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plenaria dos 98 anos da ufrj 1200x800 1Foto: Raphael Pizzino (SGCOM/UFRJ)Eles estavam aqui bem antes de qualquer invasor, ocupavam livremente o território do litoral ao interior, mas foram gradativamente expulsos pela colonização. Agora correm o risco de perder as poucas áreas demarcadas onde vivem — e que estão sob permanente ameaça de garimpeiros, grileiros, madeireiros, fazendeiros, mineradoras e outros invasores. Os povos indígenas lutam agora para “provar” que estavam onde estão antes de 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição. A esdrúxula tese do marco temporal está em tramitação no Congresso — foi aprovada na Câmara e deverá ser avaliada no Senado neste segundo semestre — e em julgamento no Supremo Tribunal Federal.
A análise no STF foi retomada esta semana e, até o fechamento desta edição, o placar indicava 3 a 2 contra o marco temporal. Os ministros Edson Fachin (relator), Alexandre de Moraes e Cristiano Zanin se pronunciaram contrários à tese. Já os ministros Nunes Marques e André Mendonça — ambos indicados pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, um notório opositor à demarcação de terras indígenas — votaram a favor do marco temporal.
O julgamento no Supremo tem como base a criação, em 2003, da terra indígena Ibirama-Laklãnõ. Parte da área demarcada está ocupada por indígenas da etnia xokleng, mas é disputada por agricultores e está sendo requerida pelo governo de Santa Catarina sob o argumento de que não estava ocupada em 5 de outubro de 1988.
Os indígenas sustentam que a terra estava desocupada na ocasião porque eles haviam sido expulsos de lá — como tantas aldeias Brasil afora.
A decisão do STF é fundamental porque terá repercussão geral e firmará o entendimento sobre a validade ou não do marco temporal em todo o país. Estima-se que mais de 300 processos de demarcação de terras indígenas estejam pendentes à espera dessa definição.
Em seu voto contrário ao marco temporal, o ministro Alexandre de Moraes introduziu uma modulação, a de que produtores rurais e outros proprietários, em casos comprovados de boa-fé, seja indenizados pela União para desocuparem terras indígenas a serem demarcadas.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) criticou a modulação introduzida por Moraes, rejeitando eventuais indenizações. “Não é possível disponibilizar ou vender terras indígenas, vez que não possuem valor comercial e não estão sujeitas a qualquer tipo de desapropriação, mas sim, demarcação, mediante a nulidade e extinção dos negócios de compra, venda e exploração envolvendo terras indígenas, sem direito à indenização”, sustentou a Apib por meio de nota sobre o voto de Moraes. A possibilidade de indenização também foi contestada pela Advocacia-Geral da União (AGU).
Os votos de Edson Fachin e de Nunes Marques são bem elucidativos quanto aos argumentos contrários e favoráveis à medida. Nunes Marques afirmou em seu voto que, sem o marco temporal, “soberania e independência nacional estariam em risco”, que a posse tradicional não poderia ser confundida com “posse imemorial” e que a tese traria “segurança jurídica”.
Já o voto de Fachin destaca que a proteção constitucional aos direitos dos povos indígenas independe de um marco temporal. Trata-se, segundo Fachin, de um direito originário, “anterior à própria formação do Estado”.
Na quarta-feira (30), a reitoria da UFRJ divulgou uma nota manifestando solidariedade aos povos indígenas e expressando a esperança de que o STF rejeite o marco temporal. “Retroceder normas para a demarcação de terras indígenas representa um passo atrás nas garantias democráticas e republicanas de um ordenamento jurídico-legal baseado na justiça e reconhecimento das melhores tradições, das experiências históricas e das evidências científicas que compõem o vasto acervo de conhecimentos, saberes e práticas que nos identificam como brasileiros e brasileiras”, diz um dos trechos na nota.
As associações científicas brasileiras também emitiram uma nota conjunta rechaçando a tese e alertando para o risco que ela trará aos povos indígenas caso seja confirmada (veja abaixo a íntegra da nota). A Associação Brasileira de Antropologia (ABA), uma das entidades signatárias da nota, é amicus curiae no processo que corre no STF e contribuiu com robustos estudos sobre o caráter tradicional das terras indígenas do país.

