O estudo avalia desde 2021 os efeitos do desastre na saúde dos habitantes de quatro localidades de Brumadinho. Os dados divulgados se referem ao trabalho de campo feito em 2023 e revelam que, entre as crianças de zero a seis anos, havia a presença de pelo menos um dos cinco metais monitorados (cádmio, arsênio, mercúrio, chumbo e manganês) em todas as amostras de urina analisadas. O arsênio, elemento químico que pode ser fatal a humanos em doses altas, é o que mais preocupa: entre 2021 e 2023, o número de crianças com níveis acima do valor de referência passou de 42% para 57%, em média.
Os percentuais de arsênio são ainda mais expressivos em localidades próximas à área do desastre ou da mineração ativa no município. No povoado de Aranha, distante dez quilômetros do epicentro do desastre, os índices do metal nas amostras acima do valor de referência mantiveram-se entre 50% e 52%. Já nas duas localidades mais próximas — Córrego do Feijão e Parque da Cachoeira — e na qual há mineração ativa — Tejuco —, os percentuais de 2023 sobem de forma significativa, se comparados aos de 2021. No Parque da Cachoeira e no Córrego do Feijão saltam de 29%, em 2021, para 54% e 62,5%, respectivamente, em 2023. Em Tejuco, quase dobram: vão de 37,5% a 72%.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde, em observação destacada no estudo, os metais arsênio, cádmio, chumbo e mercúrio estão entre as dez substâncias tóxicas de maior preocupação para a saúde pública.
SINAL DE ALERTA
O estudo faz parte do Programa de Ações Integradas em Saúde de Brumadinho, financiado pelo Ministério da Saúde. Ele é dividido em duas frentes. O projeto Saúde Brumadinho é voltado para adultos e adolescentes. Já o projeto Bruminha tem foco nas crianças de zero a seis anos. Em 2023, o programa monitorou 130 crianças, 175 adolescentes e 2.520 adultos.
“Acho que os resultados da exposição das crianças aos metais ligam um sinal de alerta. Nosso organismo não produz arsênio, chumbo ou mercúrio, eles sempre vêm do ambiente. Se eu tenho uma população vivendo numa região de mineração, e existe uma exposição dessa população nessa faixa etária, isso é preocupante. É o momento de maior crescimento na vida humana. Você vê um bebê que não levanta a cabecinha e um ano depois está começando a andar. São células se dividindo e se multiplicando, suscetíveis à penetração de qualquer substância tóxica”, avalia a professora Carmen Fróes Asmus (IESC/UFRJ), coordenadora do projeto Bruminha.
Os pesquisadores ressaltam que os resultados demonstram uma exposição aos metais, e não uma intoxicação, que só pode ser assim considerada após avaliação clínica e exames para definir o diagnóstico. “Intoxicação é um quadro clínico, um conjunto de sinais e sintomas. O que detectamos é uma exposição disseminada das crianças aos resíduos desses metais. O que não deixa de ser preocupante. Uma coisa é você ou eu termos uma exposição a chumbo ou mercúrio, outra coisa é um bebê de dois meses. É um organismo que está num processo tão grande de construção que um agente tóxico vai ter um potencial de ação lesiva muito mais forte, em doses menores, do que se fosse com você ou comigo”, explica a docente.
Um dos maiores especialistas do país em saúde pública, o professor emérito Volney Câmara, também do IESC, partilha da mesma visão. “Os metais podem causar muitos efeitos crônicos, que podem não estar visíveis neste momento. São efeitos insidiosos. É fundamental o acompanhamento dessas pessoas, notadamente as crianças, pelo SUS. As crianças são mais expostas a estes poluentes porque as estruturas do corpo ainda não estão completas, e o pior, pelos mesmos motivos, apresentam efeitos mais graves que nos os adultos”, diz Câmara, que é consultor do programa do Programa de Ações Integradas em Saúde de Brumadinho.
A professora Carmen acrescenta que é preciso uma maior vigilância do ambiente em Brumadinho. “Temos que ter uma maior frequência de coleta de amostras da água, do solo, da poeira e uma troca de informações entre as secretarias de Ambiente e Saúde do município e do estado. E precisamos de equipes de saúde melhor capacitadas. Infelizmente nessa área da saúde ambiental, mais especificamente da toxicologia, a formação dos profissionais de saúde não é a desejável. Em uma área de mineração, o profissional de saúde tem que fazer avaliações dos níveis de chumbo no sangue de uma gestante, ou de arsênio na urina de uma criança”.
