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Dona Cléo e o professor Jorge Fernandes da Silveira - Foto: acervo pessoal/Luci Ruas
Prosseguem as homenagens para a imortal Cleonice Berardinelli, que faleceu no último dia 31 aos 106 anos. O professor emérito Jorge Fernandes da Silveira enviou para a Redação um poema "motivado pela dolorosa perda da Mestra fundadora da minha carreira na UFRJ".
Confira a seguir:
CLÉO NO CÉU
Às altas Torres alevantada e aos Mares venturosos avisada
Alma encarnada pela juvenília mão vicentina de Bandeira
Nossa Senhora Estrela-Guarda de pena e verso a vida inteira
Aos montes às meninas e aos meninos posta em sina devotada
ANJO?
Nessa manhã estive à beira do quotidiano
a Teu lado entre palacetes velhos.
Um rouxinol e um repuxo nos olhavam.
E aqueles cedros no cenário.
Olhei, olhei por dentro dos
sentidos as sensações. Vê além,
disseste. Havia um pórtico, as
colunatas de pedra. O largo atalho
de saibro. O sol com o seu feixe
de muitos raios atrás da Tua sombra.
Fiama Hasse Pais BRANDÃO
CLEONICE BERARDINELLI 28 de Agosto de 1916-31 de Janeiro de 2023
Senhora, Aula Magna da Literatura Portuguesa,
Agora, Você, Cleonice, bem claro nos ensina,
Aqui, onde o Natal mal se acaba em Carnaval que já começa,
A viver a bem-vinda passagem das horas em sua dina companhia divina.
Rio de Janeiro, lisblon, 31 de Janeiro-1º de Fevereiro de 2023
Começou na manhã de hoje, 6 de fevereiro, o Congresso do Andes. Realizado na Universidade Federal do Acre, em Rio Branco, o evento reúne 648 participantes (447 delegados, 150 observadores, 17 convidados, 34 diretores do Andes) de todo o país. A ADUFRJ trouxe 28 docentes, sendo 13 delegados e 15 observadores. "Esse sindicato tem uma trajetoria de luta pela autonomia e independência", discursou a presidente do Andes, Rivânia Moura, durante a cerimônia de abertura. Indígenas da região emocionaram a plateia com uma bela apresentação musical no início do evento. O Congresso vai até sexta-feira, 10, com uma intensa programação de debates sobre temas políticos e sindicais.
ENTREVISTA I Francisco Carlos Teixeira, Professor de história moderna e contemporânea da UFRJ
A crise militar que paira sobre o governo Lula em seu primeiro mês de vida não tem hora para acabar. É o que avalia um dos principais pensadores brasileiros em assuntos militares, o historiador Francisco Carlos Teixeira, professor titular aposentado de História Moderna e Contemporânea da UFRJ e professor emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme). Segundo ele, os militares não cogitam aceitar um eventual julgamento do tenente-coronel Mauro Cesar Cid, ex-ajudante de ordens do ex-presidente Jair Bolsonaro, pivô da queda do ex-comandante do Exército Júlio César Arruda, demitido no último sábado e substituído pelo general Tomás Paiva. “O que os militares neste momento não aceitam é que ele vá a julgamento. Isso não está de maneira alguma pacificado”, avalia o professor.
Nesta entrevista, Teixeira acentua que punir os militares envolvidos na tentativa de golpe de 8 de janeiro é a única forma de o governo Lula deixar claro para as Forças Armadas que os militares não podem se envolver em política. Por outro lado, ele pondera, ignorar a participação militar na tentativa de golpe é fomentar ainda mais a politização das tropas, uma marca do governo Bolsonaro. “Militares não têm que ser a favor nem contra. Eles não têm que dar opinião”, diz ele.
Jornal da AdUFRJ — O senhor considera que, com a troca do comando do Exército, a crise militar foi debelada?
