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WhatsApp Image 2023 01 27 at 20.18.53 1Francisco Procópio e Silvana Sá

Em 2021, houve a maior expansão do garimpo ilegal no Brasil, em 36 anos, com 15 mil hectares explorados em todo o país, 1.556 deles na terra ianomâmi. Para se ter uma ideia, a área degradada se aproxima do tamanho da cidade de Santarém, no Pará. Os dados são do MAP Biomas, revelados pelo Ministério dos Povos Indígenas (MPI) ao Jornal da AdUFRJ. São números que ajudam a explicar a origem e a profundidade da crise humanitária pela qual passa o povo ianomâmi. As imagens divulgadas nos últimos dias são estarrecedoras. É impossível não lembrar as fotografias feitas de judeus nos campos de concentração nazistas. Por uma dessas coincidências difíceis de explicar e dolorosas de recordar, fechamos esta edição no Dia Internacional da Lembrança do Holocausto, 27 de janeiro. A data marca os 78 anos de liberação do campo de Auschwitz-Birkenau, pelo exército soviético.
Na quinta-feira (26), em reunião em Brasília com a ministra da Saúde, Nísia Trindade, o diretor-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Antonio Barra Torres, comparou a situação dos ianomâmis ao Holocausto. “As imagens remontam a cenas que só víamos em documentários da Segunda Guerra Mundial, a cenas do Holocausto, quando víamos pessoas com ossos cobertos apenas por pele. E vemos que isso acontece em nosso próprio país. Como se chegou a esse ponto?”, disse Barra Torres.
O Ministério da Justiça, o Supremo Tribunal Federal e o Ministério Público Federal instauraram investigação para entender a quem competem as responsabilidades pela tragédia. As primeiras conclusões apontam falhas, omissões e até informações falsas repassadas pela gestão Bolsonaro ao STF.WhatsApp Image 2023 01 27 at 20.18.54 6Foto: DIVULGAÇÃO/CONDIS-YY

CONIVÊNCIA
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) se reuniu com o governo Bolsonaro nos últimos anos para exigir punição aos garimpeiros, mas foi ignorada. Situação semelhante aconteceu com a antropóloga Aparecida Vilaça, professora do Museu Nacional da UFRJ. Ela conta que fez três denúncias ao Ministério Público Federal nos últimos anos sobre madeireiros que invadiram terras Wari, localizadas em Rondônia. “Eu não tive nem o não como resposta. Eles não tomaram providência”, lamenta a pesquisadora. Em sua avaliação, o órgão estava contaminado pela presença de militares bolsonaristas que atuavam em conivência com os criminosos.
Os ministérios da Saúde e dos Povos Indígenas decretaram conjuntamente situação de emergência no território ianomâmi. Foram enviadas, num primeiro momento, cinco mil cestas básicas e equipes multidisciplinares para assistência à população. Mais de mil indígenas já foram atendidos e outros 700 aguardam atendimento com sintomas graves de desnutrição, malária, pneumonia, verminoses e outras doenças evitáveis. Nesta sexta-feira (27), começou a funcionar um hospital de campanha capaz de atender até 300 casos por dia.
A crise não é de agora. Quase 600 crianças ianomâmis morreram nos últimos anos vítimas de doenças evitáveis. De acordo com a Secretaria Municipal de Saúde de Boa Vista, só no ano passado 703 crianças da etnia foram internadas no Hospital Infantil de Roraima com sintomas de desnutrição e suas consequências. Atualmente, sete estão na UTI da unidade sem forças para respirar. Muitas delas pesando duas vezes menos do que seria o normal para a idade.
Segundo a assessoria de imprensa do MPI, grupos que comandam atividades ilegais nos territórios demarcados impedem que a ajuda médica chegue até boa parte dos indígenas. “Postos de saúde foram abandonados e há ocupação de pistas de pouso pelo garimpo ilegal, o que dificulta o acesso das equipes”, afirma o ministério.

