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WhatsApp Image 2024 06 14 at 20.11.09Dona de vozeirão com carregado sotaque português e dotada de uma impressionante capacidade de articular e comunicar ideias. Mas, acima de tudo, uma professora de extenso currículo, exigente e zelosa com seus alunos. Maria da Conceição Tavares, que faleceu aos 94 anos no último dia 8, deixou uma legião de admiradores.
“Ela não tinha nenhuma tolerância com pensamento tecnocrático, burocrático, com o jeito amesquinhado de usar a razão como uma forma de escapar aos desafios centrais do país”, disse o professor emérito Carlos Medeiros, um desses muitos admiradores, na homenagem à mestra realizada na segunda-feira (10), no Instituto de Economia. O ato, organizado pelo centro acadêmico Stuart Angel, lotou o Salão Pedro Calmon, no campus da Praia Vermelha, com colegas e estudantes de várias gerações.
“Afinal, o que tornava a Conceição, em suas aulas, tão especial? Era exatamente a capacidade dela de comunicar, de falar ao âmago, ao coração, ao sentimento das pessoas que estão ali”, prosseguiu Medeiros. “Mas, ao mesmo tempo, não pensem que queria apenas adeptos que concordassem com ela. Era a primeira a puxar o tapete, se dissessem uma bobagem. Não podia falar qualquer coisa. Tinha que seguir uma tradição lógica conceitual rigorosa”.WhatsApp Image 2024 06 14 at 20.11.10 1
O professor falou com a experiência de ter sido orientado pela homenageada no doutorado. “E eu digo que não é fácil ser orientando da Conceição Tavares. Conceição lia uma frase e dizia: ‘Tá errado! Tá errado!’. E aí você tinha que refazer, mexer”. Apesar do jeito explosivo, a mestra era generosa e paciente, sempre instigando os alunos a crescer. “A Conceição odiava mediocridade, o mais ou menos, a coisa estável, meio plana. Isso não era com ela. Nunca foi”, afirmou.
Tanto não foi que alcançou um status sem igual entre os pares. “Estes aspectos centrais fizeram da Conceição, talvez, a intelectual mais criativa ou produtiva nessa área, entre economistas, com um pensamento próprio, orgulhoso de si, que não está pagando homenagem e buscando publicação para pontinhos na Capes. Essa era a Conceição, uma grande e apaixonada intelectual”, concluiu Medeiros.
Uma intelectual de esquerda. Conceição nunca escondeu seu posicionamento forjado inicialmente no marxismo e depois refinado com a influência de autores desenvolvimentistas e do trabalho junto à Comissão Econômica para a América Latina (Cepal). Esta formação, porém, nunca contaminou a análise rigorosa dos acontecimentos.
O exemplo mais claro aconteceu em 1970, quando Conceição lançou, ao lado de José Serra — ambos trabalhavam na Cepal, em Santiago —, o ensaio “Além da Estagnação”. “Para mim, o melhor trabalho sobre economia brasileira se você pensar nos recursos disponíveis em cada momento do tempo”, disse o diretor do Instituto de Economia, professor Carlos Frederico Leão Rocha.
“Ela faz uma previsão bastante ousada para a época, ainda mais para quem vinha da esquerda. Dizia que o milagre econômico iria dar certo. O que tem de problemático é que é excludente”, lembrou Fred. “O que Conceição estava anunciando era que os planos daquele governo iriam dar certo. Ia contra as ideias que estavam na esquerda, mostrando a importância da isenção científica”, completou.
Tomando o “Além da Estagnação” como uma das referências, o diretor do Instituto recordou ter chamado a mestra para dar uma aula sobre economia brasileira, em 2004. Talvez uma das últimas ministradas na graduação. “A minha turma era grande. Devia ter uns 60 alunos. E nós dávamos aulas na parte dos fundos do Palácio, onde há salas para 80 pessoas. E aquela sala ficou cheia, com gente sentada nas janelas. Foi um espetáculo. E ela falava sem parar”.
WhatsApp Image 2024 06 14 at 20.11.11 1A maneira de lecionar impressionava. “Não segue uma linha reta. Vai e volta muitas vezes. A segunda coisa é que você pensa no contra-argumento que vai apresentar. E ela já ia falando: ‘Você não vai pensar besteira, porque eu já tenho aqui a resposta para a besteira que você está pensando’”, lembrou Fred, divertido. “Devemos dar continuidade ao trabalho da Conceição. Essa é a nossa missão. É a maneira de homenageá-la”, concluiu o diretor.
Diretor executivo do Centro Acadêmico Stuart Angel, Danilo Ponciano concorda. “Conceição Tavares nos ensinou a importância de entender a economia não como um conjunto de números frios, mas como um instrumento de transformação social”, disse. “Ela nos mostrou que por trás de cada dado econômico existe uma pessoa, uma família, uma comunidade. Nos ensinou a olhar para além dos gráficos e estatísticas, ela nos ensinou a enxergar o rosto do povo brasileiro, mas especialmente o rosto dos mais pobres”.

