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Dani Ramos/DivulgaçãoHistoriadores e servidores alertam sobre uma preocupante política de desmonte do Arquivo Nacional, uma das instituições mais antigas do país. Gestores sem ligação com a área, problemas de infraestrutura e de pessoal e um polêmico decreto do governo Bolsonaro estariam comprometendo as atividades do órgão federal que acabou de completar 184 anos de fundação.
“A rotina do Arquivo Nacional é muito especializada. Demanda pessoal muito qualificado. Preocupa que os trabalhos não estejam sendo bem-feitos”, argumenta Carlos Fico, professor titular de História do Brasil do Instituto de História da UFRJ, em relação aos diretores nomeados pelo governo Bolsonaro — o atual, Ricardo Borda d’Água, que tomou posse no cargo em novembro do ano passado, era chefe de segurança do Banco do Brasil. Atirador esportivo, Borda já foi reconhecido como “colaborador emérito” do Exército.
O estreito vínculo entre o governo e os militares também cria desconfiança em relação à guarda do imenso acervo documental da ditadura militar brasileira, armazenado nas unidades do Rio e de Brasília do Arquivo Nacional. “Como se não bastasse, há o problema ideológico”, continua Fico. “É muito preocupante que gente tão retrógrada e reacionária esteja à frente do Arquivo Nacional”, completa.
O professor do Instituto de História fala com a experiência de quem frequentou o Arquivo Nacional a “vida inteira”, com exceção do recente período de pandemia. Foi naquela instituição, ainda nos anos 90, com a ajuda de uma amiga arquivista já falecida, Maria Odila Fonseca, que o docente teve a chance de pesquisar o primeiro grande acervo até então secreto da ditadura. “Fui o primeiro historiador brasileiro a fazer um livro — “Como Eles Agiam” (Editora Record, 2001) — sobre os órgãos de repressão da ditadura militar. Tive essa honra graças a uma arquivista”, lembra.
O receio com o viés ideológico implantado na instituição ultrapassa a gestão dos documentos. Fico observa que um concurso de monografias com base em fontes documentais do período do regime militar no Brasil deveria premiar os vencedores com a publicação dos trabalhos em formato de livro, o que não ocorreu na última edição. E já se passaram mais de três anos desde o resultado do prêmio Memórias Reveladas, em setembro de 2018. “Vemos que não há boa vontade da atual direção do Arquivo em relação a esse projeto”, afirma Fico.
DOCUMENTOS SOB RISCO
Outro componente da crise é o decreto nº 10.148, de 2019, assinado pelo então ministro da Justiça Sérgio Moro. “Ao Arquivo Nacional, cabe a consolidação dos procedimentos arquivísticos na administração pública, desde a produção até o descarte. Bolsonaro e Moro mudaram isso”, explica Jessie Jane, professora aposentada do Instituto de História. “O decreto mudou parte do decreto anterior, naquilo que fiz respeito à supervisão do Arquivo Nacional em relação aos documentos a serem descartados. Entenderam que permaneciam necessárias apenas as normas já definidas pelo Arquivo a serem aplicadas pelo próprio órgão produtor do documento”.
A medida, aparentemente burocrática, pode evitar que documentos importantes para futuras pesquisas sobre o governo Bolsonaro sejam eliminados, de acordo com a docente. “Imagine isso no Ministério do Ambiente. Imagine isso no ministério da Damares (Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos). Imagine isso nas empresas estatais que estão sendo dilapidadas. É muito grave”, critica Jessie, que já dirigiu o Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, de 1999 a 2002.
SEM REAJUSTE
E SEM CONCURSO
Internamente, os técnicos do Arquivo também estão preocupados com os rumos da instituição. “A principal preocupação é que ocorra no Arquivo o que já aconteceu em diversos órgãos da administração pública federal, como Ibama, Casa de Rui Barbosa e Funai: um esvaziamento e um desmonte do órgão”, desabafa Eduardo Lima, presidente da Associação Nacional dos Servidores do Arquivo Nacional.
A entidade realizou uma reunião com o diretor do Arquivo após a exoneração e remanejamento de servidores que ocupavam cargos de direção, no fim do ano passado. Existe a suposição de que as mudanças ocorreram após os profissionais expressarem preocupações com a política institucional. “A direção se defendeu das acusações, afirmando que o Arquivo passa por um processo de mudanças administrativas e que essas mudanças continuarão acontecendo”, disse Eduardo.