Francisco Carlos Teixeira — O próprio governo está dividido em relação a isso. O ministro da Defesa (José Múcio Monteiro), o ministro-chefe do GSI (general Gonçalves Dias) e o ministro das Relações Exteriores (Mauro Vieira) são a favor de que agora se dê um freio e se deixe só a Justiça avançar nessa questão. Já o ministro da Justiça (Flavio Dino) e o advogado-geral da União (Jorge Messias), com o apoio do STF, querem aprofundar as investigações e ver as conexões dos militares com os episódios de 8 de janeiro.
O senhor avalia que é certa a participação de militares na tentativa de golpe de Estado?
O 8 de janeiro foi montado, não foi fruto de meia dúzia de comerciantes de São Paulo, do Paraná ou de Mato Grosso. Houve inteligência por trás. E mais do que isso: as pessoas não estão associando os atos em Brasília aos ataques às torres de energia no Paraná, em Rondônia e em Mato Grosso e nem às tentativas de invasão a refinarias no próprio dia 8 e na madrugada de 9 de janeiro. Quando você derruba com bombas 11 torres de energia, o que é isso? É terrorismo.
Então a participação de militares na empreitada não se deu só por omissão ou leniência?
Circunscrever os acontecimentos a Brasília é perder a dimensão do que aconteceu. Havia inteligência no plano. Enquanto estavam ocorrendo os ataques em Brasília, a ideia é que o país ficasse às escuras e sem combustível. Isso é terrorismo, não há a menor dúvida nesse sentido. O próprio presidente Lula já declarou que foi golpe de Estado, que abriram as portas do Palácio do Planalto, que foi coisa de gente de dentro em que ele não confia. E nem pode confiar. Na verdade é o Lula que unifica as divergências de seu governo. Ele não exonerou Múcio nem Gonçalves Dias, mas os faz cumprir uma agenda de busca dos responsáveis.
Um dos militares investigados é o tenente-coronel Mauro Cid, que ganhou de presente um comando em Goiânia e foi pivô da queda do general Arruda...
Toda essa questão se galvaniza em torno dele. Ele foi meu aluno na Eceme, um brilhante aluno. Muito inteligente e competente, é filho do general Lorena Cid. Mas não é nada democrata. Inclusive as discussões em sala de aula já mostravam isso. Se ele for punido, surge uma questão clara. Os militares não aceitavam sequer a exoneração dele. Foi designado para comandar o único batalhão do Exército de rápido deslocamento (1º Batalhão de Ações e Comandos, unidade de Operações Especiais, em Goiânia), que pode estar, ou se negar a estar, em qualquer ação necessária. Um comando estratégico que não poderia ser dado na mão de alguém que cuidava até das contas privadas do casal Bolsonaro.
Ele também é alvo de um processo no STF...
Sim, ele ganhou um prêmio mesmo indiciado no processo de atividades antidemocráticas. É norma clara no Exército e nas Forças Armadas que você não pode promover nem nomear para comandos
os oficiais que estejam sub judice. Então, ao nomeá-lo, Bolsonaro quebrou as regras, a cultura e a disciplina militares. Ele foi exonerado, mas a questão é: ele vai ser julgado? E se for julgado, será por um tribunal militar ou pela Justiça civil?
O senhor acha que os comandantes militares aceitariam isso?
O que os militares neste momento não aceitam é que ele vá a julgamento. Isso não está de maneira alguma pacificado. Tenho conversado com vários oficiais, inclusive oficiais em comando de regiões militares, e eles dizem que já acham ruim ele ser exonerado, e não aceitam o julgamento. Acham que seria imiscuir política nas Forças Armadas, o que na verdade quem fez foram Bolsonaro e eles (os oficiais militares) mesmos. O que o governo está tentando fazer agora é tirar a política. Mas eles não têm essa visão.
Há resistências também em outras frentes?
