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O texto da professora Alessandra Nicodemos inaugura espaço no Jornal da AdUFRJ para artigos de docentes sobre temas relacionados à quarentena. A diretoria abriu mais esse canal, a partir das reuniões do Conselho de Representantes. Os interessados devem escrever para Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..

WhatsApp Image 2020 04 17 at 17.29.47Professora Alessandra Nicodemos"Educação à Distância em tempos de pandemia: uma ameaça ao caráter público da educação escolar e universitária?

 

Seguimos em quase um mês de distanciamento social e ainda estamos perplexos com uma nova forma de sociabilidade em que fomos inseridos de forma abrupta, necessária e imprevisível. Hoje estamos isolados, quase exclusivamente conectados por uma parafernália digital que vai cumprindo o papel de constituir eco de nossas inquietações, dificuldades, dúvidas e soluções.
E nesse debate e embate é atribuída à Educação à Distância, ou ao seu simulacro, a solução para muitas das questões que precisamos equacionar, sejam aquelas vinculadas à necessidade de entretenimento e informação, sejam as pertinentes aos processos de formação universitária e escolar formais.
A suspensão das aulas e quais os limites e possibilidades de ação nesse cenário de isolamento colocam-se, hoje, como um problema a ser disputado. A intenção desse texto é apresentar as especificidades vivenciadas pela escola e pela Universidade nesse debate pois, mesmo com finalidades e funções sociais tão distintas, as duas instituições e seus trabalhadores têm sido, constantemente, interrogadas sobre a construção de estratégias de EAD em tempos de isolamento social. Slogans como Escola vai até o aluno, Não podemos ficar de braços cruzados ou a Extensão não pode parar, vão povoando esse imaginário em disputas de narrativas que constituem, também, projetos políticos no presente e no devir, acerca de qual Escola e Universidade queremos e  por qual lutamos.  
Em relação à escola, devemos considerar que essa tem sido lugar de sociabilidade, de moralização, de formação, de construção tecnicista ou emancipatória de conhecimento e cultura e de sua divulgação. Mas a escola é, também, lugar de guarda, de convivência obrigatória e, em algumas etapas, universal para milhões de brasileiros e brasileiras. Enquanto filhos e filhas estão preservados, as famílias podem se ocupar de outros fazeres: a sobrevivência vinda do trabalho, o lazer, o estudo, o ócio e uma infinidade de ocupações que a instituição escolar moderna possibilita com sua capilaridade quase absoluta nas bases da sociedade atual.
E isso é tão significativo que esse papel de guarda tem se ampliado, seja por famílias mais abastadas e de classe média, seja em ações das políticas públicas, que têm procurado ampliar o tempo de guarda escolarizada para nossos pequenos e jovens: cursos de inglês, de música, escola de turno único ou de tempo integral, numa crença, a despeito de toda desqualificação que, nos últimos tempos, têm vivenciado professores e escolas, de que essa instituição ainda é fundamental e necessária.
E me parece ser esse o papel da escola que tem provocado mais debates e embates: a ausência da escola como guarda tem levado gestores e famílias a reclamar dos professores ações que minimizem tal situação. Ou seja, o debate não tem sido sobre as perdas de conhecimento sistematizado e didatizado que os nossos educandos estão vivenciando ou sobre o tempo escolar a ser reposto nos estreitos calendários burocráticos, caso esse isolamento perdure por mais um ou dois meses. Tenho convicção que o debate provocado pelos gestores públicos com suas soluções on-line está longe de solucionar esses problemas.
Mais especificamente, as estratégias veiculadas pelos diferentes responsáveis pela gestão da educação no Brasil e no Rio de Janeiro, em particular, parecem querer, de forma populista e carente de uma reflexão séria e consistente, resolver o problema da função da escola como guarda. Aos professores são solicitadas vídeo-aulas, lives dinâmicas, PPT ágeis, listas de exercícios e acesso aleatório a material didático das redes oficiais, dentre outras, numa miscelânea de estratégias que, erroneamente, denominam de EaD e que servirão, em última instância, somente como entretenimento on-line, como forma de ocupar e guardar os educandos em isolamento em suas residências.
Não podemos considerar que essas ações emergenciais, realizadas sem planejamento e sem intencionalidade pedagógica prévia, podem substituir a escolarização. Ao designar tais estratégias como escolarização estamos, equivocadamente, considerando que o que construímos na escola com nossos educandos pode ser substituído por ideias e ações de pronta hora, esparsas e aleatórias.