Os funcionários cobram reposição da inflação desde 2015, último ano em tiveram reajuste, e mais concursos. Atualmente, parte do quadro de pessoal é preenchida por servidores cedidos de outros órgãos federais. “Outra reivindicação dos servidores é a adoção de critérios democráticos para eleição do diretor-geral. Isso eliminaria uma série de problemas que o órgão vem tendo com indicações de pessoas que pouco têm a ver com a área”, acrescenta o dirigente da associação.
Mas os problemas não são apenas de ordem política. “Nesse momento, o Arquivo está com um problema no ar-condicionado central do conjunto tombado (o prédio foi tombado pelo IPHAN em 1938). Além de afetar a saúde dos servidores que têm que trabalhar nesse calor carioca, afeta também o acervo que fica exposto a uma maior proliferação de fungos. Até agora o problema não foi solucionado”, diz Eduardo. A previsão do conserto é até o fim do mês.
RESPOSTA DO GOVERNO
Em um longo comunicado disponível no site do Arquivo Nacional (AN), a diretoria se defende das críticas. Diz que as mudanças dos últimos anos fazem parte de “um amplo processo de aprimoramento institucional para o efetivo cumprimento de suas competências legais”. E que “seus projetos e ações estão previstos e detalhados no seu Planejamento Estratégico Setorial para o período 2020-2023”.
A direção também nega que o decreto do governo Bolsonaro de 2019 “abra caminho para a eliminação indiscriminada de documentos públicos e incorra no esvaziamento das competências” do Arquivo Nacional. De acordo com o comunicado, as regras visam aprimorar as atividades de gestão de documentos. “E tudo isso, evidentemente, sem prejuízo de salvaguardas contra a eliminação de documentos de valor histórico, probatório ou informativo”, acrescenta um trecho. Também informa que o orçamento do órgão vem sendo ampliado, apesar de todo o cenário de restrição fiscal. “Para 2022, o orçamento será 9% maior em relação a 2021, chegando a R$ 31,1 milhões”.
Até o fechamento desta edição, a assessoria de imprensa do órgão não respondeu aos questionamentos da reportagem sobre as demais críticas apresentadas pelos professores e pela associação local dos servidores.
184 ANOS DE HISTÓRIA
Criado em 2 de janeiro de 1838 como Arquivo Público do Império, o Arquivo Nacional atua na gestão dos documentos produzidos em todos os órgãos federais e exerce a função de salvaguarda de importantes acervos da história do país.
Com unidades no Rio e em Brasília, o órgão guarda milhões de documentos, fotografias, desenhos, mapas, filmes e registros sonoros. Entre eles, alguns “tesouros”, como os originais da Constituição de 1824, da Lei Áurea e da sentença proferida contra os líderes da Conjuração Mineira de 1792.
A sede, no Rio, fica em um prédio construído em estilo neoclássico e tombado em 1938 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nas proximidades da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ.
O fluxo de pesquisadores brasileiros qualificados que deixam o país é maior do que daqueles que regressam do exterior. A debandada de cientistas, percebida intuitivamente pela comunidade universitária, é confirmada por um estudo preliminar do Observatório de Ciência, Tecnologia e Inovação (OCTI), do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE). “A evolução de coautores que saem do Brasil e passam a assinar artigos com a filiação no exterior é maior do que a evolução de brasileiros com a filiação no exterior que passam a coautorar artigos com a filiação no Brasil”, explicou Márcio de Miranda Santos, diretor-presidente do CGEE.
Driblando as dificuldades para a produção de dados sobre a fuga de cérebros, o observatório acompanha as mudanças na identificação de artigos científicos de brasileiros, atualmente indexados na Web of Science. A plataforma internacional e multidisciplinar abrange uma amostragem de 1 milhão e 135 mil coautores brasileiros, responsáveis por 424 mil artigos publicados entre 2015 e 2020.
A preocupação em relação à evasão de mestres e de doutores mobilizou o painel “Fico ou Não Fico? Eis a questão. Jovens cientistas no Brasil de hoje”, promovido pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), no último dia 10. O título da mesa da SBPC faz alusão à decisão do príncipe regente D. Pedro I em permanecer e emancipar o Brasil de Portugal em 1822. O evento abre a agenda de comemorações da SBPC pelo bicentenário da Independência.
