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WhatsApp Image 2021 11 26 at 18.11.123O Enem 2021 teve como tema da redação “Invisibilidade e registro civil: garantia de acesso à cidadania no Brasil”, o que surpreendeu alunos e professores da educação básica. Mas a surpresa foi maior para Fernanda da Escóssia, jornalista — que trabalhou na Comunicação da AdUFRJ, entre 2018 e 2019 — e professora substituta da Escola de Comunicação da UFRJ. Um trecho de seu livro, “Invisíveis: uma etnografia sobre brasileiros sem documento”, foi citado na prova. A obra, resultado da tese de doutorado de Fernanda, denuncia a situação de pessoas que não têm acesso ou têm acesso limitado ao mínimo de direitos, como Saúde e Educação, por falta de documentos. O Jornal da AdUFRJ conversou com a professora sobre a sua pesquisa, a importância da repercussão do tema e o reconhecimento da ciência brasileira.

Jornal da AdUFRJ – Como você chegou a este tema de pesquisa?
Fernanda da Escóssia – Descobri esse tema como repórter. A primeira matéria que eu fiz sobre pessoas sem documentos foi em 2003, na Folha de S.Paulo. Naquela ocasião, percebi que era um problema que passava de uma geração para outra e que tinha raízes profundas, históricas e estruturais na sociedade brasileira. Desde então, persigo o tema. No doutorado, precisei, como diria o (Pierre) Bourdieu (sociólogo francês), fazer um salto epistemológico, olhar o meu objeto agora com as ferramentas de outras ciências, as ciências sociais, transformando um problema social em um problema sociológico.WhatsApp Image 2021 11 26 at 18.11.131

Quais direitos são impedidos para uma pessoa sem documentos?
Uma pessoa que não tem certidão de nascimento não tem nenhum outro documento. Então, pela ordem, ela não tem CPF, não tem identidade, se for homem não tem certificado de reservista, não tem título de eleitor, não tem carteira de trabalho, não tem passaporte e, quando morre, é registrada em uma cova sem identificação. Uma pessoa sem documentos é excluída desse mundo dos direitos. Ela não vota, não tem emprego formal, não pode ser beneficiária dos programas sociais, não pode se aposentar e tem acesso limitado às políticas de saúde e educação. Uma senhora, no livro, tinha um câncer, mas não podia ser operada porque não tinha documentos. Durante muitos anos, ela só teve acesso ao atendimento emergencial. É um acesso limitado ao sistema de saúde. No caso da educação, a escola não vai permitir que um estudante sem documentos estude. Por tudo isso, pessoas sem documentos têm acesso limitado às políticas de saúde e educação, e são basicamente excluídas desse outro conjunto de direitos.

Segundo a sua pesquisa, houve uma queda no número do sub-registro de crianças entre 2003 e 2019, e um dos motivos foi o Bolsa Família. O fim do programa pode representar um retrocesso nesse cenário?
O Bolsa Família algum dia será visto também como um programa de acesso à documentação, porque, ao exigir que os beneficiários tivessem documentos, acabou motivando o próprio Estado a se mexer para oferecer e facilitar o acesso à documentação para essas pessoas. O fim do Bolsa Família é preocupante sob vários aspectos e, também, sob o aspecto da questão da documentação. O que se espera é que esse programa que veio para substituí-lo pelo menos mantenha essa preocupação.  

O governo Bolsonaro nunca priorizou programas sociais. Esta falta de atenção pode prejudicar um sistema que estava sendo criado para incluir essas pessoas?
O governo Bolsonaro é refratário à observação dos direitos. É preocupante, claro. Em 2007, o governo Lula implementou o Compromisso Nacional pela Erradicação do Sub-registro. O programa não foi extinto, mas as pessoas que estão mais atuantes nestes comitês dizem que elas têm tido mais dificuldades. A erradicação do problema exigiria uma ação federal mais forte e radical sobre registro. Tem uma coisa muito simples que o governo podia fazer, um bom censo. O censo de 2010 perguntou sobre crianças de até dez anos sem documento. O próximo censo, que já foi adiado, perguntará apenas sobre crianças de até cinco anos sem documentos. Por que o governo não repete a pergunta da PNAD de 2015, que perguntava sobre pessoas de qualquer idade sem documento? Mas o governo esvaziou o censo e não mostra nenhum interesse em fazer esse diagnóstico completo.  

Como se sentiu, como pesquisadora, vendo um tema tão importante quanto o da inclusão ser o tema da redação do Enem?  
Isso é muito importante para mim. Algumas pessoas consideraram o tema difícil para alunos do ensino médio, mas um tema é difícil quando ele não é tratado, não é pensado e discutido. Ele não estava no nosso radar de preocupações. Assim como, há algum tempo, a desinformação também não estava no radar das nossas preocupações e hoje qualquer aluno de ensino médio sabe fazer uma redação sobre desinformação. Essa é a minha realização como jornalista, pesquisadora e professora. É muito gratificante ver que o tema da sua pesquisa serviu para a sociedade discutir um assunto que fala da exclusão brasileira. Agora temos reportagens, pessoas discutindo o tema da redação, professores de ensino médio atentos ao tema e três milhões de candidatos pensando sobre isso no domingo. Porque, na redação do Enem, o aluno tem que propor alguma iniciativa capaz de resolver o problema apontado na prova. Imagina que há três milhões de jovens pensando em algo que possa ser feito para diminuir a exclusão documental brasileira! Fiquei felicíssima.

O governo ataca a Ciência. O que significa, neste contexto, ter a sua pesquisa como tema de redação do Enem?
A Ciência assume a sua centralidade nesse momento, mostra o que é capaz de oferecer para o país. É uma pesquisa em ciências sociais pautando a discussão na sociedade. Eu sou professora substituta de uma universidade pública, vemos as dificuldades que o ensino público superior tem enfrentado. Vemos as dificuldades que os pesquisadores têm enfrentado. Ver a pesquisa acadêmica no dia a dia das pessoas, mostrando a sua relevância, é muito recompensador.

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