Os ataques que a professora Ligia Bahia (IESC/UFRJ) vem sofrendo por parte do Conselho Federal de Medicina (CFM) suscitaram uma onda de indignação e solidariedade país afora. Em apenas cinco dias, de segunda-feira até o fechamento desta edição, um abaixo-assinado em apoio à médica alcançou quase 15 mil adesões. E entidades como a Fiocruz, a Academia Brasileira de Ciências (ABC) e a SPBC — da qual Ligia Bahia é conselheira — manifestaram esta semana desagravo à docente, uma das mais respeitadas vozes no campo da saúde pública no Brasil.
Em 26 de agosto passado, o CFM ingressou na 19ª Vara Federal Civil de São Paulo com uma ação por danos morais contra Ligia Bahia. A ação se baseia em uma entrevista da professora ao canal do Instituto Conhecimento Liberta (ICL) no Youtube, na qual ela critica posições da direção do Conselho em defesa do uso de cloroquina, contra a vacinação durante a pandemia de covid-19, além do desrespeito à legislação que permite aborto em crianças vítimas de estupro. Os autores pedem que ela seja condenada ao pagamento de indenização de R$ 100 mil, e que “se abstenha de fazer qualquer tipo de publicação nas redes sociais” em relação ao CFM.
Em 15 de outubro, o juiz José Carlos Motta, da 19ª Vara Federal Cível de SP, indeferiu o pedido de tutela antecipada feito pelo CFM sob a argumentação de que “as manifestações da ré Ligia Bahia em sua entrevista devem ser compreendidas como abarcadas pela liberdade de expressão e de crítica política, ainda que contundentes”. O magistrado sustenta ainda que a posição do CFM também foi alvo de críticas em outros veículos de imprensa “seja no que tange à sua tolerância na utilização de tratamentos sem eficácia comprovada durante a pandemia de covid-19, seja no que concerne à recente Resolução CFM nº 2.378/2024, que proibiu aos médicos a interrupção de gravidez nos casos de aborto previstos em lei”.
REDE DE APOIO
Organizada pelo professor Elson Cormack, da Faculdade de Odontologia da UFRJ, a petição de apoio a Ligia Bahia (https://is.gd/sjkXr5) recebeu milhares de adesões em apenas cinco dias na internet. “Eu montei a petição pensando na meta dos 100 professores titulares do grupo do CCS, e me espantei ao ver as pessoas respaldando e endossando o documento. Já estamos chegando a 15 mil adesões. Acho que muita gente, mesmo não sendo da área, percebe o quão ridículo é o CFM processar uma das mais qualificadas profissionais da área de saúde pública do Brasil. Não é só a Ligia Bahia que está sendo atacada, somos todos nós”, sustenta Cormack.
O professor acompanhou a formação do IESC e conhece Ligia Bahia há décadas. “Ela tem um conhecimento vastíssimo na área, e está sendo processada por uma entidade médica que se contrapõe a evidências científicas. Mesmo se eu não conhecesse a professora Ligia Bahia, eu já me sentiria atingido. Acho que muitas pessoas estão se sentindo assim, ao ver o Conselho Federal de Medicina apoiar um tratamento sem fundamento científico, contaminado por questões políticas. É revoltante”, se indigna o professor.
As “questões políticas” apontadas pelo docente são de conhecimento público. A entrevista por Ligia Bahia ocorreu uma semana depois das eleições do CFM, nas quais mais de 60% dos conselheiros se reelegeram, e novos representantes, alinhados à direita, conseguiram vitórias. A eleição mobilizou políticos bolsonaristas em todo o país. O CFM foi um dos principais aliados do governo Bolsonaro na postura negacionista durante a pandemia de covid-19. O Jornal da AdUFRJ encaminhou questionamentos ao CFM, mas não obteve retorno.
SOLIDARIEDADE
Na segunda-feira (3), a SBPC e a ABC divulgaram uma nota conjunta. Ao Jornal da AdUFRJ, o presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro, disse que a declaração simboliza o respeito à Ciência: “Não se trata apenas da liberdade de expressão. Trata-se do compromisso que todos nós temos com a verdade científica. Temos a obrigação de denunciar e criticar a mentira, o curandeirismo, isso exige dos cientistas uma posição muito clara. O cientista tem um compromisso com a verdade, e por isso entendemos que a professora Ligia não pode ser penalizada por defender procedimentos científicos e respeito ao paciente”.
