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Estela Magalhães e Isadora Camargo

O calvário é conhecido. Primeiro o assédio, depois o estupro, por vezes o aborto ou a entrega para a adoção, e sempre, sempre mesmo, a criminalização. No intervalo de apenas oito dias, três casos de grande repercussão explicitaram o crescimento da violação aos direitos das mulheres no governo Bolsonaro. Em 20 de junho, foi divulgada a audiência pública em que a juíza Joana Ribeiro Zimmer assediou moralmente uma menina de apenas 11 anos para convencê-la a desistir do aborto legal. A criança fora estuprada e estava grávida de seis meses. Mesmo diante dos vários riscos à saúde mental e física da criança, como anemia e ruptura uterina, a juíza insistiu em perguntar se ela “suportaria ficar grávida mais um pouquinho”. Em 22 de junho, a menina finalmente conseguiu interromper a gestação sob autorização judicial. O segundo caso ocorreu ainda em junho, quando o colunista Léo Dias expôs no jornal Metrópoles informações privadas de que a atriz Klara Castanho entregara um bebê para adoção legal. Os dados deveriam estar protegidos por sigilo judicial. O caso revela faces dramáticas da hipocrisia que cerca a violência contra a mulher. Klara não abortou, mesmo sendo seu direito, uma vez que fora estuprada. Ainda assim, a jovem sofreu um massacre público que explicita um ponto pouco debatido — o machismo ataca a mulher em todas as circunstâncias. Se ela aborta, ela viola a vida. Se ela entrega para a adoção, não está cumprindo seu papel. “O que nos chama a atenção é a contínua criminalização da mulher”, diz a professora Vanessa Saraiva, da Escola de Serviço Social. O caso de Klara ainda carrega o viés da exposição pública irresponsável promovida por um jornalista que não cumpre a ética do ofício.
O terceiro ataque misógino foi desferido em 28 de junho, quando o país amanheceu assombrado com as denúncias de que o então presidente da Caixa Federal, Pedro Duarte Guimarães, assediava sexualmente funcionárias do banco. Os casos estão sob investigação do Ministério Público Federal. Pedro era um braço importante da gestão do Bolsonaro desde o começo do governo.
Para compreender a amplificação da violência contra a mulher, o Jornal da AdUFRJ convidou quatro professoras de diferentes áreas do conhecimento. “O movimento “pró-vida” não deveria ter esse nome. São pessoas reacionárias que destinam às mulheres um único papel social: o de mãe e submissa aos homens. Todos e todas somos a favor da vida, ninguém defende o aborto. Fazer um aborto é uma decisão dificil”, afirma a professora Ligia Bahia, do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva.
A exposição na mídia reflete outro aspecto da violência. “O sistema midiático é parte de uma rede complexa de controle sobre o corpo da mulher. Ela não tem direito sobre seu corpo quando é violada, e não tem direito à sua imagem quando é exposta. O agressor é sempre protegido”, explica a diretora da Escola de Comunicação, professora Suzy dos Santos. “A mídia precisa ser responsabilizada. Ela não apenas reproduz, mas gera um novo tipo de violência”.
A professora Carla Rodrigues, do IFCS, vai na ferida. “O assédio moral e sexual é um problema de quem comete o assédio. Essa pessoa tem que ser nomeada e tem que ser exposta. Enquanto a questão não for invertida e devolvida aos homens, não vai haver solução”.

ASSÉDIO

WhatsApp Image 2022 07 11 at 08.54.32 3“O assédio moral e sexual é um problema de quem comete o assédio”

Carla Rodrigues
Professora do IFCS

Jornal da Adufrj - Por que, mesmo depois de tanta mobilização feminina, casos como o do ex-presidente da Caixa são tão comuns?
Carla
- Seria interessante a gente colocar os homens em cena, porque o peso de sofrer o assédio fica todo sobre as mulheres. As mulheres têm que decidir se vão denunciar, se mobilizar, cuidar para que outras mulheres não sejam assediadas. Nisso desaparece a figura do assediador, de um homem que não sabe viver em sociedade. O assédio moral e sexual é um problema de quem comete o assédio. Essa pessoa tem que ser nomeada e tem que ser exposta. Enquanto a questão não for invertida e devolvida aos homens, não vai haver solução. São eles que têm que repensar o modo como vivem em sociedade. Não somos nós mulheres que temos de passar o resto das nossas vidas encontrando formas de nos proteger.

A senhora considera suficiente a legislação sobre assédio?
A legislação é meramente punitivista. Se homem na cadeia resolvesse alguma coisa, então a gente já teria tido a solução. Você tira um, mas vai vir outro. A única maneira de enfrentar o problema é criando aos homens um constrangimento social de ser assim. Precisamos ter o que a professora Daniela Manica (Unicamp) chamava de novo pacto civilizatório, considerando que as mulheres também são sujeitas de direitos, que as pessoas negras também são sujeitas de direito. Esse novo pacto não me parece que vá brotar de mais lei ou de mais punição. Vai brotar de instituições que abracem a causa, que estimulem comportamentos adequados socialmente.

