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"Do Café, guardo as melhores memórias possíveis. Nós nos conhecemos há quase 47 anos. Trabalhávamos juntos no antigo WhatsApp Image 2024 02 23 at 14.45.38Serviço Nacional de Teatro. Demorou em torno de 11 anos, desde que nos conhecemos, para que ficássemos juntos, mas sempre fomos parceiros no trabalho. Café era muito culto e aprendi demais com ele, mesmo nunca tendo sido sua aluna. Nosso setor era de pesquisa sobre dramaturgia brasileira, principalmente do século XIX. Muitos textos eram dados como perdidos, outros sofreram transformações. Era um trabalho bem intenso de pesquisa. Comparávamos diversas edições, alterações de textos. Foi um período extraordinário. Trabalhava conosco Fátima Saadi, grande parceira e amiga também.

Um dia, Café me perguntou se eu conhecia a Ilíada. Eu disse que não, porque não me sentia madura para um texto tão complexo. Eu era muito nova. Ele me perguntou, então, quem tinha colocado aquilo na minha cabeça e no dia seguinte me trouxe um exemplar e o leu todo comigo. Seguimos assim em outros grandes clássicos, heranças fundamentais da Literatura, do teatro, da poesia. Nós íamos ao cinema e ao teatro, jantávamos em seguida e discutíamos sobre o que tínhamos visto. Foram tantas as vezes que fomos expulsos de restaurantes, porque nos estendíamos bebendo vinho, lendo, conversando, trocando impressões, textos, poesias. Pensar nesses momentos me traz uma grande coleção de belíssimas lembranças.

Vivemos juntos desde 1988. O convívio, de quase 36 anos, foi muito especial. Café era um homem singular e apaixonado. E eu também muito apaixonada. Eu fui mimada demais. Todas as terças-feiras ele me trazia flores, durante muitos anos. Nossa diferença de idade era de 27 anos, mas o Café foi jovem bem prolongadamente. Ele tinha um humor extraordinário!

Outra marca forte era a sua simpatia. O riso sedutor, carismático, atencioso; sobretudo, muito cortês. E um homem preocupado com a família. Tivemos um filho juntos. Eu tinha já uma filha e ele duas, dos nossos casamentos anteriores. Minha filha o considera um segundo pai. Ela escreveu uma coisa muito linda: há espaço para ter dois pais no coração.

O Café era uma pessoa rara sob qualquer aspecto. Absolutamente singular. Ele me provocava muito a pensar por mim mesma. Fez parte da minha formação. Não havia uma relação hierárquica. Ele operava numa postura provocadora, mas muito horizontal. Foi uma pessoa decisiva para mim. Abriu espaço para o pensamento e para o meu inconformismo intelectual. Ele tinha muita paciência e eu tinha muita escuta. Nós tínhamos, aliás, muita escuta um para com o outro na vida. E eu não falo de casamento perfeito, mas de casamento feliz. Tínhamos um exercício de encontro, de inquietação e de paixão.

Com a universidade, era uma relação de amor. Ele gostava de mim, dos filhos, dos amigos e da UFRJ. Foi um permanente militante pela melhoria das condições de trabalho dos professores e um dos fundadores da AdUFRJ. Era muito respeitado e dedicado à contribuição acadêmica. Quando diretor da Faculdade de Letras, fundou uma especialização em teatro e depois o curso de Direção Teatral, alocado na Escola de Comunicação. Era um homem de iniciativas, de se entusiasmar e de levar ideias adiante. Realizou um congresso internacional na Letras que reuniu três mil pessoas do mundo todo. Foi uma gestão bastante bem-sucedida, considerando, inclusive, as contradições e entusiasmos do período de Redemocratização. Havia uma capacidade extraordinária de ouvir as contribuições, uma escuta de encorajamento. A sala dele sempre estava aberta.

Mas na universidade ele também teve muitos dissabores. Ele tinha enorme capacidade de aglutinação, mas também facilidade de encontrar oponentes. Mas não havia hostilidades. Era política sem picuinha. Havia respeito. Café ocupava um elevado lugar civilizatório. Nós vimos, recentemente, o que aconteceu na política do país. O ódio perdeu o pudor. Ele deixa também essa lição contra a política do ódio e ataques mesquinhos. Viveu a política com elegância.

Também na vida política enfrentou situações com muita coragem. Quando era diretor do Conservatório Nacional de Teatro do SNT, atual Escola de Teatro da Unirio, durante a passeata do Edson Luís, algum estudante jogou algum tipo de líquido da janela. Ele imediatamente mandou fechar todos os registros de água. Quando a polícia chegou, ele disse que era impossível aquilo ter acontecido, porque a escola estava sem uma gota. Ele era assim, de raciocínio muito rápido.

