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WhatsApp Image 2023 08 04 at 20.44.45 2‘Pronta para entrar na pauta de votações no Plenário”.
É assim, sem meias-palavras, que está descrita no site da Câmara dos Deputados a situação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 32/2020, de autoria do Poder Executivo, no governo Bolsonaro, que altera as regras de trabalho dos servidores e a organização da administração pública — a famigerada reforma administrativa. No momento em que o Centrão usa todo o seu poder de barganha para ampliar sua influência no governo Lula, é cada vez mais plausível a possibilidade de o presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL), colocar a PEC 32 em votação. Nos últimos dias, contudo, o movimento contra a reforma administrativa ganhou força — tanto em forma quanto em conteúdo.
Em termos de conteúdo, dois dos mais fortes argumentos dos defensores da reforma caíram por terra: o de que o Estado brasileiro é “inchado” e o de que os servidores ganham altos salários (sobre salários, leia matéria na página 5). Não é bem — aliás, não é nada — assim. Uma atualização dos dados da plataforma Atlas do Estado Brasileiro, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), órgão vinculado ao Ministério do Planejamento e Orçamento, mostra que esses dois argumentos são como lendas urbanas, propagadas e repetidas à exaustão, mas que não encontram lastro na realidade.
De acordo com o levantamento do Ipea, dos 91 milhões de trabalhadores brasileiros, 11,3 milhões estão no setor público (federal, estadual e municipal) com diferentes tipos de contratação, representando 12,45% do total. Um estudo comparativo do instituto Republica.org, com base em informações do Departamento de Estatísticas da Organização Internacional do Trabalho (OIT), mostra que esse percentual é inferior ao de países nórdicos onde vigora o Estado de bem-estar social, como Dinamarca (30,22%) e Suécia (29,28%), aos 23,48% da média dos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), e até aos 13,56% dos Estados Unidos.grafico

DISCURSO IDEOLÓGICO
Vice-presidente da AdUFRJ e coordenadora do Observatório do Conhecimento, a professora Mayra Goulart vislumbra um viés ideológico no discurso que apregoa o inchaço do Serviço Público. “Eu acredito que esse mito de que o Estado brasileiro é inchado, antes de tudo, desconsidera o fato de que não temos sequer um Estado de bem-estar social configurado. Ao contrário, nós temos escassez de instituições estatais para lidar com uma população e com uma magnitude territorial como as nossas. Essa visão de mundo que encara o Estado como uma ameaça ou como um ente com menor capacidade que o mercado para lidar com algumas questões é alimentada por interesses particulares, como os do mercado financeiro. O mesmo que concorre por recursos com a economia real. Quanto menos recursos no mercado financeiro, mais recursos na economia real, e vice-versa”, analisa Mayra.
Na mesma linha, a professora Marta Castilho, do Instituto de Economia da UFRJ, considera que o discurso do Estado inchado vem perdendo força. “Existe um discurso ideológico em prol do Estado mínimo. E, felizmente, ainda que por conta de uma causa ruim, esse discurso se enfraqueceu a partir da pandemia de covid-19. Os países centrais viram como é necessário ter um Estado forte, tanto nos investimentos públicos — em vacinas, medicamentos, equipamentos — quanto em termos de funcionários que pudessem assegurar os serviços de saúde e de assistência à população. Esse discurso do Estado mínimo saiu enfraquecido da pandemia no cenário internacional. Há um movimento de reabilitação do Estado”, pondera Marta.
Os “interesses particulares” apontados por Mayra Goulart também são identificados pelo economista Fernando Benfica, do escritório regional do Dieese no Rio de Janeiro. “O fato de a classe trabalhadora brasileira ter conseguido implementar sua rede mínima de proteção social através da Constituição Federal de 1988 dificilmente arrefeceria o ímpeto das parcelas da burguesia interessadas na exploração privada dos serviços públicos. Pelo contrário. Com isso, teve início uma campanha tão virulenta quanto sistemática contra o Estado e contra o serviço público, vivenciada até os dias de hoje”, aponta o economista. “Em dissonância com a narrativa neoliberal, o Estado brasileiro permanece figurando como mínimo para as parcelas da classe trabalhadora que mais dependem de seus serviços”, completa.