ASSOCIAÇÕES CIENTÍFICAS: ‘ELAS DECIDEM O QUE NÓS, BRASILEIROS, SOMOS’

As entidades abaixo assinadas vêm mais uma vez a público alertar a sociedade brasileira para a profunda injustiça que pode ser cometida nos proximos dias, caso a esdrúxula tese do “Marco Temporal” seja aprovada, no Congresso ou no Supremo Tribunal Federal, retirando dos indígenas o direito que a Constituição de 1988 lhes reconhece às terras que ocupam tradicionalmente.
A Constituição Federal foi muito clara a este respeito, mas há alguns anos se propala a estranha ideia de que terras ocupadas “tradicionalmente” pelos povos indígenas seriam apenas aquelas que estavam sob sua posse na data da promulgação da Carta Magna. É claro que, neste caso, não seriam terras tradicionais!
Na verdade, a tese do marco temporal já foi rejeitada pelo voto do relator, ministro Edson Fachin, em 2021, ao arguir que “a Constituição reconhece que o direito dos povos indígenas sobre suas terras de ocupação tradicional é um direito originário, ou seja, anterior à própria formação do Estado”.
Em maio de 2023, as entidades que esta firmam divulgaram uma nota que demandava a rejeição do marco temporal e das 19 condicionantes adotadas no julgamento da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.
Desde 2020, a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), amicus curiae no Processo, vem contribuindo, com um conjunto de reflexões antropológicas circunstanciadas, para a devida análise e interpretação do tema, sobretudo no que diz respeito às dinâmicas territoriais indígenas e à tradicionalidade da ocupação.
Nova sessão está marcada para esta quarta-feira, 30 de agosto de 2023. As questões, os argumentos e a rejeição à tese apresentados pelas associações científicas permanecem. No entanto, o contexto mudou.
No Supremo Tribunal Federal, em sessão realizada em junho de 2023, o Ministro Alexandre Moraes apresentou um voto contra a tese do marco temporal. E introduziu uma novidade: a indenização do valor da terra nua, na forma de indenização prévia, nos casos de boa-fé dos ocupantes não indígenas. Este voto, apesar de negar a tese absurda do marco temporal, traz, porém, o risco de que os processos demarcatórios, já longos na sua efetivação, estendendo-se por décadas quando judicializados, tenham agora que depender de recursos orçamentários para se indenizar o valor da terra nua, previamente à desintrusão dos não indígenas.
O esbulho territorial sofrido pelos povos indígenas e a injustiça no acesso aos seus territórios no Brasil não é um tema novo, e constitui parte da formação da nação brasileira e das suas desigualdades sociais, e dos persistentes conflitos agrários e violências no campo. Os povos indígenas não são os promotores das injustiças sobre o acesso à terra em nosso país, mas suas principais vítimas. Reconhecer os seus direitos e modos de ocupação territoriais segundo seus usos, costumes e tradições é um passo necessário no sentido do respeito constitucional e da garantia de direitos em nosso país.
No Congresso Nacional, antecipando-se à retomada do julgamento pela Suprema Corte, a Comissão de Agricultura e Reforma Agrária do Senado, com forte representação da bancada ruralista, seguindo decisão já tomada pela Câmara dos Deputados em maio passado, votou, no dia 23 de agosto, pela aprovação da tese do marco temporal (Projetos de Lei 2.903/2023 e 490/2007), acrescentando sérios problemas e impedimentos para o reconhecimento e demarcação das terras indígenas no país. O Ministério Público Federal já alertou para a inconstitucionalidade do PL e os riscos relacionados à proteção dos direitos dos povos indígenas com sua eventual aprovação.
Essa decisão do Congresso, que regulamentaria o marco temporal, à revelia de uma discussão com os próprios indígenas, infringe o direito à consulta prévia, livre e informada, garantida pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, segundo a qual os povos indígenas e tribais têm que participar do processo de tomada de decisões administrativas e jurídicas que os afetem diretamente. Ademais, levanta feridas antigas que sugerem um tipo de poder autocrático encarnado em novo “coronelismo, enxada e voto”, já analisado por Victor Nunes Leal, ex-membro do STF, cassado pela ditadura militar.
As associações científicas seguem confiantes no respeito, pela Suprema Corte e pelo processo legislativo, aos princípios democráticos de nossa Constituição. Estas decisões não tratam apenas dos povos indígenas: elas decidem o que nós, brasileiros, somos. Somos um povo que respeita os direitos de todos, inclusive dos mais antigos ocupantes de nosso solo, um povo que se dispõe a reparar os esbulhos e injustiças que padeceram? É o que esperamos.

30 de agosto de 2023.

Associação Brasileira
de Antropologia (ABA)

Academia Brasileira
de Ciências (ABC)

Academia Brasileira
de Ciência Política (ABCP)

Associação Nacional
de Pós-Graduação
e Pesquisa em Ciências
Sociais (ANPOCS)

Sociedade Brasileira
de Sociologia (SBS)

Sociedade Brasileira
para o Progresso
da Ciência (SBPC)

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