A universidade é uma instituição desse novo pacto social?
Eu acho que a universidade é o lugar que deveria irradiar esse novo pacto. Porém, é importante que ela consiga, em primeiro lugar, conter as formas de assédio dentro dela mesma. Isso significa uma universidade menos colonial, menos hierarquizada, menos racista, menos misógina. Tudo que tem da porta para fora tem da porta para dentro. A diferença, pequena, mas importante, é que dentro da universidade você tem supostamente pessoas dedicadas à formação e à educação. Portanto, elas poderiam estar sensíveis ao fato de que o combate a toda forma de violência é inseparável da formação e da educação das pessoas.

DIREITOS - O assédio sexual costuma ser caracterizado como crime quando há relação hierárquica entre assediador e vítima, e não é determinado por gênero. Pelo código civil e penal, a vítima tem direito à indenização, e o assediador pode ser detido de um a dois anos.

DADOS - 42% das mulheres dizem já ter sofrido assédio sexual (Datafolha, 2017); uma em cada cinco adolescentes de 13 a 17 anos diz já ter sido tocada, manipulada, beijada ou ter tido partes do corpo expostas contra a sua vontade.( IBGE 2021); 63% das universitárias dizem já ter sofrido algum tipo de assédio no campus e não reagiram (Instituto Avon/Data Popular, 2015)

ABORTO

WhatsApp Image 2022 07 11 at 08.54.32 2“o que está em questão não é o aborto e, sim, sua criminalização”

Ligia Bahia
Professora do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva

Jornal da Adufrj - No último mês, acompanhamos o caso da menina de 11 anos que foi estuprada e teve o aborto negado na justiça. Por que acontece a restrição do direito ao aborto nas situações que já são permitidas pela legislação?
Ligia -
É uma realidade que a gente vinha avançando aos poucos, mas todas as pesquisas de opinião apontam uma sociedade muito desfavorável à legalização do aborto. O resultado é muito desanimador, mas todas nós mulheres conhecemos alguém que já fez ou já fizemos aborto. É uma opinião que não combina com a realidade. O movimento “pró-vida” não deveria ter esse nome. São pessoas reacionárias que destinam às mulheres um único papel social: o de mãe e submissa aos homens. Todos e todas somos a favor da vida, ninguém defende o aborto. Fazer um aborto é uma decisão dificil. O que está em questão não é o aborto e, sim, sua criminalização. As mulheres brasileiras fazem aborto, muitas vezes o aborto perigoso, que põe a vida das mulheres em risco, que é o aborto não assistido, seja ele usando a pílula ou o aborto mecânico.

Como a negação desse direito afeta as mulheres no país?
Estávamos conseguindo espalhar um pouco os centros que fazem aborto nos hospitais públicos, espalhando essas equipes pelo país para que essa lei, que já é restritiva, fosse cumprida, mas, com o governo Bolsonaro, isso retrocedeu. O que está sendo negado é o direito ao aborto legal no Brasil. O país tem altas taxas de mortalidade materna e uma das principais causas é o aborto perigoso. Ele continuará existindo se a gente não assegurar às mulheres os direitos de decidir terem filhos ou não e quando, e que esses direitos sejam amparados por práticas seguras.

O que pode ser feito para garantir um aborto legal, seguro e de qualidade?
Os países que descriminalizaram o aborto observam uma queda nas taxas de interrupção da gestação. A legislação permite que todo debate sobre relações sexuais e suas consequências fique mais aberto. Nós, que somos da área da saúde, temos que caminhar fortemente para, na nossa universidade, a gente ter centros que acompanhem e ajudem a efetivar o direito das mulheres a realizar o aborto legal e seguro.

DIREITOS - O aborto é autorizado pela legislação brasileira quando a gravidez é decorrente de estupro, quando a vida da gestante está em risco e em caso de anencefalia do feto.

DADOS - Cerca de 1 milhão de abortos induzidos ocorrem anualmente no Brasil segundo dados de 2018 do Ministério da Saúde. Os procedimentos sem segurança levam à hospitalização de 250 mil mulheres por ano e, em 2016, causaram a morte de uma mulher a cada dois dias.

ADOÇÃO

WhatsApp Image 2022 07 11 at 08.54.32 1“Mães candidatas à adoção são condenadas por não gerar um filho”

Vanessa Cristina dos Santos Saraiva
Professora da Escola de Serviço Social

Jornal da Adufrj - Quais são os principais problemas da violação da privacidade nos processos da adoção aparentes no caso da atriz Klara Castanho, que sofreu ataques por ter entregado uma criança legalmente?
Vanessa
- O que nos chama a atenção é a criminalização da mulher. É a perspectiva do machismo, do patriarcado, das relações de gênero, onde o senso comum diz que o papel de mãe deve ser abraçado por todas as mulheres. O tempo todo dizem que ela deveria ter ficado com o bebê, mas em nenhum momento as pessoas questionam sobre o abuso que ela sofreu, sobre a violência sexual ou por que os profissionais do hospital não respeitaram esse processo sigiloso. Tratam a maternidade como se fosse algo muito fácil e naturalmente atribuído às mulheres e colocam a adoção como se fosse uma coisa muito tranquila, mas não é o caso.