O processo de didatização dos conteúdos em práticas escolares é muito complexo e se sedimenta e se modifica a partir de uma infinidade de procedimentos complementares: as tradições curriculares, as práticas docentes, os saberes da experiência e das disciplinas de referência, enfim um processo amplo, onde nos debruçamos cotidianamente em acertos e erros, em alegrias e frustrações. Trata-se de um procedimento singular, estruturado por trabalhadores docentes licenciados e qualificados para essa árdua, inquietante e bela tarefa, construído em um espaço próprio e seguindo regras específicas.
Por hora podemos considerar que essas soluções não vão resolver a questão central que temos à frente: a reorganização dos calendários escolares. Parece-me, no entanto, que esse não deve ser o debate principal, pois estamos mergulhados no tempo do imprevisível, o que exige que as decisões sejam tomadas posteriormente. Nesse sentido, não podemos deixar de alertar aos pais e responsáveis que as experiências de entretenimento on-line, travestidas de conteúdo escolar, que estão sendo oferecidas a seus filhos, pertencem a outra natureza e a outra ordem, diversas da experiência de estar em escolas e ser escolarizado - o que, espero, possa ser restabelecido o mais breve possível.
Em relação à Universidade existem algumas especificidades, pois essa não atua como lugar de guarda, já que atende jovens e adultos. Por outro lado, a grande maioria das instituições públicas universitárias já suspenderam o calendário acadêmico por tempo indeterminado e, no caso da UFRJ, sem nenhuma indicação de substituição de aulas presencias por EAD, seja no ensino, seja na extensão. Consideramos sensata essa decisão, pois situamo-nos no tempo do imponderável e as consequências da crise epidêmica que atravessamos não podem ser mensuráveis. O momento é de prevenção, isolamento social, discernimento e paciência.
Mas mesmo com esse consenso estamos, a todo o momento, sendo provocados a construir estratégias de atendimento e divulgação à distância de nossas experiências de ensino e de extensão na Universidade.  
E nesse debate é importante destacar que não estamos questionando a possiblidade da Universidade cumprir o seu papel social de divulgação do conhecimento, de produção de estratégias remotas que possibilitem esclarecimentos e apoio efetivo virtual, para os seus educandos e para a sociedade em geral. No entanto, é necessário deixar claro que esse fazer não constitui Extensão ou Ensino. Não podemos considerar, por exemplo, que um vídeo gravado por um professor sobre algum assunto relevante ou de divulgação de sua ação seja uma atividade de extensão. Quando elaboramos esses materiais e os nomeamos, aleatoriamente, como extensão, estamos desqualificando e descaracterizando a Extensão, um dos tripés mais fundamentais da Universidade pública brasileira.
Destarte, indicamos que a oferta de Ensino e Extensão à distância requer responsabilidade e intencionalidade pedagógica e política. Requer, ainda, que tais experiências sejam previamente aprovadas pelos órgãos colegiados e deliberativos da Universidade e, no caso da Extensão, estabelecidas parcerias com sujeitos e instituições para a sua realização, com claros instrumentos de avaliação dos impactos dessas ações. Desta maneira é que realizamos Extensão de excelência nessa Universidade, com planejamento, responsabilidade e compromisso social. E, no caso do Ensino, que sejam elaborados objetivos, métodos, técnicas e recursos, como já fazemos nessa modalidade de ensino ofertada na UFRJ. Portanto, qualquer solução elaborada no contexto da pandemia leva-nos a um terreno sensível e arriscado, que nos fragiliza como Instituição de Ensino de excelência. E devemos resistir a essa narrativa e às ação dela decorrentes.
Permanece, por fim, uma pergunta: porque alguns setores escolares e universitários insistem na elaboração de conteúdos ou de divulgação on-line? As questões deveriam ser: que tipo de experiência queremos fortalecer em um momento tão crítico para a humanidade e o país? Será que esse apelo por produção de conteúdo virtual não poderá, mais à frente, produzir mercadoria a ser comprada ou negociada?
Vivemos em um situação muito delicada e preocupante e não tenho dúvidas que os ares da mercantilização da educação paira nas entrelinhas dessas ações fragilizando, no tempo presente e para o futuro, o sentido público da educação escolar e universitária. O momento pede que estejamos atentos e fortes!

Alessandra Nicodemos
Professora da Faculdade de Educação

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