Assinada por Janine e pela presidenta da ABC, Helena Nader, a nota sustenta que as declarações de Ligia “refletem consensos científicos amplamente reconhecidos, tanto no Brasil quanto internacionalmente” e critica a postura do CFM: “Ao buscar puni-la por defender estratégias baseadas em evidências científicas, o CFM se afasta dos princípios básicos da ciência e da liberdade de expressão, que fundamentam a vida acadêmica e as sociedades democráticas”.
A manifestação da SBPC e da ABC foi endossada por 50 associações profissionais e entidades científicas, entre elas as associações brasileiras de Antropologia (ABA), de Centros e Museus de Ciências (ABCMC) e de Enfermagem (ABEn), e as sociedades brasileiras de Física (SBF), Psicologia (SBP), Química (SBQ) e Sociologia (SBS).PELA CIÊNCIA Direção da Fiocruz saiu em defesa de Ligia (ao centro)Na quarta-feira (5), o presidente da Fiocruz, Mario Moreira, recebeu Ligia Bahia no Castelo Mourisco, sede da instituição, em Manguinhos, Zona Norte do Rio. No encontro, Moreira entregou a nota de apoio da fundação. “A Fiocruz reafirma a pertinência do posicionamento de Ligia Bahia, sempre baseado em evidências científicas, em consensos amplamente aceitos por seus pares e aplicados com sucesso durante a pandemia de covid-19. Ao reconhecer sua dedicação à saúde pública e à ciência brasileira, a Fundação declara o repúdio à posição do CFM e total solidariedade à professora. Estar ao lado de Ligia Bahia nesse momento representa a defesa contra o avanço de discursos negacionistas e da anti-ciência no Brasil”, diz a nota.
Entre as instituições que também manifestaram repúdio aos ataques do CFM a Ligia Bahia estão o Fórum de Reitores das Instituições Públicas de Ensino do Estado do Rio de Janeiro, a Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, a Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG), o Clube de Engenharia e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
CONSUNI, CCS E ADUFRJ MANIFESTAM INDIGNAÇÃO
A UFRJ também saiu em defesa de uma de suas mais proeminentes pesquisadoras. Na quarta-feira (5), o Conselho Universitário (Consuni) divulgou uma moção de desagravo à professora. “Ligia Bahia é professora titular, pesquisadora de produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e Cientista do Estado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro. Considerando os compromissos universitários com a ciência, reafirmamos nossa solidariedade a Ligia Bahia, que tal como outros docentes da UFRJ têm uma profícua trajetória profissional em defesa da ciência e melhoria das condições de saúde da população brasileira”, diz a moção.
A decania do Centro de Ciências da Saúde (CCS), ao qual o IESC está ligado, expressou sua solidariedade por meio de nota em que afirma que as opiniões de Ligia se baseiam em consensos científicos “amplamente aceitos por seus pares e aplicados com sucesso durante a pandemia de covid-19”. E completa: “As evidências científicas demonstram a eficácia das vacinas na contenção da doença, com a redução de casos e da gravidade dos sintomas nos infectados, e a ineficácia da cloroquina em seu tratamento”.
O professor Rodrigo Fonseca, diretor da AdUFRJ, vê nos ataques a Ligia Bahia uma tentativa do CFM em silenciar vozes contrárias à direção do Conselho. “A professora Ligia é uma referência nacional na saúde pública, uma defensora do SUS. A AdUFRJ, toda a sua diretoria e nosso setor Jurídico vêm acompanhando o caso e dará todo o suporte para que a professora não tenha sua liberdade de expressão cerceada, princípio fundamental de um estado democrático de Direito”, afirma Rodrigo.
Para a presidenta do sindicato, professora Mayra Goulart, “estar ao lado de Ligia é estar ao lado da verdade científica”. A Associação dos Docentes da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (Adur) também expressou solidariedade a Ligia Bahia.