Temos a figura do coronel Fernandes da Hora, que é o comandante da Guarda Presidencial, de proteção do Palácio do Planalto. E vimos que a Guarda nem preveniu, nem protegeu. Ao contrário: o vídeo que circula é ele em um bate-boca com um tenente da PM tentando tirar os infiltrados dele do meio dos presos. Essa Guarda Presidencial tem algo como 960 homens à disposição e esses homens não estavam lá. E também tem inteligência, o que não se viu. O batalhão, por sinal, se chama Duque de Caxias. O que é uma ironia, porque Duque de Caxias ficou na história como um militar que cumpria seus deveres rigorosamente. E tudo o que o batalhão Duque de Caxias não fez foi cumprir seus deveres.
Além do coronel Fernandes da Hora, que outros nomes em cargos militares não inspiram confiança?
Há o general Dutra (Gustavo Henrique Dutra), o comandante militar do Planalto. Ele e o Fernandes da Hora têm que acompanhar o tenente-coronel Cid, porque a confiança neles é zero. Hoje (terça-feira, 24) está sendo feita a mudança do pessoal do GSI. Estão saindo os militares nomeados por Bolsonaro e está entrando a nova leva. Mas por que tanto tempo para fazer essas mudanças? O general Gonçalves Dias, amigo pessoal do Lula, já tinha que ter em 1º de janeiro os nomes de quem ia nomear. Levamos do dia 1º ao dia 24 para fazer essas nomeações de pessoas que devem prever os riscos institucionais. E aqui temos outra dimensão desse problema.
Qual dimensão?
Falamos muito do governador do DF, Ibaneis Rocha, de seu secretário de Segurança, Anderson Torres, ex-ministro da Justiça de Bolsonaro, e do comandante da PM de Brasília. Não resta dúvida de que foram coniventes, e desde 12 de dezembro, quando houve quebra-quebra e tentativa de invasão à sede da Polícia Federal. Mas há outro lado, o lado federal. Nem a Abin, nem o GSI, nem o batalhão Duque de Caxias, nem o Comando Militar do Planalto fizeram nada para prevenir a invasão dos Três Poderes. A dúvida é: vamos só punir o lado do governo do Distrito Federal e virar a página? Fazer o que se faz sempre, a conciliação e o esquecimento para não cutucar os militares? Ou vamos tomar de vez uma decisão de que os militares não podem se envolver na política? E a forma de fazer isso é a punição aos responsáveis.
Nesse sentido, como o senhor viu o posicionamento do general Mourão, de que Lula criou “um desgaste desnecessário” com a troca de comando do Exército?
O Alto Comando do Exército assumiu uma posição legalista. Mas isso não quer dizer que ele é pró-Lula, ou que os generais são democratas desde criancinhas. Eles só fazem uma avaliação política realista de que não vale a pena se envolver nessas aventuras agora. O próprio general Tomás era chefe de gabinete do Villas Bôas (general Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército), participou ativamente do impeachment da Dilma em 2016. Essa “turbo conversão” dele à democracia é estranha. Mas militares não têm que ser nem a favor nem contra. Eles não têm que dar opinião. Eu não quero um general que seja democrata, quero um general que seja profissional. Generais não deveriam ter lado, esse é o ponto central.
Mas parece que atualmente eles têm...
Comemorar, como estamos comemorando, um general democrata, é um erro. Porque algum dia o outro lado pode comemorar um general fascista. Neste momento, o que se vê é que os generais não vão aceitar passivamente outros aprofundamentos para julgar pessoas. Se isso ocorrer, a situação pode ficar mais complexa.
Então a crise continua?