Foi durante o encontro virtual que o diretor-presidente do CGEE observou que “embora não seja possível precisar os números ainda”, é seguro afirmar que o saldo negativo entre pesquisadores qualificados que partem e os que retornam ao país “é uma grande tendência”. O quadro ganhou contorno a partir do depoimento de quatro jovens que abordaram diferentes nuances da falta de perspectiva profissional hoje no Brasil.
“Está difícil fazer planos”
“Como fazer planos se a gente não tem uma estabilidade política e econômica?”, questionou Helena Russo, do Instituto de Química da Unesp Araraquara (IQAr). Com as malas prontas para um pós-doutorado na Universidade da Califórnia, em San Diego (Estados Unidos), a pesquisadora diz que seu horizonte era desenvolver uma linha de pesquisa própria no país, depois da temporada fora. “Eu penso, sim, em voltar e ficar no Brasil. Mas isso vai depender muito da situação em que o país vai se encontrar daqui a três, quatro, cinco anos. Infelizmente, se não houver muitas oportunidades aqui e eu conseguir algo no exterior [migrar definitivamente] é uma realidade”, pontuou.
“Fiquei em um limbo sem bolsa. Logo depois, acabei engravidando”
A paixão pela Ciência mobiliza Patrícia Cortelo, formada em Química, desde cedo. “O bichinho da Ciência me picou durante o primeiro experimento na escola. Desde ali, pensei: vou ser cientista”, contou. Tudo ia bem na trajetória acadêmica, até que, em meados de 2015, ela percebeu uma rápida decadência no quadro. “Eu comecei a sentir a escassez de bolsa, a escassez de oportunidade”, lembrou. Depois do doutorado na Universidade de Nevada, nos Estados Unidos, ela voltou para o país para aplicar o conhecimento lá adquirido, mas não teve sucesso. “Fiquei em um limbo sem bolsa. Logo depois, acabei engravidando do meu filho e dei uma pausa na minha carreira. Deixei-a de lado e fui vivenciar a minha maternidade”.
“Não havia vagas nem para professor nem para pesquisador”
Por incrível que pareça, Raul Lopes está em um pós-doutorado na Université Paris Dauphine, na França, por falta de opção. Depois que concluiu o doutorado na área de Algoritmos, pela Ciência da Computação, o jovem pesquisador se deparou com o dilema: “E agora, o que vai ser da minha vida profissional?”. “Infelizmente, eu tenho contas a pagar”, brincou ele enquanto fazia seu testemunho pessoal. “Eu me vi em uma situação em que não havia vagas nem para professor nem para pesquisador em universidade federais e estaduais perto de mim”, contou. A única alternativa foi concorrer fora. E completou: “Considero isso uma pena, porque, fazendo aqui uma conta rápida, o Brasil gastou muito dinheiro na minha formação”.
Fora: contratos temporários e subalternidade
O tema soberania científica tem tudo a ver com a trajetória de Vinicius Kaue. O doutor em Antropologia dedica-se à análise das estratégias da Índia para aproveitar a presença de seus cientistas na Europa. Para ele, o modelo indiano acerta ao investir na consolidação de redes de colaboração globais que beneficiem o país de origem — e não focar no retorno do pesquisador. Kaue considera que as regras rígidas das universidades e das agências de fomento brasileiras desestimulam o regresso. Por outro lado, desmistifica a noção idílica de viver fora: “A perspectiva de ficar na Europa implica contratos temporários sem fim, durante muitos anos. E em uma posição muitas vezes de subalternidade por ser brasileiro ou latino-americano”.
Olho no amanhã
Entidades científicas expressam apreensão em relação à desvalorização da produção acadêmica nacional. “É claro que a Ciência é altamente internacionalizada, mas isso não substitui o fato de que é fundamental termos pesquisadores e institutos de pesquisa com recursos para trabalhar”, avaliou o presidente de honra da SBPC e docente da UFRJ, Ildeu Moreira.
