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WhatsApp Image 2023 11 09 at 22.42.44 7No dia 27 de outubro, deixou-nos a professora Marinalva Oliveira, titular da Faculdade de Educação. Sua partida repentina, aos 59 anos, gerou comoção na academia, na política, nos sindicatos docentes de todo o país e nos movimentos sociais por direitos das pessoas com deficiência. O velório, ocorrido na sede da Aduff, em Niterói, reuniu algumas centenas de pessoas e demonstrou a importância da docente nos mais diversos espaços de organização. Abaixo, trecho de seu memorial para a classe de titular, em que a professora apresenta sua trajetória pessoal. Em seguida, uma sequência de depoimentos falam de dor, saudade e de como Marinalva era imprescindível.

 

Nasci na zona rural do município de Caravelas, histórica cidadezinha baiana. (...) Meu nascimento ocorreu no dia 28 de agosto de 1964, em pleno golpe civil-militar de 1º de abril de 1964, regime sob o qual vivi até a juventude. Vivi minha infância entre os estados da Bahia, Minas Gerais e Espírito Santo. Meu pai trabalhava como empregado de fazendas. Era vaqueiro e sua principal função era cuidar do gado, mas também fazia plantações de arroz, feijão, milho para vender e para nosso sustento. Tudo que consumíamos era produzido naquelas terras pelo meu pai. Havia a época da plantação e da colheita. Vim ao mundo pelas mãos de uma parteira, em casa, após três dias de trabalho de parto da minha mãe, mas minha chegada trouxe uma grande decepção para a família: após o nascimento de duas irmãs, a expectativa era que viesse um menino. Essa expectativa foi transformada “parcialmente” em realidade, pois minha mãe sempre cortava meu cabelo bem curto e me vestia como menino. Meu apelido era Joãozinho. Como meu pai era trabalhador rural, aos meus seis meses, nós nos mudamos de Caravelas para Minas Gerais, onde foi trabalhar como vaqueiro do meu tio. Era uma fazenda banhada pelo Rio Doce e cercada por outros rios, mas que não foram suficientes para me fazer aprender a nadar.WhatsApp Image 2023 11 09 at 22.42.45 1
Nessa fazenda do meu tio, meu pai era o faz-tudo e minha mãe era a professora das crianças que moravam nas redondezas, onde não havia escola. (...) À minha mãe foi permitido tão somente estudar até a quarta série e meu pai apenas sabia assinar o nome e “fazer contas”. (...) Fiz todo o ensino primário na escola rural onde minha mãe era professora, apesar de sua baixa escolaridade.
(...)
Meu pai foi atraído pela promessa do meu tio fazendeiro – é cada tentação que o diabo coloca na vida de Parrom! –, que havia comprado fazendas no Pará e prometeu que o irmão teria sua própria terra. No anseio de nos libertar, de ter nosso pedaço de terra e melhores condições de vida, viajamos semanas de Minas Gerais até o Pará. Era o mito de que no Pará distribuíam terras. A chegada ao lugar foi impactante. Fomos morar no meio da mata, nas terras compradas pelo meu tio. Para eu estudar, tive que ir morar na cidade com treze anos e trabalhar como trabalhadora doméstica infantil, sem remuneração, pois trocava a comida e a dormida pelo trabalho. Era uma situação de exploração de trabalho infantil, mas eu achava que era eu a que estava recebendo favores. Também sofri abuso sexual, algo que só fui entender anos, muitos anos depois.
Minha mãe e meu pai, quando entenderam a falsa promessa do meu tio, largaram a mata e vieram morar na cidade. Naquele momento, eu e meu irmão, que fora adotado após o meu nascimento, fomos trabalhar para o sustento da casa, pois os demais estavam desempregados e sem renda. (...) Meu pai, diante da condição de não ser mais a fonte de sustento da casa, desapareceu, sem dar notícias. Após seis meses, quando já não tínhamos esperança de que estaria com vida, reapareceu. Ele estava empregado numa fazenda e veio buscar a família. Eu havia terminado o ginasial e, no local para onde nos mudaríamos, não havia ensino médio. Por isso, pedi para ir morar com minha tia Ubaldina, em Vitória da Conquista, na Bahia, pois minha tia morava sozinha e podia possibilitar meus estudos e eu queria muito chegar à universidade.
Eu tinha um primo caminhoneiro (...). Então foi acertada a minha ida para a Bahia com meu primo, na boleia do caminhão. A viagem até Vitória da Conquista durou semanas e, mais uma vez, foi marcada por atos de abuso sexual. Desde cedo, conheci a fome, a exploração, o machismo e a pedofilia, mas também a importância da solidariedade e da partilha. Até então, nesse Brasil profundo da minha infância, nunca tinha ouvido falar em golpe ou ditadura militar, e minhas únicas lembranças são desses momentos que pareciam inesgotáveis.
Em Vitória da Conquista, fiz o curso de magistério como ensino médio. Morando com minha tia, conheci a dignidade de ter escola, roupas, cama, comida e ir a festinhas, como toda adolescente. Era o começo do fim da ditadura e havia embates muito grandes dentro das escolas, devido ao fato de os diretores serem indicados pelo regime. ...começou assim, formal e organizadamente, a minha trajetória de lutas por justiça. (...)
Terminado o curso de magistério, sonhava em fazer uma faculdade, mas naquela época ainda não existia curso superior em Vitória da Conquista. Em 1984 retornei ao Pará e, como os meus familiares moravam no interior, fui morar na capital, em um pensionato com quartos coletivos. (...) Tive uma bolsa estudantil do município, mas, como ocorre ainda hoje, seu valor era muito insuficiente e não pagava sequer as contas mais essenciais. Assim, o dia em que eu almoçava, não jantava e havia dias em que sequer fazia essas duas refeições. Como minha família não tinha condições financeiras para me manter, eu passei um ano fazendo cursinho à noite e, durante o dia, trabalhava como vendedora de rua. Eu passava de porta em porta para vender água sanitária e plano de saúde. Mesmo assim, escolhia entre almoçar e jantar (...)
Era o ano das “Diretas já!”, da luta pela redemocratização do país (...) Os comícios ocorreram em várias cidades do Brasil. Em Belém, foi no dia 16 de fevereiro de 1984, na Praça da República, e reuniu 60 mil pessoas. Eu estava na rua vendendo água sanitária e, ao me deparar com aquela multidão lutando pela redemocratização do país ao som de Fafá de Belém cantando “Menestrel das Alagoas”, me juntei para não permitir que mais uma geração vivesse sem liberdade política e de expressão e emprego.
Naquele momento, eu não tinha a compreensão sobre os limites do movimento. (...) A campanha das Diretas terminou como começou, de forma ordeira. A oposição burguesa tomou todos os cuidados para que a campanha não perdesse o rumo e não passasse a questionar as estruturas da sociedade brasileira, algo que eu só fui entender anos mais tarde.
Em 1985 fiz o vestibular para a UFPA e para uma faculdade privada. Como muitas e muitos jovens da minha geração, prestei vestibular para mais de uma opção de carreira e o ensino privado ofertado por uma empresa proprietária de uma faculdade foi o que me restou por não ter conseguido obter pontuação para uma universidade pública na primeira lista de aprovados. Desse modo, iniciei minha trajetória no ensino superior.