Do lado dos militares não há nenhum ímpeto de achar que a crise está resolvida. Nada pacificado. Inclusive o próprio general Tomás não é nenhuma unanimidade. Ao contrário, ele tem poucas bases dentro do Exército neste momento. Não é uma figura que possa ser considerada pacificadora de todas as correntes ali dentro. A ideia de que Lula não foi absolvido, mas sim descondenado por ação política do STF, muito difundida nas Forças Armadas por Sergio Moro, é dominante no meio militar. E no lado do governo, houve uma falsa percepção de que os acampamentos golpistas se dissolveriam por si sós. E isso não era verdade. O fascismo não se dissolve assim, como leite em pó na água. Veja: mesmo que a figura do Bolsonaro venha a se tornar tóxica e ele se torne inelegível, nós já temos hoje ao menos dois candidatos à sucessão dele. Um é o Mourão, com essas frases que vocalizam as Forças Armadas, e outro é o governador Romeu Zema, de Minas Gerais, com uma atitude extremamente agressiva em relação às investigações dos atos. É possível que continuemos a ter bolsonarismo sem Bolsonaro.
Francisco Procópio e Silvana SáEm 2021, houve a maior expansão do garimpo ilegal no Brasil, em 36 anos, com 15 mil hectares explorados em todo o país, 1.556 deles na terra ianomâmi. Para se ter uma ideia, a área degradada se aproxima do tamanho da cidade de Santarém, no Pará. Os dados são do MAP Biomas, revelados pelo Ministério dos Povos Indígenas (MPI) ao Jornal da AdUFRJ. São números que ajudam a explicar a origem e a profundidade da crise humanitária pela qual passa o povo ianomâmi. As imagens divulgadas nos últimos dias são estarrecedoras. É impossível não lembrar as fotografias feitas de judeus nos campos de concentração nazistas. Por uma dessas coincidências difíceis de explicar e dolorosas de recordar, fechamos esta edição no Dia Internacional da Lembrança do Holocausto, 27 de janeiro. A data marca os 78 anos de liberação do campo de Auschwitz-Birkenau, pelo exército soviético.
Na quinta-feira (26), em reunião em Brasília com a ministra da Saúde, Nísia Trindade, o diretor-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Antonio Barra Torres, comparou a situação dos ianomâmis ao Holocausto. “As imagens remontam a cenas que só víamos em documentários da Segunda Guerra Mundial, a cenas do Holocausto, quando víamos pessoas com ossos cobertos apenas por pele. E vemos que isso acontece em nosso próprio país. Como se chegou a esse ponto?”, disse Barra Torres.
O Ministério da Justiça, o Supremo Tribunal Federal e o Ministério Público Federal instauraram investigação para entender a quem competem as responsabilidades pela tragédia. As primeiras conclusões apontam falhas, omissões e até informações falsas repassadas pela gestão Bolsonaro ao STF.
Foto: DIVULGAÇÃO/CONDIS-YY
CONIVÊNCIA
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) se reuniu com o governo Bolsonaro nos últimos anos para exigir punição aos garimpeiros, mas foi ignorada. Situação semelhante aconteceu com a antropóloga Aparecida Vilaça, professora do Museu Nacional da UFRJ. Ela conta que fez três denúncias ao Ministério Público Federal nos últimos anos sobre madeireiros que invadiram terras Wari, localizadas em Rondônia. “Eu não tive nem o não como resposta. Eles não tomaram providência”, lamenta a pesquisadora. Em sua avaliação, o órgão estava contaminado pela presença de militares bolsonaristas que atuavam em conivência com os criminosos.
Os ministérios da Saúde e dos Povos Indígenas decretaram conjuntamente situação de emergência no território ianomâmi. Foram enviadas, num primeiro momento, cinco mil cestas básicas e equipes multidisciplinares para assistência à população. Mais de mil indígenas já foram atendidos e outros 700 aguardam atendimento com sintomas graves de desnutrição, malária, pneumonia, verminoses e outras doenças evitáveis. Nesta sexta-feira (27), começou a funcionar um hospital de campanha capaz de atender até 300 casos por dia.