SAÚDE ABALADA
Coordenador-geral do programa e responsável pelo projeto Saúde Brumadinho, o professor Sérgio Peixoto (UFMG), pesquisador da Fiocruz Minas, observa que a percepção da população local em relação à sua própria saúde é um componente relevante para aferir os desdobramentos do desastre de 2019. “Na autoavaliação de saúde entre adultos, o que a gente percebe entre 2021 e 2023 é a manutenção de percentuais elevados de relatos de saúde ruim ou muito ruim. Chegam de 10% a 12%, enquanto na população brasileira esse percentual é de 5,8%. Essa é uma variável importante e está associada a diversos riscos como desenvolvimento de doenças crônicas, adoecimento e até mortalidade”, diz ele.
A pesquisa investigou a presença de sintomas nos 30 dias anteriores à entrevista. Em 2021, os adultos relataram principalmente irritação nasal (31,8%), dormências ou cãibras (25,2%) e tosse seca (23,5%). Em 2023, houve um aumento na frequência das duas primeiras condições para 40,3% e 34,4% e uma pequena diminuição (21,5%), na terceira. O grupo de doenças que inclui enfisema, bronquite crônica ou doença pulmonar obstrutiva crônica registrou aumento de 2,7%, em 2021, para 10,7%, em 2023.
De acordo com o pesquisador, o estudo mostra que, entre os adolescentes, houve um aumento de doenças respiratórias. “Doenças pulmonares crônicas, com enfisema e bronquite, tiveram um aumento muito grande na maioria das regiões. A asma teve pouca variação, mas permaneceu num percentual alto. Isso se repete quando a gente avalia a população adulta. Os percentuais são duas ou até três vezes maiores do que o que observamos na população brasileira. Sintomas como chiado, falta de ar, irritação e tosse são muito frequentes em Brumadinho. Isso pode estar associado aos problemas ambientais, ao processo produtivo e à produção de poeira na região. É uma preocupação constante. Vamos checar se isso se mantém com os dados de 2024”.
O estudo também avaliou aspectos de saúde mental. O diagnóstico de ansiedade ou problemas do sono foi reportado por 32,8% dos entrevistados adultos, em 2021, e por 32,7%, em 2023. “O diagnóstico de depressão se mantém em torno de 20% entre os adultos, o dobro da população do país. Usamos algumas escalas que nos permitem fazer triagens. Tanto em adultos quanto em adolescentes há um aumento no percentual de depressão e de ansiedade. Em algumas comunidades, o percentual ultrapassa 40%, um valor muito elevado. As questões de saúde mental perduram por muito tempo após uma grande tragédia. Nossa pesquisa foi feita após a pandemia, então ela se sobrepôs ao rompimento da barragem em Brumadinho. É uma dupla carga para a população”, avalia Peixoto.
PRÓXIMOS PASSOS
A análise dos dados coletados em campo em 2024 está adiantada. A equipe do programa vai voltar a Brumadinho em março para levar à população os resultados compilados de 2021 a 2023. “Esse é um compromisso do programa, temos que dar suporte às famílias. Ficamos lá na unidade de saúde à disposição delas, tiramos dúvidas”, diz Carmen. A primeira etapa do programa cobre a coleta e a análise de dados até 2025. “Mas já vamos iniciar uma negociação com o Ministério da Saúde para prosseguir por mais alguns anos, com mais tempo de acompanhamento”, adianta Peixoto.
No sábado passado (25), para marcar os seis anos do desastre, a Associação dos Familiares das Vítimas e Atingidos pelo Rompimento da Barragem em Brumadinho (Avabrum) organizou um ato com apoio do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). As duas entidades reivindicam um protocolo de saúde específico para atendimento às famílias de Brumadinho.