DEPOIMENTOS

WhatsApp Image 2023 11 09 at 22.42.45 2A primeira lembrança que tenho da minha mãe é na sua república, onde morava quando ainda estudante da UFPA. Eu tinha apenas 4 anos. Ali foi o início de nossa grande história de amor, que durou exatas três décadas. Me despeço dela aos 34 anos e com muito de seus valores cultivados no homem que me tornei.
Nessa primeira vez que a vi, lembro de chegar tímido com meu pai e de ser, aos poucos, conquistado com batatas fritas, sorrisos largos e gestos sempre de muito carinho. Lembro que o quarto dela tinha apenas um colchão no chão, uma mesinha de estudos e algumas caixas de papelão que serviam de guarda-roupa. Tudo muito simples, mas extremamente aconchegante.
Professora, logo de cara me ensinou que a relação mãe e filho nada tem a ver com genética, mas com amor. Diplomática, recusou que eu a chamasse de “mãe” quando pequeno. Mas eu nunca tive dúvidas de qual era seu inquestionável lugar em minha vida. Se algo apertasse e eu precisasse de ajuda, eu não tinha dúvidas de quem procurar.
Entreguei meus documentos para tomar posse como professor da Unifap exatamente na semana em que ela se foi. Posso dizer, com certeza absoluta, que esse foi um dos momentos em que mais a vi feliz em toda minha vida. Eu iria iniciar minha trajetória docente na mesma universidade que ela. Mandei foto no dia em que cheguei à pró-reitoria com meus documentos. E já arquitetava a foto que a enviaria no dia da minha primeira aula, algo que não vai mais ser possível. Hoje só posso prometer que vou honrar sua memória como um professor dedicado, afetuoso, empático com os estudantes que mais precisam e radicalmente compromissado com a defesa da educação pública.

Andrew Costa

Você nunca me prometeu que seria eterna. Você nunca me prometeu que estaria aqui sempre. Você nunca me disse que seria fácil. Mas também você nunca me preparou pra sentir esse vazio.
Você nunca me preparou pra uma partida tão precoce e tão do nada. Você realmente nunca me prometeu ser eterna. Mas eu ainda achava que te teria vários anos por aqui... Te veria vários anos aqui, me chamando atenção... Reclamando da minha bagunça.
Ou me pedindo pra fazer massagem porque as suas pernas e braços estavam doendo. Sairia de manhã e veria você na esteira. Ouviria você me pedindo um café durante as suas várias lives e reuniões intermináveis.
Ô, mãe, eu ainda não acredito.
Do mesmo jeito avassalador que entrou na minha vida, você se foi das minhas vistas. Não digo que foi da minha vida, porque não tem como, você se faz presente em cada detalhe desse apartamento, em cada ato meu, e dentro do meu coração tu faz tua morada eterna.
Eu te amo muito, muito.
Você me ensinou o que significa ser mãe de fato. Mas, além disso, me ensinou a ser um ser humano íntegro, humilde, que se importa com os outros, e que não abre mão dos seus princípios.
Prometo te encher de orgulho, e prometo seguir meus sonhos e construir minha vida do jeitinho que você queria que eu fizesse...
Porque sei o quanto você se preocupava em me deixar desamparada.
Te amo para além de quando eu respirar.