Como o serviço social atende a família adotante?
A gente percebe que as mães candidatas à adoção também são penalizadas e condenadas por não gerar um filho biologicamente. São vistas como improdutivas e ainda culpabilizadas por isso. Você percebe que as mulheres são criminalizadas nas duas situações. A perspectiva do serviço social é garantir um lugar seguro para a criança, mas também para as mães. Queremos impedir a adoção ilegal. Fazemos toda a mediação do processo e atendemos a família adotante, a criança e a mulher que entrega. Elas têm o direito ao processo sigiloso e à garantia de atendimento psicológico e social por uma equipe multidisciplinar.

Que cuidados precisam ser tomados na abordagem da adoção com a criança?
Sempre orientamos a necessidade de conversar sobre a adoção quando a criança crescer e amadurecer. Você não faz uma nova história com a adoção, não tem como apagar a história de um adolescente, de uma criança ou de um bebê. Essa exposição que a Klara Castanho sofreu vai ter repercussões para a criança e para a família adotante. O sigilo era exatamente porque tem uma criança envolvida. Com isso, a gente percebe uma objetificação da infância. Essa criança não é percebida como um sujeito de direitos, ela é vista como um objeto.

DIREITOS - A Nova Lei da Adoção determina um prazo máximo de dois anos para a permanência das crianças e adolescentes em abrigos. A partir desse tempo, as crianças entram no cadastro de adoção, independente da permissão dos pais biológicos ou responsáveis. A lei também garante apoio psicológico e acompanhamento judicial às mulheres que entregam crianças para adoção.

DADOS - A cada dia, três crianças são entregues para adoção no Brasil segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O principal motivo da entrega aos abrigos no Rio de Janeiro é a negligência, correspondente a 36,95% dos casos. Além disso, apenas 12% dessas crianças estão disponíveis para adoção. Esses são dados do 27º Censo do Módulo Criança e Adolescente, feito pelo Ministério Público do Rio.

EXPOSIÇÃO NA MÍDIA

WhatsApp Image 2022 07 11 at 08.54.32“A mídia precisa ser responsabilizada”

Suzy dos Santos
Professora da Escola de Comunicação

Jornal da Adufrj - O que um caso como o da Klara Castanho diz sobre exposição e o papel da mídia nas questões de violência contra mulher?
Suzy
- O sistema midiático é parte de um sistema complexo de controle sobre o corpo da mulher. Da mesma forma que ela não tem direito sobre seu corpo quando foi violada, não tem direito à sua imagem quando é exposta, enquanto o agressor é protegido. A mídia precisa ser responsabilizada, pois ela não apenas reproduz, mas gera um novo tipo de violência

Por outro lado, casos como o da menina de 11 anos, que só conseguiu abortar após as denúncias nos jornais, mostram que a mídia pode cumprir um papel positivo. Concorda?
Isso passa por um processo mais complicado, que é muito perigoso. Sim, por um lado a visibilidade desse caso fez com que essa menina garantisse seu direito ao aborto. Por outro, a gente não faz ideia do quanto, nos tempos que estamos vivendo, isso gerou de discurso de ódio, sobre ela e outras crianças. E tem outro aspecto, quanto por cento é o jornalismo dentro de todo pacote do sistema midiático? Quase nada. Pode atuar em casos específicos, mas o poder jornalístico tem que ser relativizado em relação ao poder da cultura de entretenimento. A grosso modo, precisamos olhar para as novelas, redes sociais, perfis de fofoca, para o pornô, e entender realmente os discursos de gênero que são produzidos.

O que a senhora considera que deve ser feito pra minimizar casos como este?
Historicamente no Brasil, optamos por não regular a mídia. Isso faz com que ninguém tenha muita clareza do que pode e do que não pode. A informação sobre a Klara não era pra sair do hospital, mas saiu, e alguém comprou. No sistema midiático, no capitalismo, a responsabilidade social vai só até a página dois, por questões de sobrevivência financeira mesmo. Há que se ter uma regulação. Regulação para além da proibição, pensando em leis de incentivo a outros conteúdos.

DIREITOS - As crianças e os adolescentes têm o direito à imagem preservados pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e, portanto, ainda que cometam um crime, suas imagens não podem ser divulgadas por qualquer pessoa que seja.
O sigilo no processo de adoção também é direito, tanto da mãe quanto da criança.
No Brasil, há o Código Brasileiro de Telecomunicações, promulgado pelo Congresso Nacional.

DADOS - Mulheres são maiores vítimas de vazamento de fotos e exposição na internet: 75% das mulheres temem vazamento de dados pessoais (Pesquisa Psafe 2021)

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