“TIKTOKER”
Em depoimento gravado para o canal do Instituto de Economia no Youtube, o professor Carlos Pinkusfeld se juntou às homenagens e, entre outros aspectos, destacou o perfil da mestra como comunicadora. “A Conceição não mandava um e-mail. Mas, apesar de a Conceição ser completamente afastada do mundo digital, ela virou tiktoker antes de existir o Tiktok. Pela sua formação de empatia com as pessoas. Tinha esse lado de divulgadora, de formadora de um sentimento político ligado à economia”. Era algo tão intenso que a economista segue viralizando nas redes desde 2020, com a divulgação de trechos de aulas ou entrevistas.
Intensidade que se revelava também nos momentos difíceis da vida do país ou do mundo. “A Conceição gostava de dizer que era pessimista na razão e otimista na vontade. Tinha duas frases padrão: ‘Perdemos’ e ‘estamos mal’. Eram dois clássicos. Acabei de ver o resultado da eleição do parlamento europeu e me veio a Maria da Conceição Tavares à cabeça”, disse Pinkusfeld, em referência ao avanço da extrema-direita.
“Mas esse ‘Perdemos’ ou ‘estamos mal’ durava apenas o tempo de tomar um café e acender o primeiro cigarro. Porque, daí a dez minutos, ela já estava pensando que nem uma locomotiva e tentando explicar porque perdemos”, observou. “Deve haver um reconhecimento das dificuldades que o mundo nos coloca e uma motivação para continuar pensando. Mais do que pensando, no caso dela, criando instituições, formando alunos e criando ideias para tentar reverter isso”.
Conceição ajudou a criar as pós-graduações do Instituto de Economia da Unicamp e do Instituto de Economia da UFRJ e formou gerações de economistas, que hoje agradecem o legado deixado. “Mas a gratidão não se restringe ao mundo acadêmico. Conceição não só sempre mexeu com a cabeça dos alunos e dos colegas economistas; o fez com a intelectualidade brasileira em geral, com os tecnocratas, os políticos e os governantes, os sindicalistas e empresários. Sempre obrigou todo mundo a ‘pensar grande’. Obrigou o Brasil a se pensar grande”, avaliou o professor titular Ricardo Bielschowsky.
“E somos gratos pela energia que empregou e que transmitiu, como guerreira que foi no front intelectual da luta política por uma sociedade mais democrática, melhor e mais justa”, completou.