Andressa Costa

Minha mãe foi apaixonada pela vida, pelas pessoas, pelas pessoas com deficiência. A sua luta incansável pela educação pública e pela inclusão de pessoas com Síndrome de Down nunca será esquecida. Eu nasci em 2006 e sempre estivemos juntos. Marinalva presente! Hoje e sempre!WhatsApp Image 2023 11 09 at 22.42.45 3

Gabriel Oliveira Costa

Marinalva, a conversão
dos sofrimentos em luta

“Desde cedo, conheci a fome, a exploração, o machismo e a pedofilia,
mas também a importância da solidariedade e da partilha.”
(Memorial Público Titular da Profª Drª Marinalva Silva Oliveira)
Não sei escrever um obituário e é o único aprendizado que não me interessa consolidar: ele sempre será o lamento por alguém que já não está.
Há muitos modos de medir a estatura de uma humana, de um ser social, para além dos pesos e medidas comumente utilizadas.
No caso da lutadora Marinalva, desde sua morte, foram tantas as pessoas de dentro e de fora da universidade a dizer do que ela tinha oferecido, organizado, ensinado e partilhado nas lutas e saberes, que a amiga querida nos parece uma desconhecida. Discreta e disciplinada, seu interesse era multiplicar consciências e lutas, todas! Das mais urgentes às de longo prazo; das mais singulares às mais universais. Foi uma alegria saber que no seu mundo de lutas e solidariedades também ali foi original e irrepetível. Assim, em primeiro lugar, foi frondosa a sua árvore da solidariedade de classe.
A segunda e mais difícil medida a considerar é aquela vinda da homenagem de adversários e mesmo de inimigos: a(o)s que pelo elogio na morte precisam apagar o não reconhecimento em vida.
Marinalva, em sua generosidade, rir-se-ia com todas as homenagens.
Outro traço desta amiga combinava a firmeza com a alegria e a disponibilidade ao diálogo. A premissa residia naquilo que entendia como a capacidade de mudar pelo aprendizado, pela tomada de consciência. Foi assim que ela, docente, tornou-se antirracista, anticapacitista, feminista e avessa aos cretinismos parlamentar, sindical e de movimentos sociais. Toda vez que uma organização da qual ela participava demonstrava limites por burocratização ou outras degenerações, lá ia ela – com suas dores – construir outros espaços de luta. Criança pobre, acumulou significativos sofrimentos e transmutou-se em jardineira. Marinalva não se demorava onde não existia amor e partilha. Interessava-lhe a semeadura.
Marinalva, presente!

Sara Granemann,
ex-presidenta da AdUFRJ

Foi uma perda muito abrupta de uma pessoa com uma capacidade amorosa extraordinária. Essa era uma característica muito poderosa da Marinalva. Ela era alguém capaz de travar um debate cerradíssimo na disputa política, com muitas divergências, sem jamais isso ter qualquer traço de ataque ou de destruição de pessoas. Ela fazia o embate muito corajoso e muito honesto do ponto de vista das ideias. Isso é uma característica rara que, combinada com esse modo de amar o outro e o mundo, que ela possuía, fazia dela um quadro extraordinário. A perda de uma pessoa com a idade dela, que, aliás, é a mesma que a minha, de uma forma repentina é sempre dolorosa para todos nós. Mas alguém que combinava uma quantidade de qualidades tão raras é sempre uma dor porque nos empobrece de forma irremediável. Pessoas como a Marinalva não estão por aí o tempo todo. Era incrível sua capacidade de, no meio de todos os debates e brigas, ter uma pausa para uma conversa humana, um bate-papo fortuito sobre as coisas da vida. Ela vai fazer falta. Eu vou sentir muita saudade dela. Os congressos do Andes já são tristes e, com a ausência dela, vão ser mais tristes ainda.

Eleonora Ziller,
ex-presidenta da AdUFRJ

Estive no velório da professora Marinalva. Historicamente fui um adversário político dela. Nossa relação sempre foi muito honesta. Ela sempre foi, como creio que eu sou, muito dura na argumentação política, mas nunca agiu com ataques pessoais. Ao contrário, nossa relação foi sempre muito afetuosa. No dia 18 de outubro conversamos muito sobre estratégias para emendas parlamentares. Ela vai fazer falta. É muito importante ter adversários que a gente admira, em quem a gente confia. Estive lá representando a reitoria da UFRJ. Mesmo diante de posições tão distintas, a gente, de fato, dialogava e essa é uma característica bastante rara na UFRJ.

João Torres,
ex-presidente da AdUFRJ

 

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