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Em depoimentos emocionados, os quatro filhos de Maria Lucia contam como a mãe sempre foi alicerce, presença, constância e alegria, mesmo nos momentos mais difíceis da história familiar

JOÃO PEDRO TEIXEIRA WERNECK VIANNA

WhatsApp Image 2024 12 21 at 11.54.29OS TEIXEIRA. Brigadeiro Francisco Teixeira, filho Raul e neto João PedroFiquei muito tocado quando vi o filme “Ainda estou aqui”. Estava com minha esposa no cinema. Numa das cenas, aparece Eunice encapuzada, indo para a Barão de Mesquita, nos anos do golpe militar. Se não me engano, em 1971, a ditadura militar estava atrás do meu pai, que era dirigente do Partidão, o Partido Comunista Brasileiro. Eles queriam a cabeça do meu pai e prenderam a minha mãe. Vendo o filme, eu me lembrei que minha mãe poderia ter passado pelo mesmo processo.
No dia seguinte ao filme, eu e Gabriela fomos tomar um vinho na casa da minha mãe. Conversei com ela e perguntei sobre aquele tempo. Lembro de nosso diálogo:
“Mãe, você nunca quis comentar nada conosco, com os filhos, sobre sua prisão na Barão de Mesquita, sobre o que aconteceu lá dentro. Respeitamos sempre o seu direito de preservar esse momento triste da história. Como a Eunice foi encapuzada indo para a Barão de Mesquita e ficou lá uma semana, eu queria saber se aconteceu o mesmo com você.”
Minha mãe me respondeu que só iria contar essa parte da história. Ela disse: “Meu filho, eu fui encapuzada junto com o seu avô, meu pai, que foi lá para casa no dia que a ditadura bateu à porta e quis me levar. Meu pai, o Brigadeiro Francisco Teixeira, disse que a filha dele só iria se ele fosse.”
Então, os militares levaram minha a mãe e o meu avô. Minha mãe ficou presa durante um mês na Barão de Mesquita. Não sei se ela sabia onde meu pai estava, porque naquela época as pessoas clandestinas não tinham como fazer contato. Meu pai já estava no Chile. Na vitória do Salvador Allende, ele foi de caminhão até a Argentina, atravessou a fronteira e de lá seguiu para o Chile. Minha mãe sempre nos preservou do que aconteceu naquele tempo, dentro dos porões da ditadura, dentro da Polícia do Exército.”

JULIANO TEIXEIRA WERNECK VIANNA

WhatsApp Image 2024 12 21 at 11.22.41PRESENTE. Com Juliano, em São PauloMinha mãe tinha um gosto musical muito apurado, era muito antenada. Ela me deu uma educação musical maravilhosa. Temos uma coleção de discos desde os anos 1950, passando por Beatles, cancioneiro popular, show Opinião, música clássica, MPB. Ela sempre tinha sua vitrola. Era pianista, me passou esse gosto e eu passei para o meu filho. Este, sim, é músico de formação. Ela tinha um enorme orgulho disso. A música foi muito importante na vida dela e foi também na minha.
Tinha uma interpretação sociológica sobre tudo, sempre. Ela sempre nos situava sobre gênero, classe, raça, mas sem ser professoral. Ela nos fez entender o mundo a partir dessas referências, a pensar sobre intolerância.
Gostávamos muito de ir ao cinema juntos. Assistimos a muitos filmes. Ela sempre tinha interpretações muito bonitas, generosas. Nessa vida que tivemos, nunca nos sentimos abandonados, mesmo nos períodos mais difíceis.
Ela era amante da literatura, da música, do cinema e da dança. Ela era uma dançarina como poucas. Dança de salão, samba, o que você puder imaginar. Tinha uma veia artística muito forte e uma capacidade artística também. Foi professora primária por muitos anos e tinha grande habilidade com as mãos. Fez fantasias carnavalescas até quando pôde. Eu herdei suas habilidades manuais, seu gosto pelo cinema e pela música. A gente sempre decorava a casa para as festas.
Depois de 1978, quando veio, enfim, a anistia, nós pudemos viver como família, no Bairro Peixoto. Foi quando ela teve a iniciativa de criar a Associação de Moradores do Bairro Peixoto e foi sua primeira presidente. Eram mulheres à frente da luta contra a especulação imobiliária. Quando criaram a associação, a chapa adversária tinha um coronel. Elas venceram o coronel. Foi uma festa! E elas venceram essa luta para a criação de uma área de proteção ambiental, com um gabarito estabelecido de 12 metros que existe até hoje. Isso é resultado da luta delas. Quando me separei, resolvi voltar para o Bairro Peixoto e também me tornei presidente da Associação de Moradores. Uma entidade forte até hoje, que tem um DNA de luta, que é legado da minha mãe.
Minha mãe era militância, família, tudo junto. Uma mãe diferente, uma mãe maravilhosa. Minha juventude foi regada a liberdade, esperança, utopia, solidariedade. Foi isso que a gente aprendeu com ela.”

