Com uma velocidade impressionante, o presidente norte-americano Donald Trump desferiu nestes primeiros 24 dias de março um arsenal de golpes contra seus inimigos preferenciais — as universidades, os servidores públicos, a Educação e a Justiça — que não deixa dúvidas quanto ao caráter autoritário de seu segundo mandato na Casa Branca. No caso das universidades, os ataques incluem o corte de recursos federais, a intervenção acadêmica e a prisão e deportação de estudantes e professores.
Entre tantos episódios que remetem aos tempos da Guerra Fria, talvez o mais emblemático seja o do estudante Mahmoud Khalil, aluno da Universidade de Columbia, em Nova York. Um dos líderes dos protestos estudantis contra a guerra em Gaza, ele teve seu visto suspenso e aguarda a deportação numa prisão na Louisiana. Foi detido num alojamento da universidade, em 8 de março, diante da mulher, que está grávida de oito meses. “Esta é a primeira prisão de muitas que virão”, disse Trump na rede Truth Social, acusando Khalil de ser um “estudante radical a favor do Hamas”.
Refugiado palestino criado na Síria, o estudante se declara um preso político, e sua detenção abriu mais um capítulo na cruzada de Trump contra outro inimigo prioritário desde que assumiu o governo: a Justiça. Khalil só não foi ainda deportado porque está amparado por um bloqueio à deportação determinado por um juiz federal de Nova York. O governo Trump já tentou dois recursos para derrubar a medida, mas não teve sucesso.
A médica Rasha Alawieh, de origem libanesa, professora da Faculdade de Medicina da Universidade Brown, não teve a mesma sorte. Detida em 13 de março, quando voltou aos Estados Unidos depois de uma viagem para visitar a família no Líbano, ela foi deportada dois dias depois, sob a alegação de ter participado do funeral de Hassan Nasrallah, líder do Hezbollah morto durante ataque de Israel em 2024. Os advogados da docente conseguiram que um juiz de Massachusetts ordenasse ao governo comunicar com 48 horas de antecedência a deportação. A medida foi ignorada: ela foi colocada em um voo para a França, de onde seguiu para o Líbano.
EMBATES
Para o pró-reitor de Pós-Graduação e Pesquisa da UFRJ, professor João Torres, os ataques do governo Trump às universidades representam um retrocesso aos tempos da Guerra Fria. Ele cita uma correspondência enviada pela administração federal dos Estados Unidos à Universidade de Columbia no dia 13 de março, com uma série de medidas a serem tomadas sem as quais a instituição não terá mais acesso a recursos do governo. “A carta é uma peça de intervenção. Um ataque direto à liberdade de expressão e de cátedra, algo sem precedentes nos Estados Unidos desde o macarthismo”, avalia o professor.
Entre as medidas impostas está a intervenção “por no mínimo cinco anos” no Departamento de Estudos do Oriente Média, Sul da África e Ásia, além de novas regras para admissão de professores e alunos, e a investigação e expulsão de estudantes. João Torres estranha a passividade com que Columbia tem aceitado as imposições. “No caso de Mahmoud Khalil, preso sem nenhum crime comprovado, a universidade tem se mantido em silêncio e seus comunicados sequer citam o nome do aluno, algo que impressiona”.
Na sexta-feira (21), a Universidade de Columbia aceitou formalmente uma série de medidas exigidas pelo governo como pré-condição para recuperar os investimentos cortados.
Professor do IFCS, o sociólogo e cientista político Paulo Baía vê paralelos entre as ações de Trump em relação às universidades com a postura adotada pelo governo Bolsonaro no Brasil. “A política do governo Trump é contra a autonomia da Ciência, dos cientistas e dos pesquisadores. É contra a universidade que preza a liberdade de cátedra e a liberdade de pensamento. Eles querem que toda a produção de conhecimento seja feita por corporações empresariais. E não é uma questão de privatização, porque as universidades norte-americanas já são privadas. A política de Trump é sinergética ao bolsonarismo, que também tentou atingir as universidades naquilo que elas têm de mais importante: o seu pluralismo, a sua democracia interna”, compara Baía.