DA PRAÇA MAUÁ AO
CONGRESSO NACIONAL

WhatsApp Image 2024 06 14 at 20.11.11 2Na homenagem organizada no Pedro Calmon, uma das mais emocionadas era a professora Hildete Pereira, uma das amigas mais próximas de Conceição. As duas foram vizinhas, no Cosme Velho, durante 28 anos.
Hildete contou que a velha amiga se apaixonou pelo Brasil assim que desembarcou do navio, na Praça Mauá, fugindo da ditadura salazarista. “Conceição chegou ao Rio de Janeiro numa segunda-feira de carnaval, em 1954. Grávida, recém-casada e correndo da polícia de Portugal”. Naquela época, o desfile das escolas de samba acontecia ali pertinho, na avenida Rio Branco. “Ela disse que ficou enlouquecida com a alegria do povo brasileiro”.
Conceição ainda não era professora. Carregava o diploma de matemática da Universidade de Lisboa e só arranjou emprego prestando concurso para o então Instituto Nacional de Imigração e Colonização, que tratava da questão das terras no país. A alegria que sentia se transformou em indignação ao constatar a enorme concentração fundiária do Brasil. “Foi a virada de chave na vida dela”, afirmou Hildete.
A indignação e a coragem no debate público levaram Conceição ao PMDB de Ulysses Guimarães e, posteriormente, ao PT. Hildete coordenou a campanha que elegeu a colega como deputada federal, em 1994, com 40 mil votos. Mas a vida no parlamento não agradou. “A negociação política vai e vem, vai e vem, até que se chega a um mínimo de acordo. A Conceição dizia que não dava para isso”. O resultado é que acabou se tornando professora da bancada petista. “Ela disse que ia ensinar economia para quem quisesse”, completou Hildete.

LINHA DO TEMPO

1930. 24 de abril, Maria da Conceição de Almeida Tavares nasce em Anadia, Portugal.

1953. Cola grau em Licenciatura de Ciências Matemáticas e Estatísticas na Universidade de Lisboa.

1954. Emigra para o Brasil, radicando-se no Rio de Janeiro.

1956. Aprovada no vestibular, ingressa na Faculdade de Ciências Econômicas e Administração (FEA) da Universidade do Brasil, atual UFRJ.

1960. Cola grau como bacharel em Ciências Econômicas.WhatsApp Image 2024 06 14 at 20.11.11

1961. Inicia sua carreira docente como professora auxiliar de ensino na Universidade do Brasil.

1970. Publica em coautoria com José Serra o ensaio “Além da estagnação: uma discussão sobre o estilo de desenvolvimento recente do Brasil”.

1972. Convidada pela recém-fundada Universidade de Campinas (Unicamp), assume a coordenação da Pós-Graduação de Economia.

1972 – Publica o livro “Da substituição de importações ao capitalismo financeiro: ensaios sobre economia brasileira”.
1973. Reassume sua função como professora da FEA/UFRJ, exercida simultaneamente com a docência na Unicamp.

1975. Coordena a Graduação da FEA/UFRJ até o ano de 1977. Defende a tese “Acumulação de capital e industrialização no Brasil” e obtém o título de doutora e livre-docente.

1978. Aprovada no concurso público para a vaga de professora titular na UFRJ, com a tese “Ciclo e Crise: o movimento recente da economia brasileira”.

1979 . Nomeada coordenadora do Instituto de Economia Industrial da UFRJ.

1986. Dirige o Instituto de Economia da UFRJ no quadriênio 1986/1989.

1990. Aposenta-se como professora titular da UFRJ.

1993. Recebe do Conselho Universitário da UFRJ o título de professora emérita.

1994. 15 de novembro, Maria da Conceição Tavares é eleita deputada federal pelo PT/RJ, com 40.409 votos.

1998. Recebe o “Prêmio Jabuti – Economia, Administração, Negócios e Direito”, pelo livro Poder e Dinheiro – uma economia política da globalização, organizado por ela em parceria com José Luís Fiori.

2017. Escreve o artigo “Restaurar o Estado é preciso”, sobre o papel-chave do Estado na retomada do crescimento do Brasil.

2018. Lançamento do filme Livre Pensar – Cinebiografia de Maria da Conceição Tavares. O filme foi lançado no Salão Pedro Calmon do Instituto de Economia da UFRJ.

2024 . Falecimento, no dia 8 de junho, aos 94 anos, em Nova Friburgo (RJ).

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