Entre os aspectos que agravam o desinteresse de jovens pesquisadores em manter-se no Brasil, a pesquisadora Jaqueline Godoy Mesquita (UnB e ABC) destacou os cortes orçamentários radicais para bolsas e fomento. Mas ela incluiu na lista de “fatores desfavoráveis” o clima hostil à Ciência, negacionista, hoje forte no país.
O presidente da SBPC, Renato Janine Ribeiro, é ainda mais duro na crítica à ordem de prioridades políticas do momento. “É muito esquisito você pensar que, aos 14 e 15 anos, um aluno de escola militar já está contando seu tempo para aposentadoria. De modo que temos oficiais generais que antes dos 50 anos já estão aposentados, com vencimentos integrais, reajustados e aumentados, nos últimos anos, em termos reais, enquanto muitos doutores estão com 30 anos e ainda não têm emprego fixo. Estão vivendo com bolsa e pós-doc”, comparou.
MAYRA GOULART
Vice-presidente da AdUFRJ, professora de Ciência Política e de yoguini
Coluna publicada quinzenalmente no Jornal da AdUFRJ
Um novo ano começa. É um momento propício para renovarmos nosso sankalpa, termo que, em sânscrito, significa resolução pessoal, intenção, construção mental ou propósito. O sistema do Yoga, como o budismo, possui uma orientação experimental. Por essa razão, sua doutrina não se apresenta como conjunto de postulados ou princípios abstratos, mas como indicações para serem postas em prática e, subsequentemente, avaliadas por cada indivíduo, livre para julgar se elas estão ou não contribuindo para a redução do seu sofrimento.
Sob esta perspectiva, o sankalpa se apresenta como uma técnica que consiste na visualização e reafirmação de um propósito, a ser realizada antes, durante ou depois dos momentos de prática e reflexão pessoal. Tal mentalização pode, ou não, implicar em vocalização. Caso seja vocalizado, o sankalpa funcionaria de modo análogo a um mantra, combinações de sons emitidos repetidamente para a concentração da mente e canalização da energia.
Assim como o Yoga de maneira geral, esta técnica pode ser compreendida de modo mais ou menos místico, ou seja, seu entendimento pode ser modulado conforme o grau de ceticismo do praticante. Digo isso porque esta professora que vos fala é particularmente cética.
Simplificando. Para aqueles que acreditam que o mundo é feito de energia, a ideia é que, quando canalizamos nossa energia mental para um foco, teríamos uma maior capacidade de influir no conjunto de energias que nos circundam. Para aqueles que não acreditam em energia, o sankalpa pode ser compreendido como uma técnica de reforço dos propósitos internos que pode auxiliar a evitar eventuais mecanismos de fuga, negação e autossabotagem.
O estabelecimento do sankalpa é completamente individual, embora o professor possa dar algumas orientações. A minha sugestão é uma frase pequena e simples, conjugada no presente.
Exemplos que eu utilizo na minha prática pessoal:
Desejo estar mais atenta.
Desejo me conectar com
o momento presente.
Desejo acessar minha
paz interior.
Desejo ser feliz.
Como vocês podem perceber, eu evito metas que sirvam de gatilho para minha imaginação, ou para mecanismos de negação, uma vez que utilizo o sankalpa como técnica de concentração, mas também de reafirmação do meu compromisso com os propósitos gerais do Yoga.
Na minha forma pessoal de vivenciá-lo e ensiná-lo, o Yoga aparece como um sistema holístico de conduta, que almeja aumentar a autoconsciência e, por conseguinte, a capacidade de lidar com as vicissitudes da vida. Acredito ser mais simples colocar as coisas nesses termos, evitando grandes considerações sobre seu objetivo último que, segundo os textos clássicos, é definido pelo conceito de iluminação, ao meu ver demasiado abstrato para iniciantes e céticos.
Por fim, cabe ressaltar que, embora evite estabelecer meu sankalpa a partir de temáticas propriamente “mundanas”, isso não significa que não seja válido ou útil fazê-lo. Nesse caso, a técnica estaria sendo mobilizada como ferramenta de reprogramação mental, que nos auxilia a redobrar a atenção acerca das reações (mais ou menos conscientes) que são deflagradas diante de um propósito novo, ou que incorra em uma ruptura nos nossos padrões mentais usuais, que na filosofia do Yoga recebem o nome de samskaras.