“Estamos muito preocupados porque cada vez o nível de contaminação aumenta no sangue das pessoas, nos animais, em todas as plantas. Tudo isso traz problemas sérios de saúde. Exigimos um protocolo específico e que a Vale arque com essa situação. Essa lama tóxica tem se espalhado, criado consequências. A gente vê pessoas doentes em toda a bacia do Rio Paraopeba. O mesmo acontece na Bacia do Rio Doce, atingida em 2015 pelo rompimento da barragem da mineradora Samarco, em Mariana”, disse, no ato do dia 25, uma das coordenadoras do MAB, Joceli Andrioli.
Questionada pelo Jornal da AdUFRJ, a Vale esclareceu que “segue empenhada e comprometida com o propósito de reparar os impactos causados às pessoas, às comunidades e ao meio ambiente em Brumadinho”. Sobre o estudo conjunto da UFRJ e da Fiocruz, a mineradora informou que irá avaliar detalhadamente os resultados divulgados para se posicionar. A empresa divulgou ainda que “no âmbito do Acordo Judicial de Reparação Integral há projetos com foco no fortalecimento dos serviços de saúde que vão desde aquisição de equipamentos médico/hospitalares, custeio de serviços até reformas/construção de unidades de saúde”. Segundo a Vale, 17 mil pessoas já firmaram acordos de indenização com a empresa, entre cíveis e trabalhistas.
NA ROTINA DOS PESQUISADORES, ACOLHIDA, AFLIÇÕES E INCERTEZAS
“De longe, a gente não tem a mínima ideia do tamanho da coisa. É uma população que está sofrendo até hoje, seis anos depois do desastre, e que ainda está em busca de respostas. Uma população marcada, com perda de familiares, ruptura social como um todo, formas de socialização que foram perdidas, que jamais vão retornar ao que era antes”, relata Maíra, que é a coordenadora-executiva do Projeto Bruminha, e responsável pela logística do trabalho de campo.
Professora da Escola de Nutrição da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), Maíra fez mestrado e doutorado no IESC/UFRJ, onde desenvolve tese de pós-doutorado sobre a violação do direito humano à alimentação e nutrição adequadas em situações de desastre e injustiça ambiental.
“Brumadinho é também meu campo de estudos. Trabalhamos em quatro comunidades rurais, onde as pessoas costumavam plantar e criar animais. Muitas desenvolveram traumas, não conseguem mais fazer isso. Elas têm medo, não sabem se o solo está contaminado, se a água está contaminada, falam que os alimentos não crescem mais como cresciam antes”, diz ela.
Para fazer o trabalho de campo, Maíra e os outros pesquisadores do Bruminha contam com o apoio de agentes comunitários de saúde, pessoas que também foram atingidas e moram nas comunidades. “Agora em março vamos voltar lá para levar os resultados do estudo às famílias. Os agentes avisam de nossa chegada, preparam o terreno, são fundamentais. Fazemos um informe de saúde para cada família, onde relatamos os resultados das análises. No caso das crianças, mostramos desde a evolução de peso e altura ao desenvolvimento neuropsicomotor. É o momento de acolhida, onde sentimos as aflições e incertezas das famílias”.
Segundo Maíra, os encontros são uma mescla de consulta médica com sessão de terapia. “Vamos eu e uma pediatra do projeto e ficamos lá uma manhã ou uma tarde inteira atendendo as famílias. A gente abre o laudo junto com elas, explica o que aquilo quer dizer, o impacto, o que precisa ser feito. Sempre que crianças apresentam alguma alteração que mereça mais atenção, nós encaminhamos para o serviço de saúde local”.
De 2021 para cá, Maíra confirma que a angústia é um sentimento que perdura na esteira do desastre de 2019. “Sentimos isso nas mães, esse sofrimento prolongado. Elas relatam episódios de violência que antes não havia na região, casos de depressão, até de suicídio. É como se fosse um trauma silencioso que permanece na região. As pessoas ficam mais receosas, desconfiadas. Se ouvem um barulho diferente já podem achar que é outro rompimento de barragem. É um cenário muito sensível”.
Em 25 de janeiro, foi inaugurado o Memorial Brumadinho, no Córrego do Feijão, por iniciativa das famílias das vítimas. Ele é cercado por um bosque com 272 ipês-amarelos, e é todo em tons de marrom, para lembrar a lama que mudou para sempre a vida do lugar.