A crise não é de agora. Quase 600 crianças ianomâmis morreram nos últimos anos vítimas de doenças evitáveis. De acordo com a Secretaria Municipal de Saúde de Boa Vista, só no ano passado 703 crianças da etnia foram internadas no Hospital Infantil de Roraima com sintomas de desnutrição e suas consequências. Atualmente, sete estão na UTI da unidade sem forças para respirar. Muitas delas pesando duas vezes menos do que seria o normal para a idade.
Segundo a assessoria de imprensa do MPI, grupos que comandam atividades ilegais nos territórios demarcados impedem que a ajuda médica chegue até boa parte dos indígenas. “Postos de saúde foram abandonados e há ocupação de pistas de pouso pelo garimpo ilegal, o que dificulta o acesso das equipes”, afirma o ministério.
GENOCÍDIO
Foto: DIVULGAÇÃO/CONDIS-YYPara o antropólogo João Pacheco de Oliveira, também professor do Museu Nacional, falar que os indígenas brasileiros vivem uma tragédia humanitária é “eufemismo”. “Trata-se de um processo efetivo de genocídio de um grupo. As autoridades estatais têm consciência da extensão do crime ambiental naquela região e continuam a praticar ou permitem que outros pratiquem essas ações”, afirma. “Por ação ou omissão, essas autoridades devem ser responsabilizadas”.
O pesquisador destaca que a grave situação dos ianomâmis infelizmente não é um caso isolado. “É a ponta de um iceberg que tem uma extensão enorme e que atinge de maneira variável todos os povos do Brasil. Portanto, não se trata de uma tragédia ianomâmi, exclusivamente. É uma tragédia que afeta de maneira extraordinariamente pesada os povos indígenas do Brasil”.
Para o especialista, há pelo menos três casos muito claros de genocídio de populações indígenas: do povo mundukuru, no Alto Tapajós, dos ianomâmis e dos guarani-kaiowá, do Mato Grosso do Sul. “São casos de extrema gravidade, recorrentemente denunciados, mas sem qualquer tipo de ação efetiva de defesa dessas populações”.
Em setembro do ano passado, o Tribunal Permanente dos Povos, herdeiro do Tribunal Russel – criado para investigar crimes cometidos na guerra do Vietnã –, atestou que o ex-presidente Jair Bolsonaro foi responsável por crimes contra a humanidade durante a pandemia. O relatório foi encaminhado para o Tribunal Penal Internacional (Tribunal de Haia). “O governo brasileiro não se defendeu, não mandou representantes. Simplesmente ignorou o assunto e continuou a autorizar que as coisas acontecessem dessa forma”, critica João Pacheco de Oliveira.
O antropólogo denuncia, ainda, que em dezembro passado houve autorização de nova atividade de garimpo, que incide na área ianomâmi. “Feita diretamente por orientação da Casa Civil. Quem assinou esse documento foi o general Augusto Heleno (ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional na gestão Bolsonaro)”, informa. “Este não é um caso de fome. Isso inclui destruição ambiental, garimpo e violência sem que haja qualquer apuração dos fatos. O governo passado foi absolutamente conivente com essas situações”.
Especialista em populações do Alto Solimões, o pesquisador afirma que a situação naquela região é muito semelhante à vivenciada pelos ianomâmis. “Houve casos de assassinato em via pública, inclusive de um dos funcionários da Funai que fazia fiscalização. Ele foi fuzilado e não houve qualquer iniciativa de combate ou investigação. Isto aconteceu dois anos antes do caso do Dom Phillips e do Bruno Pereira (jornalista e indigenista assassinados em junho de 2022)”.
MÉTODO
Carlos Fausto, professor de antropologia do Museu Nacional, afirma que a tragédia indígena não acontece por acaso. “É um projeto de governo
Foto: JUNIOR HEKURARI/DIVULGAÇÃO sustentado pela indiferença, mas também pela sequência de erros cometidos. Todas as instâncias do governo federal foram desmontadas na área de meio ambiente, de saúde e apoio indígena”.