Essas reações mentais podem assumir a forma de problematização (Eu desejo isso mesmo?), negação (Isso é muito difícil!), autocomiseração (Será que eu mereço isso?), ou demais mecanismos de autossabotagem (Não consigo. Não posso). O propósito da técnica, assim como das demais que compõem o sistema do Yoga, é aumentar a consciência sobre tais armadilhas mentais. A proposta é perceber quando esses pensamentos surgem, reconhecendo-os e analisando-os individualmente, evitando, porém, a tendência de identificação do sujeito do pensamento com aquilo que está sendo pensado. Reconhecer os pensamentos como fluxos transitórios que não correspondem à nossa essência, ou à descrição da realidade, certamente evitará diversos sofrimentos desnecessários.
Que tal experimentar?
Durante as celebrações do 8 de março do ano passado, associações e sindicatos docentes — a AdUFRJ, entre eles — reunidos no Observatório do Conhecimento projetaram mensagens sobre as mulheres na Ciência em pontos do Rio e de outras cidades do Brasil. As projeções foram filmadas, e o resultado do trabalho é um vídeo de quatro minutos embalado pela música “Dentro de cada um”, interpretada por Elza Soares. Fica aqui nossa pequena homenagem à grande cantora que nos deixou esta semana: bit.ly/ElzaSoaresAdUFRJ.
SIMPÓSIO DE QUÍMICA e Modelagem Molecular reuniu alunos, ex-alunos e colaboradores do professor Bicca, em 2013, quando completou 70 anos - Foto: Informativo IQUm cientista brilhante, de posições firmes, dedicado aos alunos. Um homem culto, elegante e querido por todos. Aos colegas e amigos de Ricardo Bicca de Alencastro, não faltam elogios para descrever o professor emérito, que faleceu em 16 de dezembro último. O Instituto de Química ainda chora a perda do multifacetado mestre, vítima de uma pneumonia, aos 78 anos.
“O professor Bicca deixa muitas saudades. Fui diretora do Instituto de Química por três gestões e ele participava de todas as reuniões de Congregação e eventos. Era muito colaborativo”, diz a professora Cássia Turci, decana do Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza. “O professor Bicca amava a UFRJ. Muitas vezes, pegava carona com ele às 10 horas da noite, após as aulas nos cursos de licenciatura. Como eu, ele gostava de dar aula à noite também”, lembra. Quando completou 60 anos, o docente fez questão de fazer uma festa no Instituto de Química. “Estava muito feliz. Foi muita gente e ele me disse que ali estava a família dele”, observou Cássia.
Bicca era conhecido por falar pouco e baixo, mas a postura não o impediu de participar ativamente da vida política e administrativa da universidade. Chefiou o Departamento de Química Orgânica, ocupou o cargo de diretor do instituto entre 1976 e 1980, e integrou o Conselho Universitário por duas vezes. A primeira, quando era presidente do Diretório Central dos Estudantes da então Universidade do Brasil, em 1964 e 1965.
Em uma rápida pesquisa em edições digitalizadas do jornal Correio da Manhã, é possível encontrar registros do jovem dirigente do DCE, no início da ditadura militar, defendendo colegas da Faculdade Nacional de Direito de uma punição, criticando uma proposta de cobrança de anuidade aos alunos das federais ou propondo um fundo de assistência estudantil.
REGISTRO de uma viagem, no início de 2006, a Paris - Foto: Acervo pessoal/Carlota Parreira
O ex-líder do DCE, que se tornou professor em 1969, continuou a apoiar os estudantes. Bancava viagens para congressos, pagava bolsas e, às vezes, se tornava fiador daqueles que vinham de fora do Rio e precisavam alugar algum apartamento na cidade. Primeiro aluno de pós-doutorado dele, de 2000 a 2002, o hoje professor Osvaldo Andrade Santos Filho, do Instituto de Pesquisas de Produtos Naturais da UFRJ (IPPN/UFRJ), ainda sente bastante o falecimento do antigo mestre e é testemunha de sua generosidade. Ele recorda que, antes do surgimento do portal de periódicos da Capes, Bicca mantinha no laboratório um acervo atualizado, à disposição dos alunos e dos colegas docentes. O controle era feito de forma rigorosa por meio de um livrinho preto, com anotação do nome e data do empréstimo. “Naquela época, o acesso era mais difícil. Eram livros avançados que não podiam ser comprados em uma Saraiva, por exemplo. E ele fazia questão de importar esses livros, com dinheiro do próprio bolso, para o grupo de pesquisa”.
