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WhatsApp Image 2021 08 20 at 13.11.25 3FERNANDO BRANCOLI,- PROFESSOR DO IRID/UFRJUma reviravolta no tabuleiro político mundial. Com a retirada das tropas norte-americanas do Afeganistão, o grupo islâmico Talibã avançou rapidamente para dominar as principais cidades do país. No último domingo (15), o presidente Ashraf Ghani deixou o país com a justificativa de evitar “um derramamento de sangue em Cabul”, a capital. Os talibãs então tomaram o palácio presidencial e assumiram o poder do país, 20 anos depois de serem derrubados pelos Estados Unidos. Após os atentados de 11 de setembro de 2001, os norte-americanos expulsaram o Talibã e passaram a intervir militarmente no Afeganistão. A nova vitória do grupo extremista assustou grande parte da população, provocando cenas de caos e fugas desesperadas que chocaram o mundo. Para entender o temor causado no povo afegão, e as razões e consequências geopolíticas desse acontecimento, o Jornal da AdUFRJ conversou com Fernando Brancoli, professor de Segurança Internacional e de Geopolítica do Instituto de Relações Internacionais e Defesa (IRID) da UFRJ. Ele é descrente quanto a uma guinada moderada do Talibã, ensaiada pelos primeiros movimentos do grupo diante da imprensa internacional: “As esperanças não são muito boas”.

Jornal da AdUFRJ — O Talibã assumiu o poder com um discurso moderado, de transição pacífica de poderes. Existe alguma esperança de que isso se concretize?
Fernando Brancoli — A transição já ocorreu, e não teve resistência. O presidente fugiu e o exército debandou, deixando armamentos e aeronaves para o Talibã. Esse processo foi não violento, mas não houve acordo, e sim uma desistência. O que a gente tem dúvida agora é de como será esse grau de moderação que o Talibã tem prometido. Com base no histórico do grupo na década de 1990, as esperanças não são muito boas. Foi um grupo muito violento, que tratava mulheres e minorias de forma muito pesada. É um grupo islâmico fundamentalista, com uma interpretação ultraortodoxa da lei islâmica (sharia). A transição foi relativamente tranquila, mas o receio agora é sobre o que vai acontecer com as pessoas consideradas traidoras, e de como o Estado se organizará. E os prospectos são muito negativos.

WhatsApp Image 2021 08 20 at 13.11.25 2OMMOLBAHNI HASSANI, mais conhecida como Shamsia, é uma grafiteira afegã. Aos 33 anos de idade, ela é professora de escultura da Universidade de Cabul e seus trabalhos estão em galerias e muros do Afeganistão, da Alemanha, da Itália. da Índia e da Suíça. Hassani é uma voz ativa e sensível contra a guerra, pelo direito das mulheres e pela educaçA democracia no Afeganistão se consolidou ao longo destes 20 anos de presença militar dos Estado Unidos?
Não. Foram realizadas algumas reformas institucionais, processos de modernização e votação, mas a democracia de fato nunca aconteceu. Nesse período, não teve a menor possibilidade de se imaginar uma democracia consolidada. Tanto que agora, com a saída das tropas americanas, houve a desintegração de todo esse processo.

Por que os Estados Unidos decidira retirar suas tropas do Afeganistão e o que isso significou para a política internacional?
Eles entram em 2001, logo após os ataques do 11 de setembro. Naquele momento, o objetivo era capturar Bin Laden e impedir o surgimento de novos grupos terroristas. Ao longo desses 20 anos, foram gastos trilhões de dólares. Bin Laden foi morto em 2011, no Paquistão. Então, a população norte-americana já não tem interesse em manter tropas no Afeganistão. Vale lembrar que essa retirada das tropas se iniciou no governo Trump, e se encerra agora com o governo Biden. Ainda não temos certeza do que isso vai significar para a política internacional, estamos aguardando para ver como as outras potências vão se movimentar. A China, por exemplo, já indicou que vai negociar sem problemas com o Talibã.

Qual foi o acordo estabelecido entre o governo Trump e o Talibã?
O acordo previa que se o Talibã se comprometesse a não abrigar mais terroristas e respeitasse o governo em Cabul, Trump retiraria as tropas. Como se pode imaginar, o Talibã não cumpriu o combinado. Bastou os EUA retirarem suas tropas que eles avançaram e derrubaram o governo em Cabul. Mas o cálculo do Trump atendia aos interesses políticos dele. Ele se elegeu com a promessa de tirar as tropas do Oriente Médio, a fim de parar de gastar tanto dinheiro fora do território norte-americano. O Biden chegou ao poder com esse acordo já costurado, e decidiu manter. No final das contas, o Talibã enganou os EUA com esse argumento de que não fariam nada, e obviamente fizeram. Foi uma decisão feita por um republicano, materializada por um democrata e que resultou em um desastre completo, pelo menos do ponto de vista da retirada das tropas e de como essa estrutura foi desmobilizada.

A vitória do Talibã pode ser considerada a primeira grande derrota de Joe Biden?
Certamente é o primeiro grande evento negativo do governo Biden. Ele vai ter que se explicar com relação a isso, principalmente no próprio país. As imagens vão ser repetidas pelos críticos durante um bom tempo. Desde que assumiu, ele conseguiu responder de maneira relativamente rápida à crise da pandemia, com a vacinação e a retomada da economia. Mas a gente está falando agora de uma crise internacional, que mexe inclusive com a memória dos norte-americanos. Esse acontecimento relembra, por exemplo, o Vietnã. Essa é certamente a grande crise do governo Biden, com a qual ele vai ter que lidar, no mínimo, até o final do ano.

Mesmo com 20 anos de presença no território, os Estados Unidos não conseguiram prever essa articulação do Talibã?
Essa é a dúvida do momento. Se as agências de inteligência dos EUA não conseguiram mensurar o problema; se ocorreu uma falha de comunicação entre essas agências, como no 11 de setembro, quando se tinha as informações, mas elas não chegaram em quem tinha que chegar; ou se os EUA realmente já não se importavam tanto e deixaram o problema para os afegãos. Vamos ter que esperar um tempo ainda para descobrir.

O retorno do Talibã pode fazer com que a Al-Qaeda ou outros grupos terroristas ganhem força?
Não sei a Al-Qaeda, até porque o Talibã já aprendeu um pouco a lição e já não é mais o mesmo grupo, nem com os mesmos membros. Chamar ou abrigar a Al-Qaeda agora seria um convite para sofrer uma nova intervenção. O que pode acontecer, até de maneira indireta, é um recado de que os grupos que violam os direitos da sua população conseguem sobreviver sem punição do sistema internacional. Não sei se haverá um incentivo direto aos grupos terroristas, mas certamente pode deixar um recado bem ruim.

O que o retorno do Talibã ao poder pode significar para o futuro das mulheres no Afeganistão?
Há um receio de proibição de ação pública, como ir à escola, universidade ou mesmo trabalhar. É um pouco do que já está acontecendo. Na Universidade de Cabul, que tem quase 50% de estudantes mulheres, as alunas já estão começando a fugir, com medo do que pode acontecer. Existe uma dinâmica que obriga as mulheres a usarem a burca em público, e só poderem sair de casa acompanhadas por um parente homem. Há também punições severas, como o apedrejamento de mulheres acusadas de adultério, onde muitas vezes basta a palavra do homem para que isso seja realizado. Se esses 20 anos de intervenção dos EUA não foram perfeitos, ao menos deram às mulheres um grau maior de autonomia, e agora existe um receio de que elas percam isso.

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