabalhadores, porque antes de virar tese, eles tinham que saber que o que representavam já tinha virado o pão, já tinha virado a fé, já tinha virado o empurrão, não desistir de esperançar”.
“Este título é das muitas Benés e dos muitos Benés vindos lá de baixo e que constroem o mundo com muita garra, com muita empatia e com sobra de generosidade. Os saberes homenageados nesse título são os das nossas vivências, das dores que não viraram ódio e ressentimento, do amor pela vida digna, que vira coragem para a luta por dignidade, inclusão e reconhecimento. Esse título, que agora recebo em nome de todos nós, é mais do que uma honra, é o recomeço de nossas vidas. Ele é o retrato de todos os passos que me trouxeram até aqui. É da menina que escutava o mundo antes de saber nomeá-lo, dos mestres da vida que me ensinaram a ver com os olhos do povo, dos encontros com a diversidade que só a universidade pública é capaz de construir. É nesta casa, de janelas largas para o horizonte e portas abertas para o futuro, que os filhos dos brasis múltiplos encontram chão, voz e oportunidade”.
“A universidade pública é a contramão do silêncio imposto, é o território onde o saber deixa de ser privilégio dos bem-nascidos e se faz conhecimento com retribuição e evolução generosa. Aqui, o título de doutora Honoris Causa é o reconhecimento dos talentos forjados na travessia dos povos que resistem pensando nas vidas que sonham escrevendo suas histórias. É a celebração da política, da inclusão, da diversidade, do saber que liberta, não aceita censura e não se ajoelha diante do autoritarismo”.
“Honro com este título cada rosto que me atravessou, cada voz que me ensinou, cada luta que me moveu. Ele pertence aos que ousaram amar o conhecimento e aos que não desistiram de existir com dignidade. E agora, mais do que todas estas palavras ditas, é hora de estender os braços para refazer os muitos abraços que me trouxeram até aqui. Já passou da hora de eu não me conter de tanta emoção porque a gente agradece de verdade, de corpo inteiro. Entrou aqui uma Benedita chorosa de emoção e sai daqui uma Benedita doutora chorona de paz e felicidade. Muito obrigado”.