Uma nova ameaça paira sobre a comunidade científica brasileira: o projeto de lei 330/2022. De autoria do senador Mecias de Jesus (Republicanos-RR) e em tramitação na Comissão de Ciência e Tecnologia (CCT) do Senado Federal, o PL 330 pretende criminalizar a má conduta científica e vem recebendo severas críticas de especialistas e entidades representativas da Ciência brasileira. O projeto prevê o enquadramento judicial de práticas como falsificação de dados, manipulação de resultados e ocultamento de informações sobre voluntários.
Na semana passada, a UFRJ divulgou uma nota técnica listando uma série de contradições e ambiguidades do PL (leia abaixo um resumo). Um dos signatários é o reitor Roberto Medronho, que foi duro ao comentar o projeto para o Jornal da AdUFRJ. “Embora trate de uma questão importante, que é a integridade, o PL 330 é absolutamente inadequado e busca criminalizar a atividade científica sob a égide de combater a má conduta”, afirmou. “Ele é tão abrangente que pode envolver criminalmente pessoas que utilizem eventualmente um determinado procedimento metodológico de que outros cientistas discordem. Isso é crime? Esse projeto não deve prosperar”.
O professor acredita que, se aprovado, o projeto será um duro golpe para a pesquisa no país: “Temo que os mais jovens pesquisadores, os doutorandos, por exemplo, fiquem com medo de fazer pesquisa pelo temor de serem criminalizados. Temos que zelar pelos nossos comitês de integridade e de ética, pela revisão por pares, e pelas retratações quando há alguma inconsistência”, afirmou.
REFERÊNCIA NO MUNDO
No último dia 24, uma audiência pública na CCT do Senado debateu o PL 330. O autor do projeto não estava presente para ouvir as críticas feitas por especialistas — o Jornal da AdUFRJ fez contato com o gabinete do senador Mecias de Jesus, mas não houve retorno até o fechamento desta edição. Na justificativa do PL 330, Mecias sustenta que o objetivo é “garantir mais transparência e responsabilidade na produção científica brasileira”.
Uma das especialistas ouvidas na audiência, a presidenta da Capes e ex-reitora da UFRJ, professora Denise Pires de Carvalho, foi enfática ao afirmar que o projeto é um equívoco. “Muito me preocupa um projeto de lei que criminaliza os cientistas e a Ciência, num país que é referência mundial em integridade científica. E que isso possa levar à perseguição de cientistas como a que sofreu Galileu Galilei, que foi preso por defender que a Terra gira em torno do Sol”, lembrou.
Denise destacou que o país evoluiu muito no campo da integridade cientítica: “Falo não como presidenta da Capes, mas como cientista que sou desde a época de minha iniciação científica, quando fui treinada nos laboratórios da UFRJ. Quando defendi minha tese, em 1994, o Brasil não tinha ainda as instituições que tem hoje. Precisamos tomar muito cuidado com um projeto de lei que tenta criminalizar a atividade científica por pessoas que sequer cientistas são”.
FISCALIZAÇÃO
Para a presidenta da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Helena Nader, a motivação do projeto é legítima, mas a solução apresentada “não é a mais adequada e nem a mais eficaz”. “A Ciência é uma atividade baseada em incertezas. Erros metodológicos ou discordâncias entre grupos não podem ser tratados como crimes. O risco é criminalizar a própria prática científica, inibindo a inovação e a criatividade”, sustentou.
Helena explicou que o Brasil já tem diversos mecanismos de fiscalização do trabalho científico, como a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) — vinculada ao Conselho Nacional de Saúde (CNS) —, responsável por avaliar os aspectos éticos das pesquisas com seres humanos, e o Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal. “O Direito Penal deve ser reservado a situações extremas de dolo e dano comprovados. Para todos os outros casos, os mecanismos existentes são suficientes, e precisam ser valorizados e fortalecidos”.
Na mesma linha, o diretor da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Samuel Goldenberg, lembrou que as universidades e demais centros de pesquisa do Brasil vêm fortalecendo suas políticas internas de controle. “A condenação de cientistas, além de contribuir para a distorção do debate público, pode reforçar discursos de negação e antagonismo à própria Ciência”, recordou.
Pró-reitor de Pòs-graduação e Pesquisa da UFRJ, o professor João Torres chama a atenção para o ítem V do PL330 — “usar de maneira inadequada dados estatísticos”. “A redação é vaga, imprecisa e, na prática, confunde divergência metodológica legítima com dolo científico. Essa ambiguidade abre espaço para transformar controvérsias técnicas em litígios penais, inibindo o debate acadêmico e a correção normal da literatura, mecanismos basais da autorregulação científica”, diz.