PERSEGUIÇÕES
O incentivo a delações e as averiguações de conduta feitas pelo governo Trump só encontram paralelo no macarthismo (veja quadro na página 9). Há relatos de abordagens diretas feitas por integrantes de agências governamentais a professores e servidores públicos em seus locais de trabalho. Na semana passada, um comunicado interno da Universidade do Estado da Louisiana (LSU) orientava os professores a direcionar abordagens de agentes do governo ao Departamento de Recursos Humanos da instituição.
Nem os professores estrangeiros em visita aos Estados Unidos escapam das abordagens. No dia 9 de março, um cientista francês, cujo nome não foi revelado, foi barrado no aeroporto de Houston, no Texas, onde participaria de uma conferência como representante do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França. Os agentes o selecionaram para uma revista, encontraram mensagens com críticas às medidas do governo Trump contra as universidades em seus aparelhos eletrônicos e o enviaram de volta à França. Ao saber do caso, o ministro francês de Educação Superior e Pesquisa, Philippe Baptiste, declarou: “Liberdade de opinião, pesquisa livre e liberdade acadêmica são valores que continuaremos a defender com orgulho. Defenderei o direito de todos os pesquisadores franceses de serem fiéis a eles, respeitando a lei”.
Marco Antônio Sousa Alves, professor de Teoria e Filosofia do Direito e do Estado da UFMG, sentiu na pele essa onda persecutória do governo Trump. Ele teve um projeto cancelado depois de ter sido aprovado pela agência de fomento norte-americana Fulbright. O projeto traria ao Brasil, para um ciclo de debates, o professor Bernard Harcourt, da Universidade de Columbia, e foi vetado por conter termos considerados inapropriados pela agenda America First do governo Trump, como “Human Rights” e “oppressions of gender, class, and race”.
“Universidades, especialistas, cientistas e grupos de pesquisa são tradicionalmente vistos como inimigos a ser batidos pelos grupos de extrema direita. Só que agora ganharam uma prioridade, envolvendo cortes de recursos, como os 400 milhões de dólares de Columbia, de onde vinha nosso convidado, e perseguições políticas, como a do estudante palestino. Temos uma deriva muito perigosa nos Estados Unidos, que vai minando aos poucos a base de um Estado Democrático de Direito. Corremos o risco de ter um governo autoritário claramente estabelecido nos Estados Unidos”, avalia o professor da UFMG.
Marco Antônio também vê semelhanças notáveis entre o segundo governo Trump e o macarthismo. “A extrema direita tem muita penetração em pautas negacionistas, como os movimentos antivacina, a negação do aquecimento global, e tende a politizar a Ciência, fazer leituras inspiradas em teorias conspiratórias. Estamos vendo hoje nos Estados Unidos algo que houve há tempos atrás, no auge da Guerra Fria, no macarthismo, na caça às bruxas, que eram os comunistas. Isso teve um impacto tremendo nas universidades norte-americanas naquela época. Acho que a gente está revivendo algo parecido, como um neomacarthismo. Agora os inimigos passam pelas teorias de gênero, a defesa da Palestina, os direitos humanos”.
RESISTÊNCIA
A cruzada do governo Trump contra a agenda “woke” — algo como “tô ligado”, “acordei” e que designa a conscientização em relação a temas sociais e raciais, entre outros — está por trás dos ataques às universidades norte-americanas. A Universidade de Columbia encabeça a lista de instituições cerceadas e investigadas, algumas integrantes da prestigiosa Ivy League, grupo conhecido pela excelência acadêmica e influência mundial, como Harvard, Yale, Princeton e a própria Columbia. Tanto quanto o cerco, chama atenção a passividade com que essas instituições têm lidado com o cenário adverso. Harvard e Penn State aceitaram, por exemplo, o congelamento temporário na contratação de professores.
