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“Foi um horror. Eu estava com minha aluna no computador, preparando a apresentação para a Semana de Integração Acadêmica, quando começou a chover forte. Abri a janela e mostrei a força da chuva para ela. Logo depois, interrompi a reunião. Eram 16h30. Meia hora depois, meu filho veio correndo e disse que havia um barulho estranho e que parecia a queda de algo grande. Corremos para a varanda. Os vizinhos estavam apavorados. O morro que fica atrás da minha rua desabou. O morro despencou. Um lamaçal imenso desceu e tirou um fino do meu muro. Ficamos sem luz. O transformador pifou, o 4G também. Ficamos ilhados, isolados, sem dar nem receber informação. No meu bairro não tem sirene. Sou professora da UFRJ há 30 anos, moro em Petrópolis há 22. Nunca vi nada igual. Estou bem, mas senti muito medo e uma necessidade enorme de saber notícias dos outros colegas da UFRJ que moram em Petrópolis”.

O desabafo de Ana Luísa Palhares de Miranda, professora da Faculdade de Farmácia, revela a aflição de quem sobreviveu à tragédia de terça-feira (15), em Petrópolis, WhatsApp Image 2022 02 18 at 18.30.23mas retrata também uma característica entranhada na comunidade acadêmica da UFRJ: a solidariedade. Em menos de 12 horas, professores, estudantes e técnicos organizaram redes de apoio e coletaram doações para aliviar a dor dos petropolitanos. Só no Fundão, há quatro pontos de coleta — veja os endereços na página 2.  “Temos que nos ajudar. São situações muito dolorosas. Tenho aluno que perdeu quatro parentes. É de partir o coração”, lamentou a professora Mônica Lacerda, coordenadora de pós-graduação do campus da UFRJ em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, onde trabalham e estudam mais de dez docentes e 30 alunos moradores de Petrópolis. “Graças a Deus, não aconteceu nada com a minha casa nem com a minha família, mas na cidade foram muitas mortes e muitas perdas”.

Aluno do mestrado de Caxias, o professor Deivid Ribeiro de Souza, de 35 anos, perdeu a esperança, uma tia, um tio e dois primos. Os quatro eram moradores do Morro da Oficina, área desfigurada pela chuva e que integra um desolador mapa criado em 2017 pela Prefeitura de Petrópolis. Segundo o estudo, há 27 mil residências em locais de risco alto ou muito alto de deslizamentos na cidade. “Só encontramos os corpos do meu tio e de um dos meus primos. Não tenho mais esperança de que os outros dois estejam vivos. Minha família materna acabou. Só sobrou a minha avó”, lamenta. Dona Olinda foi salva pela escola. Tem 85 anos e está cursando a 5ª série do Ensino Fundamental. Estava no colégio na hora da tragédia. “Ela é danada, sempre quis aprender. Agora está inconsolável”, conta Deivid. Sua história é marcada por tempestades e descaso das autoridades. “Sou sobrevivente da enchente de 1988. Naquela época, minha outra avó faleceu e minha mãe perdeu a casa. Eu e minha mãe viemos morar em Itaipava, mas o resto da família ficou em Petrópolis. Em 2011, de novo, fomos atingidos pelas chuvas, ninguém morreu, mas nossa casa ficou a um palmo de ser alagada. O mais impressionante é que nenhum de nós jamais recebeu ajuda do governo para sair das áreas de risco. É uma história muito triste, um drama que se repete”.

A tristeza familiar de Deivid não ofusca sua capacidade de analisar a conjuntura política que molda as tragédias naturais e políticas na região serrana fluminense. “Ninguém mora em comunidade ou em área de risco porque quer. Mora por necessidade, por falta de alternativa. Petrópolis é vitima da especulação imobiliária. Qualquer pedaço de terra aqui vira condomínio de luxo”, lamenta o professor, que se desdobra entre o serviço de inspetor escolar na rede estadual, a docência em escolas particulares e o mestrado na UFRJ. “Com toda essa dor, é muito bonito ver a força da solidariedade. Quando fui pegar minha avó, vi um monte de gente se ajudando, gente que não tem nada dividindo o nada. Só tenho a agradecer”.