Físico com larga experiência em colaborações internacionais, João Torres observa que a estatística “não é uma tábua com dez mandamentos”: “Análises estatísticas podem seguir paradigmas diferentes e, mesmo dentro de cada paradigma, há vasta escolha de modelos, testes e estratégias de ajuste. Não é raro que conclusões divirjam. Criminalizar ‘uso inadequado’ ignora essa pluralidade. O item V, tal como redigido, não distingue fraude de divergência metodológica e, por isso, fragiliza a Ciência que pretende proteger”.
Principais Trechos da Nota Técnica da UFRJ sobre o PL 330/2022
1. “Má conduta científica”
e erro honesto
“O PL 330 se apropria do termo ‘má conduta científica’ de forma vaga e, ao mesmo tempo, descomprometida com a complexidade do termo em um contexto de produção científica internacional. (...) O PL 330 trata má conduta e erro honesto, ou mesmo discordâncias metodológicas, como se fossem equivalentes. (...) Criminalizar esse e outros tipos de abordagens interpretativas abriria espaço para a judicialização indevida do próprio debate científico, transformando divergências acadêmicas em litígios penais, com grande potencial de dano à reputação e à carreira dos cientistas envolvidos.”
2. Papel das publicações e correção da literatura científica
“O PL 330 não leva em conta que a correção da literatura científica é parte da autorregulação da ciência, com publicação de correções e retratações para as quais as justificativas são públicas. (...) Em publicações científicas, caso envolva manipulação de dados experimentais, como edição inadequada de imagens, por exemplo, com impacto direto na interpretação dos resultados, também será submetida a análise de especialistas no âmbito editorial e, se necessário, das instituições envolvidas. (...)”
3. Plágio e insegurança jurídica
“O PL 330, em sua configuração, inclui o plágio como parte integrante de ‘má conduta científica’, o que segue o consenso científico e de políticas de integridade científica que se estabeleceram ao longo das últimas décadas. (...) Na ciência, plágio inclui ideias, resultados, processos e texto (cuja extensão já é subjetiva). (...) Há nessa integração proposta pelo PL 330, que, portanto, criminaliza o plágio no âmbito da ‘má conduta científica’, uma perigosa insegurança acadêmica e jurídica, com risco de decisões arbitrárias e apressadas.”
4. Autoria e
responsabilidades
partilhadas
“Ao criminalizar a ‘má conduta científica’ em terreno frágil e com qualificações vagas e desarticuladas com a cultura científica e suas melhores práticas para fortalecer sua autorregulação, o PL também desconsidera os papéis e responsabilidades associadas à autoria científica. (...) Nesse sentido, a possibilidade de tal erro honesto ser mal interpretado por um denunciante criaria um ambiente de medo e seria um desincentivo para atrair jovens para a carreira científica.”
5. Perspectiva equivocada e enviesada por casos pontuais ocorridos na pesquisa em saúde
“Como já descrito, o PL 330 se sustenta, majoritariamente, em casos envolvendo a pesquisa com seres humanos, com fundamento em irregularidades pontuais (...) Essa extrapolação é ingênua e arriscada. (...) Propor esse tipo de medida, e com base em episódios pontuais, impacta a dinâmica de pesquisa em toda a ciência brasileira, bem como aspectos sobre a liberdade e a criatividade científicas que, mais do que nunca, precisam ser cultivadas.”
Considerações finais
No que tange o tratamento da ‘má conduta científica’, o PL 330 desalinha o Brasil dos padrões internacionais e tira o foco do que é absolutamente emergencial para o país neste momento: criar estratégias para que a integridade científica e a credibilidade da ciência brasileira, reconhecidas internacionalmente, sejam refletidas em ações que se comprometam a fomentar uma cultura de integridade e prevenção de má conduta. (...) Indicando uma direção oposta, o PL 330/2022 enfraquece o papel da integridade científica, que deveria ser uma prioridade no Brasil.”
Sonia Vasconcelos (IBqM/CCS – UFRJ)
Edson Watanabe (Coppe - UFRJ)
Renan Moritz Varnier Rodrigues de Almeida (Coppe - UFRJ)
Adalberto Vieyra (IBCF/CCS - UFRJ)
Cássia Turci (Instituto de Química/CCMN - UFRJ, vice-reitora da UFRJ)
Roberto Medronho (Faculdade de Medicina/CCS - UFRJ, reitor da UFRJ)