MARINA VIANNA

WhatsApp Image 2024 12 21 at 11.21.27 1ARTESÃ. Marilu produzia as próprias fantasias. Com Marina, de galinhas d’angolaA minha mãe era uma pessoa de alma muito nobre, de uma elegância e discrição ímpares. Ela teve uma vida muito dura com a ditadura, com a perseguição, mas nunca reclamou da vida. Nunca! Ela sempre festejou a vida. Apesar da luta e intensa militância, sempre foi uma mãe e uma avó muito presente.
Fazia fantasias, adorava Carnaval. Amava o Boitatá! Uma vez, fez várias fantasias de galinha d’angola e fomos todos para o Boitatá. Ficamos conhecidos como a família das galinhas d’angola. Ela era assim. Não deixava que roubassem a nossa alegria.
Como única filha dela, vivenciei sua militância feminista muito intensa: do pensar o lugar da mulher, de poder ser vaidosa sem ser objetificada, de ter uma marca no mundo. E tudo isso sem deixar de ser uma mãe, uma avó, uma bisavó.
Ela era socióloga. As Ciências Sociais eram muito fortes nela. Tinha forte compromisso de pensar as desigualdades sociais no Brasil, os privilégios. E ela criou os filhos assim. Eu estudei a vida toda em escola pública e agradeço muito por isso até hoje. Eu tive uma experiência de inclusão e diversidade que jamais teria numa escola privada.”

SALVADOR TEIXEIRA WERNECK VIANNA

WhatsApp Image 2024 12 21 at 11.22.42MATERNAL. Com o caçula SalvadorPor ser o filho mais novo, eu acredito que tive sorte, de certa maneira, porque os dez anos anteriores ao meu nascimento foram muito turbulentos. Meu pai e minha mãe foram presos. Em vários momentos tiveram que viver escondidos. Eu não vivi essa parte mais dura. Minha mãe foi muito presente na minha infância, na escola. Depois, na universidade. Minha vivência com ela na faculdade foi muito intensa. Sou economista formado pelo Instituto de Economia da UFRJ. Ela era professora da casa. Nas sextas-feiras, ela tinha uma frase clássica: “Agora eu vou lá no Sujinho beber uma cerveja, porque também sou filha de Deus”. Era muito querida pelo Manuel, dono do bar.
Tivemos conversas muito profundas desde quando eu era criança. Minha infância foi com a televisão já muito estabelecida no Brasil e a propaganda na TV associava os comunistas ao mal. Eu, mesmo filho de comunistas, fui levar essa dúvida para ela. E a minha mãe desfez com muita serenidade tudo aquilo que a propaganda tinha incutido na minha cabeça. Ela dizia: “Não existe liberdade com desigualdade.”
Em 2011, ela falou pioneiramente em um simpósio da Fiocruz sobre pós-verdade, que hoje a gente chama de fake news. Ela era uma acadêmica que buscava a verdade sem renunciar aos seus princípios e valores, sem renunciar à busca pela liberdade. A ciência não necessariamente busca respostas, mas as melhores perguntas, buscando o contraditório sempre. Isso tudo ela me ensinou.
A quantidade de trabalhos publicados e orientações definem o quilate do acadêmico. Ela tinha enorme quantidade de orientações de dissertações, teses, além de centenas de trabalhos de conclusão de curso. Era uma verdadeira orientadora. Pegava na mão e dizia “vamos terminar isso juntos”. E o fazia mesmo quando não era ela a orientadora formal. Eu testemunhei broncas homéricas que ela dava em orientadores que abandonavam seus orientandos. Isso ela não perdoava. Minha mãe era nobre. Tinha um enorme senso de bravura, de justiça e de generosidade.
Ela foi mãe jovem, militava no PCB, no Centro Popular de Cultura da UNE, dava aulas de alfabetização para adultos em comunidades. Tudo isso com uma ditadura instalada. Uma mulher absolutamente completa, complexa, plural, com muitas sementes plantadas por aí que, com certeza, vão renovar esse ciclo de virtudes. Seguirão dando frutos.”

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