Perguntado se também considera o caso como genocídio de um povo, ele prefere usar outra categoria. “O que está claro é que é um método. Foi executado como método que combina missão e omissão. Ação e inação. Detalhar essa rede é fundamental para desvelar o mecanismo pelo qual se produziu esse efeito perverso”, pontua. “É fundamental ser detalhadamente descritivo para que esse método seja desmontado e os responsáveis, punidos. As pessoas fogem de suas responsabilidades quando repetem que cumpriram ordens. Por isso, essa cadeia precisa ser muito bem detalhada. É preciso deixar clara a participação de cada envolvido”.
Ele concorda que a crise não é causada pela fome, mas pela interferência criminosa na região. “A floresta está cheia de alimento, peixe, caça, frutas. O que impede essas pessoas de se alimentarem? Justamente o barulho, que afasta a caça, o garimpo que polui os rios, contamina os peixes, a presença ostensiva que, por si só, é violenta”, explica. “A invasão desses criminosos custa a comida desses povos. A violência é tão grande que não se consegue nem levar cesta básica para determinadas comunidades indígenas”.
A saída, para o professor, é desarticular essas quadrilhas sem que novas pessoas sejam aliciadas para o crime. “Essa rede é muito flutuante e migra rapidamente para outros territórios. Há um grande desemprego na região. É muito fácil aliciar pessoas para o garimpo”, analisa. “Por isso, o Estado precisa agir com inteligência também para resolver problemas relacionados a emprego e renda, desenvolvimento sustentável e economia verde. O Estado tem que se qualificar e agir transversalmente nessas áreas. Isso não é fácil, não vai acontecer neste governo, mas é preciso pavimentar esse caminho”.
FUTURO
Apesar do cenário caótico, o pesquisador olha para o futuro com esperança. “Há boas perspectivas. Existem, hoje, lideranças indígenas extremamente bem formadas e capazes, que não dependem mais de indigenistas e antropólogos, com voz ativa na busca de soluções para essas regiões”, acredita.
Uma dessas lideranças é o atual secretário nacional de Saúde Indígena, Ricardo Weibe Tapeba. Ativista e advogado, ele é liderança do povo tabeba, do Ceará. Ele faz parte da Federação dos Povos e Organizações Indígenas do Ceará (Fepoince) e, em 2016, foi eleito vereador do município de Caucaia. Em entrevista ao Jornal da AdUFRJ, o secretário contou sobre as dores do povo ianomâmi.
“O que eu presenciei se compara a um cenário de guerra. As unidades de saúde mais parecem campos de concentração”, resume. “Os relatos das lideranças indígenas mostram que, nos últimos cinco anos, houve desabastecimentos das unidades de saúde, de insumos, de medicamentos, fechamento dessas unidades, poucos profissionais, falta d’água, de luz, de internet, de comunicação. Tudo isso aliado à presença do garimpo que gera insegurança, medo e morte”, relata. “Presenciei, de fato, um cenário de violações graves aos direitos humanos”.
A contaminação dos rios da região é apontada pelo secretário como uma das principais causas dos problemas enfrentados pelos indígenas em Roraima. “Há crianças cujo cabelo está caindo, que têm muitas feridas e outros problemas de pele. Ainda não houve investigação científica, mas nós acreditamos que esses problemas são resultado da presença do mercúrio e da contaminação das águas”, afirma. “O garimpo matou trechos de rios”.
Ele explica que a ação emergencial é resgatar as pessoas para tratar a saúde e distribuir cestas básicas para alimentação da população que não precisa de atendimento médico imediato. No médio prazo, no entanto, o secretário aponta para a necessidade de políticas públicas voltadas à segurança alimentar na região. “É preciso elaborar um plano para que os ianomâmis possam cultivar a terra, plantar suas próprias roças. Hoje, eles são impedidos pelos invasores. A longo prazo, a tarefa é despoluir os rios”.