O professor Pierre Mothé Esteves, ex-aluno de Bicca nos anos 1990, também recorda de outro “mimo científico” do laboratório: um microcomputador PC-XT, modernidade da época, com livre acesso a todos, mesmo para quem não era aluno dele. “Era praticamente um ‘point’, um Jobi científico”, brinca, em referência ao famoso bar do Leblon. Hoje ocupando a mesma sala (a 622, do IQ), Pierre pretende manter o estilo do espaço. Herdeiro até de uma cadeira de escritório que pertencia a Bicca, o docente vai reformar o móvel como uma forma de homenagem.
LEGADO EXTENSO
Cientista brilhante, além de formar mestres e doutores que hoje lecionam na própria UFRJ ou em outras instituições, Bicca deixou extenso legado acadêmico. “O maior legado do professor foi como mantenedor da área de Química Estrutural e da Físico-Química Orgânica dentro da UFRJ. Ele sempre dizia que a função está na estrutura. Era um arquiteto molecular nato”, explica Pierre. “Ele nos fez perceber que estamos na era das ciências moleculares, ou seja, áreas do conhecimento que têm como objeto central as moléculas e os átomos, como Física Molecular, Biologia Molecular, Nanotecnologia, Gastronomia Molecular”, completa.
“Além das diversas traduções, escreveu livros, capítulos de livros ou artigos sobre temas como Nomenclatura de Compostos Orgânicos, História da Química no Brasil e Físico-Química Orgânica”, acrescenta a professora Magaly Girão Albuquerque, colega de Bicca no Departamento de Química Orgânica.
Magaly, orientada por Bicca no mestrado e no doutorado, na década de 1990, observa que o docente foi um dos pioneiros da modelagem molecular na área de Química Medicinal. “Foi um dos fundadores do Simpósio Brasileiro de Química Medicinal”.
A pandemia foi muito dura para o ex-orientador que, mesmo aposentado, frequentava o Fundão diariamente. E duas vezes por semana, após um acidente doméstico em que quebrou uma das pernas. Mas, com o início das medidas de distanciamento social, não voltou mais ao instituto. “Acho que isso o afetou muito”, lamenta. “Gosto de pensar que o professor Bicca não virou uma estrela; virou uma constelação. Ficará com certeza sempre na nossa memória, dos seus ex-alunos, colegas, amigos e familiares”, conclui Magaly.
AMANTE DA MÚSICA E DOS LIVROS
EM 1997, mestre se apresentou no encerramento da JIC com um trecho da cantata Carmina Burana, de Carl Orff - Foto: divulgaçãoFora da UFRJ, Bicca também deixou uma legião de admiradores. A professora de inglês Carlota da Cunha Parreira ainda lamenta a perda de Bicca, amigo desde 1979. “O Ricardo foi a pessoa mais correta e honesta que eu conheci na minha vida”. Carlota revela um lado pouco conhecido do mestre para quem não fazia parte de seu círculo mais próximo de relações. “Ele cantou no coral da PUC e no coral de Câmara de Niterói”.
Também adorava ler. No horário do almoço, estava sempre com um livro a tiracolo em algum dos restaurantes ou trailers do Centro de Tecnologia. “O Ricardo amava poesia. O poeta preferido dele era o Fernando Pessoa e todos os seus heterônimos”, lembra.
O próprio docente escreveu poemas. E seis deles foram musicados por Guilherme Bernstein —professor de regência e prática de orquestra da UniRio — e transformados no livro “Rosto no espelho”. Apreciador de música clássica, Bicca frequentava concertos e não era incomum encontrar o ex-reitor Aloisio Teixeira nestas oportunidades. “Eles se davam muito bem”, conta Carlota.
A professora de inglês deu muitas aulas para ex-estudantes do professor Bicca que viajavam ao exterior e não tem dúvida sobre o amor dele à universidade. “A vida do Ricardo era a UFRJ. Ele não tinha filhos, mas acho que o laboratório e os alunos eram os filhos dele”, completa.