“A postura de não resistir a essa pressão é muito ruim. No caso de Columbia, vai contra um legado histórico. Os estudantes lá tiveram um papel crucial na luta contra o apartheid na África do Sul, nas décadas de 1970 e 1980, com protestos e campanhas de desinvestimento. Da mesma forma como fazem hoje em favor da Palestina. Os que participam de colaborações internacionais estão muito preocupados, porque não sabem até onde isso vai. Estão de certa forma se acovardando, cedendo à pressão de retirar palavras de seus documentos. Se compararmos o que nossas universidades sofreram sob o governo Bolsonaro, posso dizer que nós tivemos um pouco mais de atitude”, diz João Torres, que presidiu a AdUFRJ no período bolsonarista.
Marco Antônio prevê tempos difíceis, mas diz que é preciso resistir. “Meu temor é uma nova Era das Trevas, na qual se passa a perseguir cientistas, pesquisadores, pensadores, por supostos crimes de ideia. E que um governo autoritário passe a pautar as pesquisas científicas, impedindo que determinados temas sejam sequer estudados. A esperança é que os Estados Unidos não levem o mundo com eles. Resistir e denunciar, isso me parece o caminho, com a soma da força dos sindicatos, dos movimentos sociais progressistas, para poder fazer frente a um poder que é muito grande”.
Com a proximidade das eleições presidenciais no Brasil, em 2026, o avanço da extrema direita incensada pelo governo Trump é uma preocupação urgente, na avaliação do professor Paulo Baía.
“A reação do campo democrático tem que se dar por meio do ativismo presencial e digital, junto à classe média, sobretudo, e aos segmentos populares. Isso é fundamental para combater as fake news da direita. E não pode ser um ativismo acadêmico. Temos que perceber que há uma nova sociedade brasileira, bem distante da que era em 1970 ou 1980. Temos que intensificar a luta contra a intolerância religiosa, respeitar e conviver com os evangélicos, disseminar de forma clara os conceitos democráticos e progressista”, diz Baía.
A professora Mayra Goulart, cientista política e presidenta da AdUFRJ, vê com apreensão o cenário norte-americano e sua ligação com o Brasil. “Neste segundo governo Trump, o funcionalismo público tem sido um alvo preferencial de cortes, justificados por argumentos relativos à ortodoxia fiscal, mas, também, pela crença de que a gestão privada é sempre mais eficiente do que a pública. A Ciência é um segundo alvo de drásticos cortes, justificados pela crítica à diversidade e à proteção de minorias, mas também pela ideia de que são gastos desnecessários. Nós, como funcionários públicos e pesquisadores, somos um alvo certeiro”, diz Mayra.
“O que está em jogo é a sobrevivência do Estado Democrático de Direito e do nosso projeto de universidade pública, gratuita e de qualidade. Daí a importância da aglutinação das forças progressistas diante do avanço da extrema direita no Brasil, incensada pelas recentes medidas do governo Trump, sobretudo com vistas às eleições presidenciais de 2026”, completa a professora.
A ESCALADA DE MARÇO
4 de março
O presidente Donald Trump anuncia a suspensão de todo o financiamento federal para faculdades e escolas que “permitirem protestos ilegais” e avisa que os “agitadores serão presos ou enviados de volta ao país de onde vieram”. Ele já havia ameaçado, no início de seu mandato, cortar verbas de instituições de ensino que estimulassem a agenda “woke”, de conscientização política, racial, ambiental, social e de gênero.
7 de março
A administração federal divulga cortes de 400 milhões de dólares (R$ 2,3 bilhões) nos fundos federais concedidos à Universidade de Columbia, acusada de ter sido passiva “diante do persistente assédio aos estudantes judeus” durante protestos contra a guerra em Gaza, em 2024. Seis dias depois, a universidade anunciou punições a estudantes que ocuparam um prédio do campus no ano passado durante os protestos.