Gratidão é a palavra que se repete na voz acelerada da professora Sabrina Silva, de 31 anos, moradora da Rua Teresa, uma das mais atingidas pelas chuvas. A enchente arrastou o apartamento de sua irmã, as paredes de sua própria casa e inundou a morada de seus pais, um pedreiro e uma dona de casa. “Perdemos tudo. Casas, móveis, eletrodomésticos, roupas, documentos, histórias. Minha mãe estava sozinha com meus sobrinhos, um bebê de seis meses e um menino de três anos. Ela ligou para o meu cunhado, ele veio correndo, mas dois minutos depois de pegar as crianças, o apartamento desabou. Perdemos as coisas, mas estamos vivos”, pondera a mestranda do campus de Caxias, que se divide entre o curso e o magistério em escolas privadas da região serrana.  

“Meus colegas me ajudaram de uma forma impressionante. Recebi tudo: roupas, dinheiro, comida, carinho. Fui abraçada, fui agarrada por uma onda de solidariedade. Só tenho a dizer muito obrigada. Sou só agradecimento. Não tenho palavras”, diz a moça, dez horas depois de retornar aos escombros de sua casa para tentar resgatar seus dois cachorros, Thor e Sheide. “A Defesa Civil não me deixa levá-los. Hoje eu fui lá e quase consegui. Mas me disseram que uma pedra estava tremendo e que era arriscado. Eles têm comida e água, mas não sei até quando aguentam”.

A professora Mônica Lacerda não aguentou ver a dor dos alunos vitimados pelas chuvas. Docente da UFRJ há dez anos, moradora de Petrópolis, ela lidera uma campanha para arrecadar doações no campus de Caxias. Em 48 horas, com a parceria incansável da assistente social do campus, Michele Rocha, a campanha rastreou todos os alunos e docentes que vivem no município e coletou recursos financeiros, mantimentos, roupas. “Temos que nos ajudar. É uma tragédia muito grande. Hoje fui para a escola estadual aqui perto de casa. Virou abrigo. Estão precisando de tudo, mas principalmente de brinquedos. As crianças estão traumatizadas e não há nada para passar o tempo. Eu não tenho medo. Tenho que ajudar. O Estado é omisso. Eu não sou. Faço o que eu posso. Sou uma cidadã de Petrópolis, voto aqui, meus filhos foram criados aqui”.

O professor Eduardo Mach, 64 anos, mora em Petrópolis há mais de quatro décadas, já testemunhou várias enchentes, mas nunca viu uma chuva como a de terça-feira — choveu 259,8 milímetros em 24 horas, maior volume desde 1932, quando o Instituto Nacional de Meteorologia começou a medir o índice pluviométrico da região. “Choveu mais do que nunca. Não aconteceu nada com a minha casa, moro numa região que ficou intacta, mas estou muito preocupado, passo os dias ligando para os amigos. Temos muita gente da UFRJ que mora aqui. Só na Escola de Química somos cinco professores. Assim que eu percebi o tamanho da tragédia, entrei em contato com cada um. Estão todos bem, graças a Deus, mas a cidade está destruída”, lamenta Mach, titular da UFRJ e ex-diretor da Escola de Química. “Que eu saiba, a situação mais grave entre os professores foi a da professora Ana Luísa, da Farmácia”.

A professora Ana Luísa Palhares de Miranda, a mesma que aparece no começo dessa reportagem, ainda não se recuperou. Moradora de Castelânea, um dos bairros mais sacrificados pelas quedas de barrancos, não consegue dormir direito, fica pensando nos vizinhos, remói a lembrança de uma senhora idosa que não queria abandonar a casa destruída pela chuva, pragueja contra as autoridades que insistem no descaso, e lista cada um dos conhecidos da universidade que moram em Petrópolis. “Temos que nos ajudar. De terça para quarta, eu não preguei o olho. Quando a chuva passou, colocamos os celulares para carregar no carro e comecei a catar notícias da família e dos colegas da universidade”, conta a docente, filha de Mariana Miranda, uma professora aposentada da UFRJ, de 87 anos, nascida em Petrópolis, em 31 de janeiro de 1934, durante uma enchente. “As chuvas fazem parte da história de Petrópolis, mas o descaso, a repetição das tragédias, isso é culpa dos homens”.

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