TÁTICA
Se em termos de conteúdo, a reforma administrativa vê ruir dois de seus principais pilares, no campo prático ganha corpo uma tática para sepultá-la na Câmara dos Deputados. De acordo com o coordenador-geral do Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica, Profissional e Tecnológica (Sinasefe), David Lobão, a tática foi articulada na reunião da mesa de negociação entre o governo federal e as entidades que representam os servidores públicos, em 25 de julho. “A reunião tratou das questões não econômicas e discutimos nove pontos, entre eles a PEC 32. O governo colocou claramente seu compromisso de não aprovar essa PEC. Nosso encaminhamento foi que a liderança do governo negocie o arquivamento da proposta por meio de um acordo no colegiado de líderes, de colocar a votação em plenário e garantir o arquivamento com uma votação de lideranças. Isso é possível”, conta Lobão.
Na avaliação das entidades sindicais contrárias à PEC 32, o deputado Arthur Lira vem fazendo barganha com a reforma. “Ele não tem votos para colocar em votação. Se tivesse, já teria botado, inclusive ainda durante o governo Bolsonaro. Ele não garantiu a contabilidade de votos para isso, tem que ser quórum qualificado para aprovar uma PEC, de três quintos do plenário. E a vitória de Lula enfraqueceu ainda mais a possibilidade de aprovação dessa PEC”, avalia o coordenador-geral do Sinasefe.
“Os governistas não têm maioria, o que nos causa aflição. Mas Arthur Lira, que quer priorizar a PEC, também não tem maioria ainda, o que nos dá um alívio”, diz Rudinei Marques, presidente do Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado (Fonacate). Segundo ele, o inchaço do Estado “é mais uma fake news” alimentada durante o governo Bolsonaro. “Na verdade, a máquina está esvaziada. Em conversas, os ministros dizem que assumiram suas pastas e se depararam com uma grande falta de pessoal, como no Ministério do Meio Ambiente, no Ministério de Gestão e Inovação. Há poucos auditores fiscais do trabalho na pasta da Economia, e até mesmo em órgãos como o Ibama”, diz Rudinei.
“A proposta de reforma administrativa que o Lira ameaça o tempo colocar para votar significaria agravar mais ainda a crise que atravessa o setor público, fruto da política de destruição da máquina administrativa que causou o esvaziamento dos órgãos públicos, como se observa no INSS, com milhões de benefícios represados”, reforça Sandro Cezar, presidente da CUT-Rio.
Cristina Del Papa, coordenadora-geral da Federação de Sindicatos de Trabalhadores Técnico-administrativos em Instituições de Ensino Superior Púbicas do Brasil (Fasubra), diz que a entidade planeja retomar a campanha de 2022 contra a PEC 32. “Visitamos gabinetes de senadores e deputados, no auge do governo Bolsonaro, e conseguimos travar a votação. Lira faz pressão, mas cão que ladra não morde. Se ele tivesse maioria, não estaria ameaçando. Ele está blefando. Nós temos os políticos dos partidos de esquerda que são contra a PEC e é interessante pensar que mesmo nos partidos de direita há servidores públicos que não vão votar contra os seus empregos”, analisa a sindicalista.
“O discurso do Estado inchado é um engodo, se comparamos com o cenário global. É um discurso violento que não encontra respaldo na realidade. No comparativo com os países escandinavos, com os países membros da OCDE, ou mesmo com os Estados Unidos, o paraíso do liberalismo, nossa marca comparativa é bastante tímida. Vamos reforçar nossa luta em defesa do Serviço Público por suas qualidades e peculiaridades”, diz o professor Gustavo Seferian, presidente do Andes-SN. Segundo ele, o tamanho do Estado brasileiro tem que ser medido pelas necessidades da população.
Essa também é a visão de David Lobão. “Para ter um Estado que garanta saúde, educação, previdência social, com qualidade, nós precisamos de mais servidores. E qualidade é importante. Se você pegar os serviços públicos municipais, a metade dos servidores é de terceirizados, não concursados. Sou professor de Matemática do Instituto Federal da Paraíba (IFPB), lotado no campus de Campina Grande. Temos muitos professores terceirizados, prestadores de serviço, com salários baixíssimos e com alta rotatividade. Precisamos mudar essa realidade”. (Colaborou Igor Vieira)

Supersalários são privilégio de minoria

A atualização dos dados do Atlas do Estado Brasileiro, do Ipea, e dos números da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do IBGE, revela que altos salários e privilégios não fazem parte da vida da maioria dos servidores públicos do Brasil. Ao contrário, essas benesses estão restritas a uma pequena casta de funcionários. Pequena em percentual, mas imensa em termos de gasto público. Estudo divulgado em julho pelo Centro de Liderança Pública (CLP), com base nos dados da PNAD 2022, mostra que apenas 25,5 mil servidores — que representam 0,23% do total — recebem os chamados “supersalários” e custam R$ 3,9 bilhões por ano ao país.
Os supersalários estão acima do teto do funcionalismo — que é de R$ 39,2 mil. De acordo com o estudo do CLP, os integrantes dessa elite de 0,23% recebem, em média, R$ 12,6 mil acima do teto. A proporção dos servidores nessa faixa salarial é maior na esfera federal — 0,77% —, seguida pelas esferas estadual (0,45%) e municipal (0,04%).
Na outra ponta, o cenário é bem diferente. O Atlas do Estado Brasileiro indica que a remuneração média dos servidores varia de forma significativa entre os níveis federativos e os poderes. Na esfera federal, enquanto a remuneração média no Executivo é de R$ 4 mil e de R$ 6 mil no Legislativo, ela chega a R$ 12 mil no Judiciário. Os dados são de 2019. O quadro é similar nas esferas estadual e municipal.
“Há diferenças salariais grandes dentro do Serviço Público. Os maiores salários estão concentrados em algumas áreas, como o Judiciário. Mas há áreas como Educação e Saúde onde os salários médios são baixos. Na Educação Básica, por exemplo, os funcionários técnico-administrativos têm salários muito baixos”, avalia a professora Marta Castilho. “Salvo algumas exceções de natureza aristocrática que ainda temos em nosso Serviço Público, o discurso quanto aos privilégios não se sustenta. Em sua maioria, os vencimentos não são adequados”, reforça o presidente do Andes-SN, Gustavo Seferian.
A coordenadora-geral da Fasubra, Cristina Del Papa, diz que os privilégios não estão apenas nos salários. “O Legislativo e o Judiciário têm vale-refeição de R$ 1.000 por mês. E nós, técnicos universitários, de cerca de R$ 600”.
A remuneração média entre os servidores é também diversa no recorte por sexo. As mulheres têm vencimentos médios inferiores aos homens em todos os poderes e níveis federativos.

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