GENOCÍDIO
WhatsApp Image 2023 01 27 at 20.18.54 7Foto: DIVULGAÇÃO/CONDIS-YYPara o antropólogo João Pacheco de Oliveira, também professor do Museu Nacional, falar que os indígenas brasileiros vivem uma tragédia humanitária é “eufemismo”. “Trata-se de um processo efetivo de genocídio de um grupo. As autoridades estatais têm consciência da extensão do crime ambiental naquela região e continuam a praticar ou permitem que outros pratiquem essas ações”, afirma. “Por ação ou omissão, essas autoridades devem ser responsabilizadas”.
O pesquisador destaca que a grave situação dos ianomâmis infelizmente não é um caso isolado. “É a ponta de um iceberg que tem uma extensão enorme e que atinge de maneira variável todos os povos do Brasil. Portanto, não se trata de uma tragédia ianomâmi, exclusivamente. É uma tragédia que afeta de maneira extraordinariamente pesada os povos indígenas do Brasil”.
Para o especialista, há pelo menos três casos muito claros de genocídio de populações indígenas: do povo mundukuru, no Alto Tapajós, dos ianomâmis e dos guarani-kaiowá, do Mato Grosso do Sul. “São casos de extrema gravidade, recorrentemente denunciados, mas sem qualquer tipo de ação efetiva de defesa dessas populações”.
Em setembro do ano passado, o Tribunal Permanente dos Povos, herdeiro do Tribunal Russel – criado para investigar crimes cometidos na guerra do Vietnã –, atestou que o ex-presidente Jair Bolsonaro foi responsável por crimes contra a humanidade durante a pandemia. O relatório foi encaminhado para o Tribunal Penal Internacional (Tribunal de Haia). “O governo brasileiro não se defendeu, não mandou representantes. Simplesmente ignorou o assunto e continuou a autorizar que as coisas acontecessem dessa forma”, critica João Pacheco de Oliveira.
O antropólogo denuncia, ainda, que em dezembro passado houve autorização de nova atividade de garimpo, que incide na área ianomâmi. “Feita diretamente por orientação da Casa Civil. Quem assinou esse documento foi o general Augusto Heleno (ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional na gestão Bolsonaro)”, informa. “Este não é um caso de fome. Isso inclui destruição ambiental, garimpo e violência sem que haja qualquer apuração dos fatos. O governo passado foi absolutamente conivente com essas situações”.
Especialista em populações do Alto Solimões, o pesquisador afirma que a situação naquela região é muito semelhante à vivenciada pelos ianomâmis. “Houve casos de assassinato em via pública, inclusive de um dos funcionários da Funai que fazia fiscalização. Ele foi fuzilado e não houve qualquer iniciativa de combate ou investigação. Isto aconteceu dois anos antes do caso do Dom Phillips e do Bruno Pereira (jornalista e indigenista assassinados em junho de 2022)”.
MÉTODO
Carlos Fausto, professor de antropologia do Museu Nacional, afirma que a tragédia indígena não acontece por acaso. “É um projeto de governoWhatsApp Image 2023 01 27 at 20.18.54 8Foto: JUNIOR HEKURARI/DIVULGAÇÃO sustentado pela indiferença, mas também pela sequência de erros cometidos. Todas as instâncias do governo federal foram desmontadas na área de meio ambiente, de saúde e apoio indígena”.
Perguntado se também considera o caso como genocídio de um povo, ele prefere usar outra categoria. “O que está claro é que é um método. Foi executado como método que combina missão e omissão. Ação e inação. Detalhar essa rede é fundamental para desvelar o mecanismo pelo qual se produziu esse efeito perverso”, pontua. “É fundamental ser detalhadamente descritivo para que esse método seja desmontado e os responsáveis, punidos. As pessoas fogem de suas responsabilidades quando repetem que cumpriram ordens. Por isso, essa cadeia precisa ser muito bem detalhada. É preciso deixar clara a participação de cada envolvido”.
Ele concorda que a crise não é causada pela fome, mas pela interferência criminosa na região. “A floresta está cheia de alimento, peixe, caça, frutas. O que impede essas pessoas de se alimentarem? Justamente o barulho, que afasta a caça, o garimpo que polui os rios, contamina os peixes, a presença ostensiva que, por si só, é violenta”, explica. “A invasão desses criminosos custa a comida desses povos. A violência é tão grande que não se consegue nem levar cesta básica para determinadas comunidades indígenas”.
A saída, para o professor, é desarticular essas quadrilhas sem que novas pessoas sejam aliciadas para o crime. “Essa rede é muito flutuante e migra rapidamente para outros territórios. Há um grande desemprego na região. É muito fácil aliciar pessoas para o garimpo”, analisa. “Por isso, o Estado precisa agir com inteligência também para resolver problemas relacionados a emprego e renda, desenvolvimento sustentável e economia verde. O Estado tem que se qualificar e agir transversalmente nessas áreas. Isso não é fácil, não vai acontecer neste governo, mas é preciso pavimentar esse caminho”.

FUTURO
Apesar do cenário caótico, o pesquisador olha para o futuro com esperança. “Há boas perspectivas. Existem, hoje, lideranças indígenas extremamente bem formadas e capazes, que não dependem mais de indigenistas e antropólogos, com voz ativa na busca de soluções para essas regiões”, acredita.
Uma dessas lideranças é o atual secretário nacional de Saúde Indígena, Ricardo Weibe Tapeba. Ativista e advogado, ele é liderança do povo tabeba, do Ceará. Ele faz parte da Federação dos Povos e Organizações Indígenas do Ceará (Fepoince) e, em 2016, foi eleito vereador do município de Caucaia. Em entrevista ao Jornal da AdUFRJ, o secretário contou sobre as dores do povo ianomâmi.
“O que eu presenciei se compara a um cenário de guerra. As unidades de saúde mais parecem campos de concentração”, resume. “Os relatos das lideranças indígenas mostram que, nos últimos cinco anos, houve desabastecimentos das unidades de saúde, de insumos, de medicamentos, fechamento dessas unidades, poucos profissionais, falta d’água, de luz, de internet, de comunicação. Tudo isso aliado à presença do garimpo que gera insegurança, medo e morte”, relata. “Presenciei, de fato, um cenário de violações graves aos direitos humanos”.
A contaminação dos rios da região é apontada pelo secretário como uma das principais causas dos problemas enfrentados pelos indígenas em Roraima. “Há crianças cujo cabelo está caindo, que têm muitas feridas e outros problemas de pele. Ainda não houve investigação científica, mas nós acreditamos que esses problemas são resultado da presença do mercúrio e da contaminação das águas”, afirma. “O garimpo matou trechos de rios”.
Ele explica que a ação emergencial é resgatar as pessoas para tratar a saúde e distribuir cestas básicas para alimentação da população que não precisa de atendimento médico imediato. No médio prazo, no entanto, o secretário aponta para a necessidade de políticas públicas voltadas à segurança alimentar na região. “É preciso elaborar um plano para que os ianomâmis possam cultivar a terra, plantar suas próprias roças. Hoje, eles são impedidos pelos invasores. A longo prazo, a tarefa é despoluir os rios”.

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