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JOSUÉ MEDEIROS
PROFESSSOR DE CIÊNCIA POLÍTICA DA UFRJ

No começo do mês de dezembro de 2021, eu ocupei este espaço trazendo as boas e más notícias que vinham do Chile. Àquela altura, chilenos tinham uma esquerda renovada com o então deputado federal Boric e uma extrema-direita fortalecida com o ex-senador Kast para o segundo turno. Faltavam ainda semanas para o pleito final e a boa notícia era a vitória de Boric, que se confirmou. A má notícia era a força da extrema-direita chilena, que acendeu um alerta para a América do Sul em geral e para o Brasil, em particular.
WhatsApp Image 2022 06 24 at 21.08.41Passados seis meses, o resultado do processo eleitoral na Colômbia me traz de volta a este jornal, mas agora munido somente de boas notícias: a eleição de Gustavo Petro como presidente da Colômbia e de Francia Marques como vice-presidente, em 19 de junho de 2022, é um evento histórico sem precedente para o povo colombiano e com um significado mais do que positivo para as eleições brasileiras deste ano.

Por que Petro e Francia
fizeram história?

Pela primeira vez na história, a Colômbia terá um governo progressista. No auge da “onda rosa” sulamericana dos anos 2000/2010, apenas o governo colombiano não foi ocupado por um presidente de esquerda. A Argentina teve Nestor Kirchner e Cristina Kirchner; a Bolívia teve Evo Morales; o Brasil teve Lula e Dilma Rousseff; o Chile teve Ricardo Lagos e Michelle Bachelet; o Equador teve Rafael Correa; o Paraguai teve Fernando Lugo; o Peru teve Ollanta Humala; o Uruguai teve Tabaré Vásquez e Pepe Mujica; a Venezuela teve Hugo Chávez e Nicolás Maduro.
Não se trata de comparar os projetos desses mandatários. Sabemos que Mujica e Maduro são quase que antagônicos; tampouco queremos aqui projetar o que será o governo Petro e Francia. Mas é preciso afirmar em alto e bom som que em nenhum país foi tão difícil conquistar a Presidência pelo voto como a Colômbia. Em nenhuma outra nação da América do Sul a violência política é tão aberta e institucionalizada como lá. E se foi possível derrotar a direita autoritária colombiana, também será possível derrotar Bolsonaro aqui.
A Colômbia é um dos países que mais mata sindicalistas, ambientalistas e defensores de direitos humanos no mundo. Sua economia e defesa são altamente dependentes dos Estados Unidos. É o país com mais bases militares estadunidenses na América do Sul. Sua política é dominada por debate securitário que estimula o medo e o autoritarismo. Diversos presidentes de direita buscaram legitimar a repressão aos movimentos sociais a partir de um suposto combate às guerrilhas e ao narcotráfico. As milícias paramilitares de direita sempre atuaram com liberdade, matando esquerdistas, como ocorreu no massacre de novembro de 1985.
Por fim, o quadro político colombiano é tão pautado pela extrema-direita que nem mesmo a paz com as FARC conseguiu maioria na sociedade. O acordo de paz entre a guerrilha e o governo colombiano foi mediado por Cuba, assinado em setembro de 2016, e em outubro do mesmo ano foi rechaçado pela população em um plebiscito, quando o Não venceu com 50,21% dos votos. A despeito do resultado, o então presidente Juan Manuel Santos manteve a negociação, consolidada em novembro de 2016. A paz se cristalizou em 2017, quando finalmente as FARC entregaram as armas e viraram um partido político — mas isso não fez cessar a violência política no país. Por tudo isso, o feito de Petro e Francia é histórico.

Quem são Petro e Francia?
Gustavo Petro, novo presidente eleito da Colômbia, é economista e ex-guerrilheiro. Sua organização, o M-19, atuou como guerrilha urbana (diferentemente das FARC, que era rural) nos anos 1970 e 1980 e, após muitas derrotas, assinou um acordo de paz em 1990. Logo no ano seguinte, iniciou sua carreira política, sendo eleito deputado federal diversas vezes entre os anos 1980 e 2000, duas vezes senador da República em 2006 e 2018, e prefeito de Bogotá em 2011, quando sua administração se tornou um modelo de governo progressista no país. Além disso, foi candidato derrotado a presidente da República em 2010 e 2018.
Francia Márquez, primeira mulher negra vice-presidenta da Colômbia, é uma ativista ambiental e antirracista. Liderou as lutas contra a mineração ilegal no norte do país e organizou em 2014 uma marcha de mulheres negras por mais de 500 quilômetros até a capital colombiana. Foi também protagonista dos acordos de paz entre o Estado e as FARC.
Petro e Francia disputaram em março de 2022 as prévias do Pacto Histórico, uma frente progressista de amplitude inédita. Francia era pré-candidata desde agosto de 2020, enquanto Petro anunciou sua campanha em novembro de 2021. As prévias contaram com outros três candidatos. Petro foi o mais votado e Francia ficou em segundo lugar. O feito da vice-presidenta foi ainda mais impressionante porque ela foi a terceira pessoa mais votada do país nas primárias, recebendo 750 mil votos, ficando atrás apenas de Petro e Frederico Gutierrez, que venceu as prévias da coalizão direitista.
Em grande medida, a aliança Petro e Francia foi mais imposta do que uma escolha. Diante da votação consagradora da ativista, não restou a Petro outra opção para a composição da chapa como vice-presidenta.
E agora, uma vez que eles venceram as eleições, os sentidos dessa composição impactam não apenas a Colômbia, mas também o Brasil, prestes a enfrentar as eleições mais importantes da nossa recente democracia

Qual é o significado da
vitória de Petro e Francia?

A composição entre Petro e Francia significa uma aliança entre os dois pilares do progressismo sulamericano. Petro representa o pilar que atuou pela redemocratização da região desde o final dos anos 1970 até os anos 1980 e que protagonizou o ciclo progressista do século XXI. Ele é da mesma geração de Lula, Mujica, Tabaré Vasquez e Bachelet. Já Francia é a expressão das novas personagens políticas que entraram em cena já no ciclo progressista, exigindo uma democracia mais substantiva não apenas na questão social, mas também na igualdade de gênero e raça, na defesa dos povos tradicionais e da natureza, na centralidade das pautas dos direitos humanos. Ela é da mesma geração que o presidente do Chile, Gabriel Boric.
A aliança entre esses dois pilares não é óbvia e, pelo contrário, em muitos países as tensões entre essas duas visões têm prevalecido aos acordos. Isso ocorreu sobretudo em momentos de choque quando o pilar da redemocratização estava no governo e as novas personagens começaram a entrar em cena. Foi assim no Chile com a Revolta dos Pinguins em 2006 e as Jornadas de Junho no Brasil, em 2013.
É por isso que as boas notícias que vêm da Colômbia vão além da vitória eleitoral. Essa aliança tem o potencial de não apenas reconquistar a direção do Estado — como já ocorreu no Chile e vai ocorrer no Brasil em outubro —, mas também de pautar os novos governos progressistas na direção de reformas sociais e políticas que aprofundem a democracia na América do Sul.
O atual ciclo de governos de direita e extrema-direita, do qual Bolsonaro é o caso mais emblemático, mas que tinha na Colômbia sua maior força, nos mostrou que não bastam instituições democráticas mais ou menos consolidadas. É preciso que a violência política e a desigualdade sejam de fato combatidas para que democratização não seja apenas institucional, mas se enraíze em uma cultura cidadã mais efetiva.

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