WhatsApp Image 2024 02 23 at 14.45.38 1Um momento terrível aconteceu no fim da década de 1950. Ele estava em São Paulo imprimindo folhetos do Partido Comunista Brasileiro. A polícia chegou. Ele conseguiu se esconder dentro da caixa d’água, onde permaneceu por longo tempo. Colocava algumas vezes o nariz para fora, para respirar, e voltava para debaixo d’água. Havia outros companheiros na casa. Ele ouviu tiros. Os companheiros foram assassinados ou levados. Horas depois, ele saiu caminhando pela linha do trem, completamente molhado, trajando só uma bermuda. Era só o que ele tinha naquele momento.

Outro fato, este do qual ele se orgulhava muito, foi ter ido a Cuba no primeiro ano da Revolução participar da campanha deWhatsApp Image 2024 02 23 at 18.19.29 alfabetização. Havia muitas crianças e adultos analfabetos, muita gente. De lá trouxe uma bandeira onde se lia “Territorio libre de analfabetismo”. Muitos anos depois, já diretor da Letras, ele recebeu uma autoridade do Ministério da Educação de Cuba que tinha sido uma das crianças (os “hijos de Fidel”) acolhidas em quarteis esvaziados dessa função e destinados a abrigos. Ele viu a bandeira num evento realizado lá na Letras para uma conversa ampla e ficou muito emocionado. Li poemas de Nicolás Guillen.

WhatsApp Image 2024 02 23 at 14.45.37Carmem exibe seu 'cafezeiro', presente oferecido pelos alunos de Direção Teatral, por ocasião do aniversário de dez anos do cursoDe vez em quando eu choro, mas procuro me manter em paz. Há lembranças tão vívidas de uma vida tão plena e rica, que me consolam. Ele estava sofrendo demais. Não merecia viver uma vida limitada. Ele já não conseguia mais ler, porque o tremor essencial atingiu a visão. Mas eu tinha como hábito ler para ele em voz alta desde os tempos de pesquisa. Foi realmente um hábito que nos acompanhou ao longo dos anos. Há poucos meses, nós relemos Os sertões, Grande Sertão Veredas, quase todos os romances de Machado de Assis, João Cabral de Melo Neto, Mário de Andrade e vários outros. Ele ficou muito feliz! Pausava a leitura, pontuava questões, discutia. Uma mente completamente produtiva. O tempo inteiro atuante. Ele tinha muita vitalidade, desejo de vida, amor pela vida no sentido mais pleno. Foi uma vida linda. Eu acho que sou uma privilegiada."

Carmem Gadelha
Professora Titular da Escola de Comunicação da UFRJ e companheira de vida (Em entrevista ao Jornal da AdUFRJ)

 

 

“A firmeza nos propósitos políticos do Café — como a defesa intransigente do ensino público, gratuito e de qualidade — convivia com um extremo humanismo e generosidade que desconcertavam os defensores de outro modelito de sociedade. Certa vez, um grupo que pensava radicalmente diferente das opiniões do Café veio tomar satisfações do então diretor da Faculdade de Letras. Entraram no gabinete sem pedir licença, pareciam ter uma faca entre os dentes, com cara de poucos amigos. Eu era assessor do Café e estava na sala. Café pediu que sentassem à mesa e, acendendo um dos seus clássicos charutos, tomou a palavra com um sorriso maroto: sejam bem-vindos, meus queridos amigos reacionários e privatistas! Em que posso lhes ajudar? A resposta veio de um dos invasores: Pois, professor Cafeteira, estamos aqui...Cafezeiro, corrigiu um dos seus amigos. Nessa hora Café deu uma gargalhada e consolou o autor do equívoco. Tudo bem, companheiro. Um outro derramou o cafezinho pelando nas pernas e deu um gritinho. Café deu de novo uma gargalhada, como sempre. O grupo também riu alto e parecia então desorientado e embaraçado. Acho que esqueceram o que tinham vindo fazer ali. Café deu alguns esclarecimentos sobre a esperança de ver uma sociedade brasileira mais justa e democrática, todos faziam que sim com a cabeça. Mudavam de opinião assim facilmente? As baforadas do charuto encobriam caras desfiguradas, me lembrei da cara do personagem no quadro Grito, do Munch. Logo perguntavam sobre as pesquisas do professor Cafezeiro, examinaram a lista enorme dos versos de Camões tronando sobre a mesa, um das pesquisas do Café da época, um disse que sabia ser ele um dos grandes especialistas brasileiros em teatro, outro, o mais tímido, fez a pergunta clássica sobre como saber o que é certo e o que é errado em Língua Portuguesa, Café gargalhou, sonoro, o ambiente era de confraternização. A sala evocava uma reunião de velhos amigos. Os abraços e tapinhas nas costas se seguiram acarinhados por risos e adjetivos elogiosos. Assim era Edwaldo Cafezeiro. Conquistava todo mundo sem jamais perder a atitude ética, a fraternidade e a alegria. Deixa muitas saudades.”

Godofredo de Oliveira Neto
Professor Titular da Faculdade de Letras da UFRJ

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