8 de março
Agentes do Departamento de Imigração e Alfândega prendem Mahmoud Khalil, aluno da Universidade de Columbia, um dos líderes dos protestos em universidades norte-americanas contra a guerra em Gaza. Detido em um alojamento da universidade, ele teve o seu visto de estudante revogado e foi levado a uma prisão na Lousiana.
9 de março
Um cientista francês é detido e impedido de entrar nos Estados Unidos por causa de mensagens críticas ao presidente Donald Trump. Ele estava a caminho de uma conferência em Houston, no Texas, quando agentes da Alfândega e Proteção de Fronteiras dos EUA o selecionaram para uma revista mais abrangente e encontraram mensagens de celular em que o francês criticava os cortes em pesquisas científicas nos EUA a grupos de amigos.
11 de março
O Departamento de Educação dos EUA informa a redução drástica de seu quadro de funcionários. A agência é responsável por administrar empréstimos para universidades, acompanhar o desempenho de alunos e aplicar os direitos civis nas escolas. Dos 4.133 servidores, 1.315 foram demitidos, 572 aceitaram a demissão voluntária, e 63 que estavam em estágio probatório foram desligados.
13 de março
A Universidade Johns Hopkins anuncia a dispensa de mais de dois mil funcionários devido aos cortes de 800 milhões de dólares (R$ 4,6 bilhões) impostos pelo governo Trump.
Em carta enviada à Universidade de Columbia (detalhes acima), o governo Trump faz uma série de exigências como “pré-condição para negociações formais sobre o relacionamento financeiro contínuo” da instituição com o governo dos Estados Unidos. Entre as exigências estão a intervenção no MESAAS Departament e a investigação e expulsão de estudantes. Columbia acatou as imposições.
14 de março
A administração federal abre investigação contra mais de 50 universidades por programas de diversidade. O Departamento de Educação justificou a medida pela necessidade de “averiguar supostas práticas discriminatórias contra estudantes brancos e asiático-americanos”.
15 de março
A médica Rasha Alawieh, de origem libanesa, professora da Faculdade de Medicina da Universidade Brown, é presa e deportada, apesar de ter visto válido e estar protegida por ordem judicial. Ela foi detida em 13 de março, quando voltou aos Estados Unidos depois de uma viagem para visitar a família no Líbano. O motivo da prisão e da deportação foi a presença da médica no funeral de Hassan Nasrallah, líder do Hezbollah morto durante ataque aéreo de Israel em setembro de 2024, em Beirute.
19 de março
O governo suspende 175 milhões de dólares (R$ 1 bilhão) em financiamento federal para a Universidade da Pensilvânia, sob a alegação de que a instituição “força mulheres a competirem contra homens nos esportes”. O corte se baseou em decreto presidencial de fevereiro, que proibiu a participação de transgêneros em esportes femininos.
20 de março
Trump assina a ordem executiva que esvazia as funções e dá início à extinção do Departamento de Educação. O documento determina que as funções da instituição sejam transferidas gradativamente aos estados. O fechamento terá ainda de ser apreciado pelo Congresso.
MACARTHISMO, DOENÇA INFANTIL DO CAPITALISMO
Com o fim da Segunda Guerra e o início da Guerra Fria, a perseguição interna a milhares de norte-americanos rotulados como comunistas se intensificou. Figura central dessa cruzada, o senador republicano Joseph McCarthy (foto) comandou inquéritos contra funcionários públicos, artistas, intelectuais, educadores e sindicalistas, com apoio do FBI, comandado por J. Edgar Hoover, em busca de supostos “espiões soviéticos”.
Essa “caça às bruxas”, como se convencionou chamar no final dos anos 1940 e início dos anos 1950, incentivava as delações, como o que vem ocorrendo agora nos Estados Unidos. O macarthismo passou a denominar um conjunto de práticas de acusação de traição e subversão, mesmo sem provas. Milhares de funcionários do governo norte-americano foram demitidos de 1950 a 1957.
Qualquer semelhança com o segundo governo Trump não é mera coincidência.